sábado, 11 de abril de 2020

COVID-19: Factos incertos, estatísticas falsas, percepções erradas


Nos dias que correm, somos assolados por diversas dúvidas:
      a) qual é realmente a perigosidade deste vírus? 
      b) podemos confiar nas estatísticas oficiais sobre a pandemia?
      c) a reacção está a ser proporcional à ameaça ou há agora um excesso de zelo do tipo lava-culpas?
      d) o que devemos recear mais: os efeitos da epidemia ou um eventual colapso económico?
      e) o que se deverá fazer?

Qual é realmente a perigosidade deste vírus?

A verdade nua e crua é que ninguém o sabe ao certo, embora pareça bem inferior ao que se chegou a temer. O que não é propriamente um motivo de alívio, porque há grandes e intrigantes disparidades na taxa de mortalidade da pandemia em diversos países europeus. Vários factores podem explicar essas disparidades, mas também não se sabe em que proporção: a situação geográfica, os possíveis vectores de contágio, as medidas de contenção tomadas, os tempos de resposta, os meios sanitários à disposição, a organização e o apetrechamento hospitalares, o grau de cumprimento das regras higiénicas e das quarentenas pelas populações locais, as mutações do vírus que vão surgindo, a agressividade das estirpes que mais assolam cada país. E ainda podemos juntar ao rol a composição etária, étnica e genética das regiões afectadas, os factores climáticos e metereológicos, a eventual influência dos programas nacionais de vacinação contra outras doenças, etc... Enfim, um cocktail de variáveis que dará assuntos de pesquisa para muitos anos, mas que não nos dá agora pistas seguras.
No imediato, e apesar das farroncas precipitadas de alguns governos, todos estão a navegar à vista, com os olhos postos nos outros países e nas estatísticas. E esse é um outro problema, como veremos.

Eis para já o que consta na imprensa quanto à mortalidade: 3% dos infectados nos EUA e Canadá, um pouco mais (3,5%) na Ásia, 5% no conjunto da África e uma média de 8% na Europa, com alguns países aparentemente bem abaixo dela (como Portugal e Alemanha) e outros acima (como Espanha e Itália). Mas estas percentagens são apuradas em relação apenas aos casos diagnosticados, pelo que as percentagens reais são desconhecidas.
A maior taxa de mortalidade na Europa pode ser explicada pelo facto de ser o continente com uma população mais envelhecida ou de estar a braços com mutações do vírus mais agressivas, entre outras hipóteses. Mas não é crível que os diferentes sistemas estatísticos nacionais tenham um grau de fiabilidade idêntico em toda a parte, pelo que estas comparações podem ser bastante enganadoras.

Podemos confiar nas estatísticas oficiais sobre a pandemia?

Infelizmente, não. São muito rudimentares. Não sabemos o número real de infectados nem o número de óbitos realmente provocados pela acção do vírus.
Todos os dias se anuncia o número já conhecido de infectados, mas toda a gente percebe que o número real é bem superior e totalmente desconhecido. Por várias razões: o número disponível de testes tem sido sempre muito escasso; o número de testes efectuados foi ainda menor, devido às habituais atrapalhações da logística e à quantidade limitada de laboratórios, equipamentos e reagentes; a cada dia que passa, há ainda milhares de testes que aguardam os resultados laboratoriais; e principalmente porque a esmagadora maioria da população infectada (estima-se que cerca de 80%) é assintomática ou só apresenta sintomas discretos.
O que se pode concluir daí? Se a capacidade de testar é ainda muito limitada, se a detecção de casos depende dela e se os testes se aplicam sobretudo aos casos sintomáticos, o número de infectados será decerto muito maior. Mas quantos? Alguns matemáticos estimam que os casos reais sejam, pelo menos, dez vezes superiores aos casos confirmados. E isso, a ser verdade, é uma boa notícia: significa, por esse prisma, que a letalidade do vírus é muito menor do que o cálculo oficial, talvez dez vezes menos ou menor ainda. Mas não é para menosprezar: a taxa de mortalidade entre os infectados conhecidos aproxima-se agora entre nós dos 3% e mantém uma tendência lenta e firme de subida. Duas semanas antes, era cerca de 2%.

