sábado, 16 de novembro de 2019

Ser ou não ser de extrema-direita, eis a questão


Na anterior legislatura, só com a contribuição generosa do PCP e do Bloco de Esquerda, tínhamos no Parlamento nada menos do que 36 deputados de extrema-esquerda ou afins. Quase ninguém se escandalizou por isso, o que foi, segundo então ouvimos, um sinal de maturidade democrática. Não só pela aceitação generalizada do fenómeno, mas também pelo facto de esses dois partidos parecerem continuar dispostos a renunciar temporariamente aos seus ímpetos revolucionários, dado a conjuntura não ser a melhor.

Na actual legislatura, a quantidade de deputados da extrema-esquerda caiu para apenas 31 deputados, o que já foi motivo de escândalo para alguns. Parecia ser uma injustiça, depois de tantas negociações e arruadas que fizeram em prol do país. Mas ainda assim, segundo certas perspectivas, continuaram a ser muitos.

O grande fenómeno recente foi termos passado finalmente a ter também um deputado de extrema-direita. E isso sim, suscitou a indignação geral, excepto a do próprio e seus apoiantes. Não sei se deveremos ver nisto também um sinal de maturidade democrática e de contenção cívica, visto que, até ao momento em que escrevo, o eleito ainda não sofreu nenhum atentado nem lhe fizeram um auto-de-fé no Terreiro do Paço. O que mostra que, contra a vontade dos discordantes, vamos no bom caminho: o da tolerância de costumes.

De facto, já bem basta a consternação de o homem ter sido eleito, não é necessário aprofundar o drama. Mas com ele se quebrou mais um tabu da democracia portuguesa: afinal, o extremismo não é um privilégio exclusivo da esquerda. Nem tão pouco, ao que parece, da esquerda e da direita juntas, visto que um novo e pujante partido, o PAN, pretende empurrá-lo noutras direcções. Estou convencido de que a rosa-dos-ventos ficará satisfeita com isso, ao ver abrirem-se novos caminhos para a navegação (embora só de cabotagem, como sempre).

A dúvida que me assalta é se o eleito é mesmo da extrema-direita ou se existe um esforço concertado para o empurrar para lá, apenas porque diz algumas verdades inconvenientes. Nesta segunda hipótese, corre‑se o risco de ele e os seus apoiantes se convencerem de que é mesmo aí o seu lugar. E isso seria para os críticos como um tiro no pé. O visado bem pode alegar que preza a democracia, que é um europeísta, que nem sequer liga às peculiaridades da nossa arquitectura parlamentar, que mesmo assim ninguém lhe dá ouvidos. E lá diz o ditado: se não podes vencê-los, junta-te a eles. O que neste caso equivaleria a aceitar resignadamente preencher o espaço que quase todos parecem destinar-lhe. Sinceramente, não acho todo este ostracismo uma boa ideia.

Tenho até, aliás, uma teoria também bastante inconveniente sobre este assunto. No fundo, pode não se tratar senão de um equívoco explicável pela nossa história recente. Após a épica revolução de Abril e o tsunami socialista e social-democrata que se lhe seguiu, os partidos que pretendiam mesmo ser de extrema-direita foram ilegalizados ou mediaticamente proscritos, pelo que chegámos ao ponto um pouco absurdo de o partido mais à direita no espectro político que tínhamos ser o Centro Democrático e Social (CDS). Ou seja: nominalmente, deixámos de ter direita (ou melhor, direitas). Na realidade, elas continuaram por aí a ser muitas e várias, mas andavam à nora, sem assumir os seus pecadilhos ideológicos e sem saberem como se apelidar sem serem logo alvo de bullying ou de perseguição jornalística. Nem os simpáticos liberais nem os sisudos conservadores punham os pauzinhos de fora, pelo menos de forma explícita e assumida, chamando logo os bois pelos nomes. Andavam ali num limbo, numa indefinição crónica, até por fim não saberem já quem eram, de onde vinham ou para onde iam, o que é a pior coisa que pode acontecer a uma filosofia política. Ou seja: durante décadas, privado de uma direita assumida e coerente, o país viveu politicamente amputado e nem deu por isso.