Todos os dias se anuncia o número de mortos apurados, mas a verdade é que não se tem distinguido entre os que morrem com o coronavírus presente no organismo e os que morrem por causa do coronavírus, ou seja, pela acção específica deste. Nem sequer é distinção que seja sempre clinicamente fácil e não há muito tempo a perder com isso, pelo que vai tudo parar ao mesmo saco. Todas as mortes de pessoas a quem tenha sido diagnosticado o covid-19 são registadas como sendo causadas por ele, como se outras causas de morte natural tivessem deixado de provocar baixas entre os infectados. Ora isto é irrealista, sobretudo se atentarmos nas faixas etárias em que os óbitos mais ocorrem.

Especificando um pouco mais: sabemos que a esmagadora maioria dos óbitos parece resultar de uma conjunção do novo coronavírus com várias outras patologias pré-existentes no mesmo indivíduo, o que significa que o vírus é muito mais letal para quem já tenha uma idade avançada e um grau de morbidez elevado, e que vitima sobretudo quem já ultrapassou a esperança média de vida ou está perto de a atingir.

Mas será o número de mortes apenas aquele que nos dizem? Nem pensar. Em Portugal, desde o final da primeira semana de Março até aos primeiros dias de Abril, registou-se um acréscimo anormal de óbitos acima da média dos últimos dez anos e também acima da média dos últimos três. Mesmo se descontarmos os óbitos oficialmente atribuídos ao covid-19, restam mais de 800 óbitos por explicar, um desvio de 7% em relação ao expectável, desvio esse que começou a manifestar-se apenas uma semana depois de terem sido detectados os primeiros casos de infecção. Pelo menos uma parte destas mortes será consequência do coronavírus em pessoas que nunca foram testadas.
Parece pois que afinal o tão apregoado “milagre português” de baixa mortalidade se deve apenas ao facto de muitas mortes causadas pela pandemia não terem sido registadas como tal. Por cada óbito atribuído ao coronavírus, ficaram mais três por explicar, segundo os investigadores. Se os tomarmos em consideração, concluiremos que esse “milagre português” foi apenas operado pelas falhas da estatística e não pelas virtudes lusas da contenção, nem tão pouco pela clarividência das autoridades.
Falhas casuais ou intencionais? Ficamos a matutar.
A criatividade contabilística dos gregos serviu-lhes em tempos para conseguirem entrar na zona euro. A nossa criatividade estatística talvez nos sirva para fazermos o papel de “exemplo a seguir” no combate à pandemia e marcarmos uns pontos nas instituições europeias. Mas convém não nos iludirmos.

Todos os dias se fala das virtudes da quarentena e do progressivo achatamento da curva de evolução da doença, mas na ausença de vacina ou remédio eficaz (e para além de eficaz, disponível nas quantidades necessárias), apenas estamos por enquanto a prolongar e a diluir no tempo as consequências da epidemia, enquanto se esperam milagres rápidos vindos das empresas farmacêuticas. Mas por quanto tempo se consegue aguentar isto? Quantas vidas teremos de destruir economicamente para salvar outras clinicamente? E quanto tempo faltará para a população de baixo risco se impacientar?

A reacção está a ser proporcional à ameaça ou há agora um excesso de zelo do tipo lava-culpas?

Sim, é uma pergunta legítima. A natureza humana é o que é.
A princípio, a reacção das autoridades foi desvalorizar o risco e protelar as medidas. A preocupação dominante era não beliscar o anunciado excedente orçamental, para que os políticos envolvidos brilhassem na conjuntura. À impreparação juntou-se o desleixo, à falta de planeamento juntou-se a falta de meios. Quando se tornou impossível continuar a ignorar a ameaça sanitária, havia que salvar a face e encobrir responsabilidades. Perdidos por cem, perdidos por mil. Para compensar a incúria, veio o excesso de zelo. É sempre assim.
Não, não se admirem: mesmo no meio de uma pandemia, a política continua. Só o cenário muda.
Quem na véspera da crise não fez nada do que devia, ou pouco mais que nada, quer amanhã que se pense e diga que fez tudo o que podia, ou o máximo que estava ao seu alcance. Objectivo: que nenhum partido seja desacreditado, que nenhuma equipa política seja responsabilizada. Conseguido isso, pouco importam os danos colaterais. Como é tradição, o cálculo político não se faz a retalho, faz-se por grosso.

O que devemos recear mais: os efeitos da epidemia ou um eventual colapso económico?

Pergunta bastante difícil, hein? Vamos de novo aos números. Numa altura destas, de mentes confusas e amedrontadas, talvez eles possam ainda ajudar-nos.
Passaram quarenta dias desde que se detectou o primeiro caso confirmado de infecção pelo coronavírus, e havia já então cem outros casos suspeitos. Houve entretanto 470 óbitos que lhe foram atribuídos, sem que se saiba exactamente quantas dessas pessoas infectadas morreram realmente por causa do coronavírus e não por outra causa simultânea. Mas desde o início da primeira quarentena passaram apenas três semanas e já vamos em quase 30 mil empregos destruídos, enquanto 120.000 trabalhadores independentes perderam parte substancial do seu rendimento.
Bastante pior, em termos proporcionais, estão as coisas nos EUA: para 425.000 casos confirmados de infecção e cerca de 18.000 mortes, havia já 17 milhões de empregos destruídos. Grosso modo, por cada óbito perderam-se quase mil empregos. Em Portugal, perdem-se uns sessenta, se acreditarmos muito ingenuamente que ninguém em lay-off acabará no desemprego.

Desde o início desta crise sanitária, houve 266 doentes recuperados. Muitos terão de ser vigiados durante meses para se perceber as reais sequelas deixadas pela doença. Entretanto, 642.000 trabalhadores assalariados já viram os seus empregos colocados em regime de lay-off. Terminada a quarentena e o apoio estatal, quantos deles se irão perder, quantos serão recuperados? Ninguém sabe.

Havia que tomar medidas, anunciar decisões impopulares, impor restrições severas? Claro que sim. Mas será que a reacção foi proporcional à ameaça ou ao pânico instalado? Retrospectivamente, não deixa de ser impressionante como em menos de duas semanas se passou de oito a oitenta. Desde quase desprezar o problema até decretar uma quarentena severa foi um ápice. Para uns, a quarentena veio tarde. Para outros, veio em excesso. Mas dada a enormidade dos danos económicos e pessoais que vai provocar, chegou a altura de pensar o que é mais perigoso no curto e médio prazo, se a doença, se a cura. Será que o remédio utilizado é o mais adequado? E está a ser administrado na dose certa? Talvez a resposta seja não. Talvez seja uma overdose.

A não ser que saiam depressa vários coelhos gordos da cartola do prestidigitador-mor do reino, poderá não faltar muito para que o pânico económico iguale o pânico sanitário, ou até o supere. Há já muita gente a sentir-se entre a espada e a parede, cada vez mais sem dinheiro para pagar as contas e governar a casa. Há já muitas pequenas empresas a ir pelo cano, destruindo o trabalho e o investimento de anos. E o empobrecimento não é bom conselheiro, tal como o medo.

O que se deverá fazer?

Voltemos às estatísticas, ainda que manhosas.
Pelos números oficiais, abaixo dos 60 anos morreram apenas 20 pessoas por causa do coronavírus e abaixo dos 40 não morreu ninguém. É muito, em termos absolutos? Em termos estatísticos é pouco mais que nada. No ano passado morreram cerca de três mil e quinhentas pessoas só em Janeiro e Fevereiro por causa do surto gripal e da vaga de frio e não houve nenhum alvoroço, nem o país parou.
Na média dos últimos três anos, faleceram em Portugal cerca de 111.793 pessoas por ano, 9316 por mês, 306 por dia.
Supostamente por causa do coronavírus, “a solo” ou conjugado com outras patologias graves, no espaço de um mês morreram 470 pessoas, 450 delas acima dos 60 anos, 402 delas acima dos 70 anos, 302 delas acima dos 80 anos. Ora a esperança média de vida situa-se nos 77 anos para os homens e nos 83 para as mulheres, o que dá uma média de 80 anos no geral, números redondos. O que mostra que cerca de dois terços dos óbitos ocorreram após ser atingida ou ultrapassada a esperança média de vida e quase todo o terço restante já bastante próximo dela. Como é óbvio, a “esperança média de vida” não implica que todos devem morrer só depois de a atingirem, pois se trata de uma média. (Creio que o Sr. de La Palisse não diria melhor…)
Quantas mortes naturais teriam entretanto ocorrido, sem a intervenção do coronavírus? E quantas ocorreram com ele, mas não só por causa dele? Algumas, decerto. Também é necessário ponderar isso, ou estaremos a desvalorizar os outros factores relevantes, distorcendo a interpretação das estatísticas. A racionalidade manda que se pondere tudo.