Entretanto, tudo mudou ou tende a mudar, mas certos hábitos intelectuais ficaram. Ainda há muita gente disposta a chamar extrema-direita a qualquer coisa que mexa um pouquinho mais à direita que o CDS, que até hoje ainda não renunciou a posicionar-se (pelo menos parcialmente) no centro. Daí que depois fique difícil atribuir as cadeiras no Parlamento, sobretudo quando nele surgem novas forças políticas, pois que ainda há pouca gente destemida a preferir abertamente sentar-se à direita do hemiciclo e os deputados da esquerda e do centro, tal como os da direita envergonhada, recusam firmemente sentar-se ao colo uns dos outros. O que vale é que, não obstante algumas escaramuças, tem imperado o sentido prático. Senão teríamos de reduzir drasticamente o número de deputados para conseguir sentar todos, o que não deixaria de ser um daqueles males que vêm por bem.


sábado, 9 de novembro de 2019

A gaguez como virtude política


Se eu for coxo, não participo numa corrida de competição com obstáculos.
Se eu for surdo, certamente não compro bilhetes para ir a um concerto.
Se eu for cego ou absolutamente míope, não me inscrevo num campeonato de tiro.
Se eu for mudo ou tiver uma gaguez severa, não me candidato a orador parlamentar.
Tudo isto é, no essencial, uma questão de simples bom senso. Ou será que não?

Por estes dias, o país assiste aturdido e confrangido ao triste desempenho de uma deputada gaga de origem guineense que logrou fazer-se eleger para o nosso Parlamento, vá-se lá saber porquê. Na verdade, embora se especule muito, ninguém entende muito bem o que é que a dita senhora foi para lá fazer, porque nada de relevante se retira das suas patéticas intervenções que justifique tão improvável escolha. Mas mandam a boa educação e a nossa apurada correcção política que se omita que a visada nos dá um triste espectáculo sempre que abre a boca, fazendo daquele seu defeito ou feitio um motivo viral de mero sensacionalismo mediático. A senhora ganha alguma fama, o Parlamento perde alguma credibilidade, mas ambos se tornam motivo de chacota, e nada disto é saudável.

Qual foi então a intenção de quem a meteu como cabeça-de-lista numa candidatura partidária? Lembrar ao país que há pessoas gagas? Obrigado, já sabíamos. A inverosímil deputada traz alguma contribuição intelectual que valorize a sua participação no hemiciclo? Até aqui, não vimos nada. O objectivo era dar representação a alguma minoria desfavorecida? Talvez sim, mas nesse caso tenho várias questões a colocar.

A deputada, de que não menciono o nome porque não é preciso e porque não se trata aqui de particularizar, mas de escalpelizar a racionalidade do fenómeno em si mesmo, vem afinal ao quê? Vem representar os gagos, ou as pessoas de raça negra, ou as mulheres, ou quem tem alguma orientação sexual fora do padrão dominante, tal como a dos homens que gostam de andar de saias? Ainda nada lhe ouvimos nesse sentido. Mas se fosse esse o caso, a senhora deputada estaria lamentavelmente equivocada, porque a sua função constitucional é a de representar todos os portugueses e não apenas as minorias da sua predilecção. Pondo a coisa noutros termos: de um ponto de vista formal, ela simboliza, juntamente com os outros deputados, todos os cidadãos do país, não apenas os eleitores, não apenas o distrito por onde foi eleita, não apenas os simpatizantes ou os distraídos que votaram nela ou no seu partido. Ela não é paga pelos nossos impostos para fazer lobbying, mas para pensar o país como um todo. Ela é uma voz da nação, razão pela qual a nação deveria ter mais critério e a voz deveria ter mais noção das suas limitações para o cargo.

À superfície e em concreto, pode até parecer que é a própria pessoa que está em causa. Mas não. Ela tem tanto direito como qualquer outra a candidatar-se e a ser eleita, desde que reúna os requisitos legais para isso. Mas há certos direitos que é ridículo exercer.