Portanto, em termos epidemiológicos e demográficos, não estamos a ser atingidos por um tsunami. A coisa é bastante grave, sem dúvida, mas não passa de uma tempestade tropical, embora capaz de grande devastação. Mas seremos certamente atingidos por um tsunami económico e civilizacional, se uma quarentena tão drástica se prolongar por mais alguns meses. E a reconstrução, na melhor das hipóteses, demorará anos; na pior, décadas.

Portanto, ponderem-se os riscos e as consequências dos dois lados.
Decretem-se todas as medidas sanitárias convenientes, apertem-se as regras e a vigilância, dê-se toda a formação e equipamento protector que forem necessários, mas ponha-se depressa o país a trabalhar. Em tempo de guerra, trabalha-se. Suprimem-se algumas actividades perigosas e supérfluas, mas trabalha-se. Resguardam-se e protegem-se escrupulosamente os mais vulneráveis, mas trabalha-se. Poupam-se os mais débeis, mas trabalha-se.

E como já se percebeu que não vai chover dinheiro grátis da União Europeia, e que todo o que vier é para pagar, quanto mais depressa recomeçarmos, melhor. Antes que seja o descalabro. Já não há pachorra, já ninguém tem pachorra para ouvir ministros das finanças portugueses a falar outra vez do espectro da bancarrota.

terça-feira, 7 de abril de 2020

Não há oito que não dê em oitenta...


No princípio, era a impreparação.
Depois de tudo quanto já se leu e ouviu, depois de tantos vídeos e notícias postos a circular sobre o assunto, ficámos todos a saber que já era esperada uma pandemia, mais ano menos ano. Só não se sabia quando, qual ou de onde viria. Mas sabia-se que viria. Vários especialistas alertaram, várias organizações advertiram, e até figuras mediáticas como Bill Gates deram conferências e entrevistas premonitórias sobre o perigo que todos corríamos. Mas, pelos vistos, os governos tinham outras premências em que pensar. Ninguém se preparou, nem sequer os países mais evoluídos. Como se tornou óbvio, prevenir uma emergência de saúde pública e proteger dela as populações não estava sequer perto do topo das prioridades. E não foi só em Portugal, foi praticamente em todo o lado, se é que isso serve de desculpa a alguém.
E eis o mais incompreensível: apesar de não se poder saber de antemão se uma eventual epidemia se transmitiria por via aérea ou por contacto, ou por ambas as vias, ou por outra qualquer, nenhum país tinha sequer uma reserva estratégica das coisas mais simples e baratas para enfrentar uma situação destas: nem viseiras, nem máscaras, nem luvas, nem batas, nem zaragatoas, nada. Muito menos um plano de contingência para a produção de ventiladores, filtros, fatos de protecção ou qualquer outra coisa que fosse precisa…

Após este mau princípio, veio o desleixo.
Já a epidemia grassava nos países do leste asiático e ainda por cá se pensava que, à semelhança das anteriores, não iria ser nada connosco. Isto apesar da enorme mobilidade geográfica nos nossos dias. Aparentemente, tudo o que se fez foi ficar a monitorizar a situação. Não se aprovisionou material, não se fizeram planos adequados, não se formou pessoal. Nas fronteiras e nos aeroportos, continuou a entrar quem quis, de onde quis, sem ninguém ser submetido a um breve inquérito ou a um mero teste de temperatura. Nada disso dava jeito e portanto não se fez nenhum controle, nenhuma triagem. E mesmo depois de já ter sido declarada oficialmente a pandemia, ainda se ouviu uma directora-geral a desvalorizar a situação e as próprias recomendações da Organização Mundial de Saúde!

A seguir, veio a demagogia irresponsável.
Todos se lembram de ouvir a nossa ministra da Saúde e outros responsáveis do pelouro dizerem-nos que estava tudo preparado para qualquer eventualidade e que tinham sido feitos planos de contingência. Viu-se. Quando surgiu o primeiro caso suspeito em Portugal, percebeu-se logo que nem os operacionais do INEM sabiam o que fazer. Limitaram-se a enclausurar o desgraçado numa ambulância durante horas e ficaram à espera que alguém lhes desse instruções, sem que ninguém lhas soubesse dar em tempo útil. Sabemos como acabou o episódio. Foi o escárnio geral. No ridículo da situação, ainda quem mostrou mais discernimento e informação foi o dono da fábrica onde o caso ocorreu, mesmo sem ter qualquer formação profissional na área da saúde. Lamentável.

O passo seguinte foi o improviso acelerado.
Felizmente, é nisso que os portugueses são bons. Quando surgiram novos suspeitos e os primeiros infectados, no meio do pandemónio que rapidamente se instalou e com a carência de meios que se sabe, lá se foi fazendo qualquer coisa de útil e acertado, ainda que sempre a olhar de lado para os países onde a crise ia mais adiantada e para os outros onde ainda não tinha chegado em força. Em vez de se antecipar aos acontecimentos, o governo foi tomando medidas em sintonia com o grau de alarme da população e dos diversos serviços hospitalares. Actuação desastrada, de um ponto de vista sanitário, mas politicamente hábil. Chegou talvez para salvar quanto baste a imagem pública de quem tinha responsabilidades, excepto perante aqueles que sabiam quem mentia e que meios faltavam. Como não podia deixar de ser, mentiu-se muito, fingiu-se muito.

O próximo capítulo foi o estado de emergência.
Veio logo a seguir aos primeiros óbitos atribuídos ao novo coronavírus. Restringiu-se a circulação de pessoas e a actividade económica. Decretou-se a quarentena, aplicada em diversas partes do país com entendimentos diversos e com rigor variável, mas num crescendo de intensidade e de vigilância. Está a dar os seus frutos, mas serviu só para ganhar tempo, para que os hospitais pudessem ser preparados, para que os utensílios pudessem ser encomendados e adquiridos, para que os procedimentos pudessem ser oleados. Ou seja, para fazer tudo o que já devia ter sido feito antes e não foi.

A seguir, têm vindo as medidas drásticas.
Confinamento forçado, como se do cumprimento escrupuloso dele por todos dependesse evitar o apocalipse. Estabelecimentos encerrados a eito e a preceito. Muitos milhares de empresas destruídas e outras agonizantes, como se tudo fosse um incidente passageiro e em breve tudo voltasse à normalidade. Falta de racionalidade na ponderação dos riscos sanitários e dos riscos económicos. Falta de tratamento diferenciado das faixas etárias e dos grupos de risco. Paralisação quase total de um país que em breve acordará para uma nova pandemia: a do desemprego e do subemprego, a do rendimento insuficiente para os encargos já assumidos, a da perda de património e de nível de vida, a da subsidiodependência em relação a um Estado tutelar que não imprime dinheiro e que já não consegue absorver os mesmos recursos, a do desespero de quem precisa de apoio económico e não encontra quem lho dê a tempo e horas, a incapacidade económica dos idosos para se tratarem, a pressão fiscal e contributiva que se adivinha para voltar a pôr as contas públicas em ordem.