No fundo e em abstracto, pode dizer-se que ela foi eleita, como todos os outros deputados, para representar uma população inteira, que é composta por pessoas de orientações diversas, incluindo maioritariamente as que não são gagas, que não são de raça negra ou sequer de origem africana, que talvez sejam mais mulheres do que homens, mas por uma escassa margem, e que decerto são apenas prosaicamente heterossexuais. Mas se ela se esquecer disso, passará num ápice da gaguez vocal para a gaguez política. E aí deixará de ser novidade, pois é óbvio que não faltam gagos desses no hemiciclo.

Apesar de tudo, é possível ver um aspecto positivo nesta sua deficiência da comunicação verbal. Não há nenhum mérito especial em ser mulher, ou em ser de raça negra, ou em fazer-se assessorar por gente de gostos estranhos. Tais atributos são (ou deveriam ser) neutros. Mas pode haver uma particular virtude, ainda que involuntária, em ser tão gaga, dado que a senhora deputada, por causa desse seu bloqueio, dificilmente terá tempo e oportunidade e capacidade para igualar a média de disparates e vacuidades que são proferidos pelos seus colegas. E isso é positivo. Talvez até não viesse mal nenhum ao país se passássemos a ter algumas dezenas de deputados mudos. Como muitos só lá estão para marcar presença, também não se perderia muito nem se notaria a diferença.


sábado, 16 de setembro de 2017

Política versus futebol

A fazer fé na imprensa, o Governo está decidido a impedir a realização de jogos de futebol nos dias de actos eleitorais. Mas será esta uma boa ideia?

Vejamos. Os jogos oficiais de futebol disputam-se geralmente à tarde ou à noite. Os que são à noite não atrapalham nada. E os que são de tarde não impedem as pessoas de votar de manhã. Fará sentido proibi-los? Se fizesse algum sentido, teríamos de proibir muito mais coisas.

Se as idas ao futebol impedissem realmente os cidadãos de votar de tarde, o que é um pressuposto bastante discutível, e se isso pudesse considerar‑se catastrófico para a democracia, poderíamos então alegar que as idas à missa impedem os crentes praticantes de votar de manhã. Deveremos também proibir a celebração da missa nos dias de eleições? Dependendo da religião que as pessoas professem com mais convicção (o cristianismo, o futebol ou a política), muitos devotos poderão não achar graça nenhuma a tais proibições. E em vez de levá-los a votar, a medida pode gerar ainda mais descontentamento com a democracia (ainda que seja só contra este género particular de democracia que temos).

Aliás, para a proibição poder surtir efeito, conviria proibir também todas as actividades de substituição que as pessoas podem encontrar para se entreterem, se forem privadas de ir ao estádio ou à igreja em dias eleitorais. Haverá que proibir a transmissão televisiva de jogos estrangeiros ou de ofícios religiosos, e mesmo a televisão em geral, as emissões dos canais por cabo e por satélite, os videojogos, a internet, o sexo diurno, os concertos, os cinemas, todos os outros eventos culturais ou desportivos que sobrem e, no limite, até mesmo levar os miúdos ao parque infantil ou convidar os familiares e amigos para almoçar. Tudo o que possa distrair-nos do nosso dever cívico de votar será um pecado democrático e, portanto, merecedor de interdição. Ou seja, para pressionar os cidadãos desinteressados a fazer uma peregrinação às urnas seria necessário proibir quase tudo e, já agora, acrescentar uma fatwa com ameaças de lapidação. E mesmo assim, sabe-se lá o resultado.

Este raciocínio que acabei de expor tem o seu análogo noutro que se faz em matemática quando se pretende pôr em evidência que uma certa ideia não é boa: chama-se demonstração por absurdo. E o absurdo de proibir os jogos de futebol em dias de eleições para levar as pessoas a votar é de tal ordem que nem precisa de ser transformado em teorema, porque salta logo aos olhos. A causa de tanta gente não votar não é nenhum de muitos impedimentos lúdicos imagináveis, mas sobretudo uma de duas: desinteresse de o fazer ou não querer mesmo fazê-lo. Contra isso não há proibições que valham.

Se o governo quer pressionar as pessoas a votar, mesmo sem terem motivação para isso, então seja coerente: torne o voto obrigatório e imponha uma multa a quem não cumprir. E aguente-se depois com a contestação. Como pretexto, aliás idêntico ao que já se usou noutros países, poderá alegar que é justo que quem não cumpra o seu dever cívico de votar (mesmo que nulo ou branco) tenha o ónus de contribuir para os custos do acto eleitoral, através da multa que lhe será imposta. Assim, quem não se der à maçada de ir à urna terá o incómodo relativamente menor de ir ao bolso e prescindir duns trocos.

Mas toda esta polémica é artificiosa e ridícula. Nada impede ninguém de, no mesmo dia, ir à missa, ir à urna e ir ao estádio, não necessariamente por esta ordem, e ainda sobra tempo para o sexo diurno e outros devaneios. O problema com a democracia, como toda a gente bem sabe, é outro. E não serão mais uns quantos milhares de votos que irão resolvê-lo.

No entanto, esta recente febre de proibições em prol da democracia levanta uma outra questão: o direito individual à liberdade de escolha. Se o voto for tornado obrigatório, o cidadão ainda pode escolher entre ir votar ou pagar a multa. Mas quando começam a proibir-lhe o que o motiva fazer, nunca se sabe qual será o limite das proibições. De qualquer modo, está-se a restringir a escolha. O melhor mesmo é não enveredar por aí, nem mesmo começando por simples jogos de futebol, porque a lógica das proibições tem o feio costume de tomar o freio nos dentes e não saber quando deve parar. Historicamente, não faltam exemplos disso. E apesar de a História nunca se repetir, por vezes deixa-se imitar muito bem.

sábado, 5 de agosto de 2017

Ideias para Lisboa

“Em lugar de falar dos candidatos, parece-me mais útil aproveitar esta época eleitoral para fazer sugestões para Lisboa.” (Sim, alguém já o disse antes, tal e qual, daí as aspas.)

Uma delas é a cobertura da Rua Garrett, da Rua do Carmo e da Rua Nova do Almada com uma grande clarabóia de vidro, à semelhança da galeria Victor Emanuel, em Milão, tornando o Chiado um grande centro comercial de lojas tradicionais.

[A sugestão do vidro não é vinculativa, claro. Poderia ser qualquer outro material com propriedades semelhantes, mas mais adequado para servir de antídoto ao calor diurno no Verão. O projecto não iria descaracterizar a zona, antes pelo contrário; iria valorizá-la e deixaria a actividade comercial desta protegida dos períodos de chuva.]

Outra poderia ser a transferência da Feira do Livro para a zona do Rossio, Praça da Figueira e Martim Moniz, ligando as três praças, e assim dando ao centro um ambiente de festa – ao mesmo tempo que a Feira beneficiaria da presença de esplanadas e lojas à volta (abertas à noite) que a tornariam mais atractiva. E o facto de aquela zona ser abrigada e plana, ao contrário do Parque Eduardo VII, que é inclinado e ventoso, seria um factor de comodidade para os visitantes.

[Esta ideia admite uma alternativa. Como a sua deslocação temporal para Maio tornou a feira do Livro uma feira de primavera, poderia naquela época do ano manter-se onde está. Mas por que não realizar uma outra Feira do Livro que seja uma feira de outono, realizada essa em pleno centro da cidade? Com a enorme movimentação de gente que Lisboa tem actualmente, duas feiras por ano não seriam demais.]

Uma terceira ideia tem a ver com a difícil ligação ao rio em algumas zonas da cidade. Há uma faixa até Algés que não tem praticamente contacto com ele, essencialmente porque a linha férrea funciona como uma barreira de arame farpado que corta o acesso à zona ribeirinha. É o que acontece, por exemplo, em Belém (onde se situa parte importante da oferta turística lisboeta) e zonas adjacentes.

Em tempos defendeu-se o desnivelamento da linha férrea no troço entre o Cais do Sodré e Algés, mas depois chegou-se à conclusão de que esse investimento não seria rentável para a companhia ferroviária.

Há, contudo, uma alternativa que parece ser economicamente mais viável: acabar com o comboio entre o Cais do Sodré e Algés e prolongar até aqui o Metropolitano, criando uma interface fácil e rápida entre as duas vias (isto, sublinhe-se, sem aumentar os custos do transporte misto para os utentes regulares). 

Feito isso, e com acesso facilitado ao rio, uma faixa considerável da cidade iria renascer para o lazer e o turismo, livrando-se do abandono e da degradação que a perseguem há décadas.

Ideias originais? De modo algum. Elas foram lançadas, há mais de dez anos, e quase pelas mesmíssimas palavras (excepto alguns acrescentos meus), por aquele que é um dos mais conhecidos e lúcidos jornalistas portugueses (conotações e controvérsias à parte) e que é também, embora nem todos o saibam, arquitecto de formação. Refiro-me a José António Saraiva, então director do semanário Sol. Trata-se de um homem com ideias notáveis e que durante muitos anos fez, à sua conta, uma boa parte da agenda política e mediática do país, com as suas crónicas semanais (primeiro no Expresso e depois no Sol). Curiosamente, vá-se lá saber porquê, a discussão em torno destas ideias para Lisboa nunca pegou de estaca.

Agora que estamos de novo em ambiente de pré-autárquicas, vale a pena relançar o que ele sugeriu então. Sem ideias preconcebidas.

Para finalizar, resta-me esperar que o autor das ideias não me processe por plágio. Não foi essa a intenção, juro, embora em grande parte me tenha limitado a transcrever o que ele escreveu. O mérito é todo dele, portanto. O seu a seu dono. (E dito isto, espero obviamente ser perdoado, não obstante a minha enorme avareza nas aspas.)

Ah, já me esquecia: a citação logo no início também é dele. 

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

A política do ziguezague

O PSD e o CDS estão a aprender uma dura lição, que desde o início deveria ter sido óbvia: a de que num regime de alternância democrática, todas as medidas de um governo podem ser revertidas por outro. Basta que surjam circunstâncias favoráveis.

Não é certo, contudo, que o PS e a sua escolta parlamentar já a tenham aprendido também.

Enquanto estão em posição de força e dão largas a uma certa arrogância decisória, muitos governantes se esquecem dessa verdade fundamental. Empenham-se em usar quase discricionariamente o poder que detêm, dentro dos moldes institucionais em vigor e das balizas impostas pelas coligações que lideram, esquecendo que o próprio poder tem os seus limites temporais, por vezes mais curtos do que se imagina. E enquanto parecem ainda longínquas as próximas eleições, perseveram no erro de acreditar que o eleitorado tem memória curta e irá decerto relevar os vários desapontamentos e as revoltas entretanto acumuladas, graças ao encantamento hipnótico de algumas benesses concedidas pouco tempo antes do novo sufrágio. Por vezes, enganam‑se.

Que sonham agora os partidos empurrados para a oposição? Reverter muitas das medidas do actual governo. Enquanto isso, queixam-se das reversões que este vai fazendo. Ou seja, estão na fila de espera para a continuação de uma política de ziguezague, que só faz o país perder tempo e recursos.

Um certa doença crónica é comum a ambos os lados da barricada: a aversão aos consensos, a rejeição de soluções equilibradas que não dêem depois azo a reviravoltas bruscas.

O governo anterior, e o PSD em particular, nunca deveriam ter resvalado para um grau de insensibilidade social que permitiu conotá-los com uma impopular orientação neoliberal, que lhes vai ficar colada à pele por muito tempo. Deveria ter havido mais comedimento e bom senso em muitas das decisões drásticas que foram tomadas, desde “o enorme aumento de impostos” até ao “ir além da troika”…

Como se tem visto nos últimos tempos, a consolidação orçamental continuou, mesmo abdicando de algumas medidas draconianas que pareciam não ter alternativa. A austeridade de esquerda trocou os cortes em salários e pensões por cortes nos recursos atribuídos aos serviços públicos (e convém notar cinicamente que os assalariados e pensionistas votam, enquanto os serviços públicos não). A carga fiscal continua elevadíssima e a dívida pública continua a crescer, mas o actual governo teve a habilidade de trocar as voltas a uma boa parte do descontentamento popular, diminuindo ligeiramente os impostos directos e indo buscar mais receitas a taxas e impostos indirectos, repondo rendimentos às pessoas e fazendo novas contratações de pessoal enquanto cortava sem dó nem piedade na despesa de muitos departamentos estatais e no próprio investimento público. Está provavelmente a pecar em sentido contrário ao do governo anterior, distribuindo liberalidades por muitas clientelas do Estado.

Mas não nos iludamos: a dívida pública continua a crescer. O Estado continua a pedir dinheiro emprestado para poder distribuir uma parte dele por tantos bolsos ansiosos. E os excessos que estão a ser cometidos agora arriscam-se a ser a catapulta que um dia trará a oposição de novo ao poder.

Ora muito do que se fez antes, assim como muito do que se faz agora, resulta de meras bandeiras ideológicas e das cegueiras que lhes andam associadas. As rivalidades tribais da democracia sobrepõem-se ao bom senso.

Esquerda e direita são os dois conceitos mais tóxicos da nossa política. São eles que nos condenam a uma evolução económica e social em ziguezague. E o ziguezague, como nos ensina a geometria mais elementar, está longe de ser o caminho mais curto para o progresso.

Moral da história: este país precisa desesperadamente de um regresso ao centro político, que entretanto ficou quase despovoado, espécie de “terra de ninguém”. As ortodoxias de turno em ambos os hemisférios políticos renegam categoricamente o centro-esquerda e o centro-direita (talvez pensem que o Diabo afinal possa deambular por aí…). E apesar de haver até algum espaço político desocupado para uma nova formação ao centro, quando se ouve falar disso não passam de rumores pífios. Ninguém com crédito se chega à frente.

Infelizmente, há também muita gente que pensa que o centro político é apenas uma espécie de indecisão entre a esquerda e a direita. Mas não é. É uma outra forma de estar na política e de procurar soluções (em princípio, menos parciais e menos transitórias) para os problemas. 

sexta-feira, 28 de julho de 2017

Alguns equívocos por desfazer

Ser tolerante não implica permitir que se advogue publicamente a intolerância sectária e virar‑lhe as costas com indiferença, alegando o direito de cada um pensar como quiser.

Ser pacifista não implica condescender em que alguém defenda publicamente ou pratique discretamente alguma forma de violência e fique impune, sem que nenhuma força se lhe oponha.

Ser multicultural não implica consentir que os valores e os costumes dos outros atropelem os nossos com o maior à-vontade do mundo.

Ser defensor de uma imigração controlada e selectiva não significa ser xenófobo ou racista, pois quem o é não quer imigração nenhuma.

Ser laico não implica permanecer neutro perante as doutrinas, os credos, as intenções e as iniciativas dos fundamentalismos religiosos, pois esse tipo de neutralidade acaba por se traduzir sem querer em conivência tácita.

Ser democrata não implica atribuir levianamente a cidadania ou o direito de voto a qualquer estrangeiro que resolva assentar arraiais por cá.

Ser humanista não implica dar a imigrantes ou refugiados mais protecção e apoios do que damos aos nossos concidadãos pobres ou idosos.

Ser internacionalista não implica prezar tão pouco a nossa nacionalidade que a ofereçamos de bandeja a quem só a quer para poder melhorar de vida, de preferência noutro país europeu.

Ser progressista não implica pautar-se por dogmas ideológicos e desdenhar as recomendações do bom senso, pois o progresso é invariavelmente avesso a ortodoxias arrogantes.

Ser idealista não significa virar completamente as costas ao realismo (nem vice-versa).

Ser solidário não implica sentirmo-nos obrigados a fazer por desconhecidos ou estrangeiros o que percebemos que eles nunca estariam dispostos a fazer por nós.

Ser cosmopolita ou de espírito aberto não implica fingir que acreditamos que os nossos padrões culturais valem o mesmo que os de quaisquer outras pessoas vindas doutras paragens, sobretudo se oriundas de países subdesenvolvidos.

Ser actual não implica estar na crista da onda de todas as imbecilidades que se tornam moda.

Ser europeísta não implica acreditar que as nações e as nacionalidades perderam a sua razão de existir.

E talvez mais importante ainda do que o resto: ser inteligente ou solidário (ou julgar que se é) não justifica considerar que todos os que pensam de modo diferente são estúpidos ou mal‑intencionados. É verdade que a inteligência e o altruísmo andam muito mal distribuídos neste mundo, mas nem sempre estão do lado de quem mais deles faz alarde. Talvez até pelo contrário.

E quanto a saber como se distinguem conceitos e preconceitos, isso daria pano para mangas, colete e sobrecapa. Já todos vimos diversa gente muito preconceituosa a combater supostos preconceitos, o que nos deveria servir de vacina. Mas não deixa de ser curioso constatar que muitos dos que aceitam e propagam o relativismo cultural, que interdita qualquer hierarquia de culturas, não alinham pelo relativismo conceptual, no sentido de aceitar que as concepções alheias possam valer tanto como as próprias. O “progressista” típico, sempre tão tolerante em matéria de valores e costumes exógenos (sobretudo quando se trata de imigrantes, refugiados e minorias étnicas ou religiosas) tende a ser arrogante e insultuoso em relação aos seus próprios concidadãos que pensam de maneira diferente. Bastante incoerente, não? E também esclarecedor.

domingo, 9 de julho de 2017

Portugal, sociedade fechada

Uma certa filosofia política habituou-nos a chamar sociedades abertas àqueles regimes políticos em que as pessoas elegem os seus líderes, atribuindo-lhes o encargo de zelar pelos interesses gerais de todo o eleitorado e de equilibrar os interesses conflituantes das várias partes dele.

Em contraste, são sociedades fechadas aquelas em que os líderes, por usurpação do poder ou por abuso dele, se dedicam a manipular ou tiranizar a maior parte dos seus concidadãos, sejam eles tidos como eleitores livres ou súbditos, para proteger e favorecer os interesses de um círculo relativamente fechado.

Digo “relativamente fechado” porque ele não o é em absoluto: há, em geral, alguma porta que se abre para aqueles que se mostram diligentes na gestão desse favorecimento, ou hábeis no seu próprio enriquecimento pessoal, sendo-lhes assim permitido fazer também parte desse círculo.

Nas sociedades fechadas, mesmo quando há eleições fidedignas, o que o eleitorado verdadeiramente escolhe é quem o vai defraudar na governação dos interesses comuns e particulares.

Portugal, nesse sentido, é uma sociedade fechada. Não só os líderes eleitos não conseguem satisfazer as expectativas, como permitem intencionalmente que as várias elites capturem a democracia e a riqueza, num fenómeno perverso que tende para um gradual açambarcamento.

Na política portuguesa, o tal círculo relativamente fechado tem-se chamado “centrão” – o que, acreditem-me, é algo muito diferente do centro político.

Um e outro apenas se assemelham no nome. Enquanto o centro político genuíno procura criar e preservar equilíbrios sociais, protegendo os interesses gerais e doseando adequadamente os interesses particulares, o “centrão” tem sido (e abrindo bem os olhos, continua a ser) a grande mola impulsionadora dos desequilíbrios e do crescimento deles. E refiro-me aos desequilíbrios todos: de poder, de riqueza, de estatuto, de benefícios e de favorecimento legislativo.

Nas sociedades abertas, o principal obstáculo a contornar costuma ser a incompetência, venha ela da incapacidade técnica ou do enviesamento ideológico. Nas sociedades fechadas, como a nossa, o que prepondera é a corrupção. Mas nada impede que uma e outra andem de mãos dadas, porque até na corrupção se pode ser muito incompetente.

É esse, infelizmente, o nosso caso. Há muito tempo que somos vítimas de uma imponderável combinação de corrupção e incompetência.

Para vencer a primeira, teremos de mudar a justiça e as mentalidades. Para vencer a segunda, teremos de reformar profundamente o sistema político.