Tinha de ser assim? Não.
Não há ainda um único óbito causado pela pandemia abaixo dos 40 anos de idade, e se vier a haver não terá qualquer significado estatístico, nem ocorrerá necessariamente só por causa dela. Mesmo abaixo dos 60 anos, a mortalidade é quase despicienda: menos de 4% do total de óbitos e apenas um milésimo dos infectados (dos que já foram confirmados, porque os reais ninguém sabe quantos são, mas serão muitíssimo mais, dado que a esmagadora maioria dos casos é assintomática). Isto é: por cada mil infecções diagnosticadas, morre uma pessoa abaixo dos 60 anos, e muito provavelmente, como tem informado a Direcção-Geral de Saúde, porque acrescentou esta infecção a outras doenças crónicas pré-existentes, ou seja, sucumbiu a um misto de patologias. Nestas faixas etárias pré-seniores, felizmente, a pandemia parece ser bastante selectiva e parcimoniosa.

Dito isto, não se consegue compreender o seguinte: por que se tenta manter quase um país inteiro fechado em casa? Por que não pode ir trabalhar quem tem menos de 40 anos, se estiver saudável, com os devidos resguardos e precauções? Por que não hão-de fazê-lo também os que têm menos de 50 ou de 60 anos, se o desejarem e se sentirem em condições, mas dispensando generosamente quem tenha alguma doença crónica ou algum historial clínico de risco, ou quem se sinta realmente ameaçado ou amedrontado pela epidemia? Por que não nos concentramos em proteger os que são clinicamente mais débeis e os maiores de 60 anos, se é nesses que se concentra esmagadoramente a mortalidade do novo coronavírus? Por que não os confinamos sobretudo a eles e os protegemos criteriosamente do contágio por todos os meios ao nosso alcance (incluindo também aqueles mais dispendiosos que uma economia a funcionar pode conseguir gerar e proporcionar-lhes)?

Últimas questões, de índole sanitária: e se todo este confinamento indiscriminado fosse afinal um erro colossal, privando a população menos idosa de ir obtendo naturalmente uma imunidade espontânea, gerada a partir de um contacto de baixa intensidade com o vírus, enquanto ele está ainda menos disseminado do que virá a estar? E se esta tentativa de nos pôr a todos numa redoma domiciliária nos expuser mais tarde a um perigo maior, por falta de imunidade espontânea, se viermos a estar expostos ao mesmo vírus numa concentração muito mais elevada ou a uma outra estirpe mais agressiva?

Pessoalmente, tenho a legitimidade moral para questionar tudo isto porque pertenço a um grupo de risco e tenho consciência disso. E percebo, porque não é assim tão difícil, que até as autoridades de saúde andam ainda às apalpadelas, sem saberem com segurança o que fazer, embora se refugiem em linguagem técnica e noções de manual. É um fenómeno novo e ainda ninguém sabe bem como lidar com ele. O facto de muitos países terem optado por idênticas estratégias e procedimentos é sobretudo um fenómeno de mimetismo, não de consenso científico. Mas não parece haver muita racionalidade em algumas das opções tomadas.

Oxalá a hecatombe económica não venha discretamente a provocar mais baixas do que a própria pandemia... Um empobrecimento abrupto e generalizado poderá trazer consigo escassez de bens, criminalidade, subnutrição, subinvestimento em estruturas e equipamentos de saúde, muitas doenças mal tratadas ou sem tratamento por motivo de carência económica ou de meios hospitalares, esgotamentos, depressões graves, suicídios, desespero, eventualmente tumultos civis, comportamentos de risco e vários outros fenómenos deficientemente processados pelas estatísticas, mas nem por isso menos reais.

Haverá bom senso suficiente para lidar com uma situação tão complexa e multifacetada? E mesmo para pensar contra a corrente, se necessário? Por enquanto o que parece é que alguém provocou um estampido e as gaivotas debandaram todas do areal… Estará a nossa reacção a ser proporcional à ameaça? Ou apenas à incerteza e ao pânico que ela causa? Ainda não está claro. Mas precisamos de o saber DEPRESSA, porque o país está a afundar muito rapidamente…
E aviso: não subestimemos os efeitos de um colapso económico, porque os danos não serão apenas económicos. Longe disso. E iremos arrepender-nos amargamente.


domingo, 22 de março de 2020

Dois pesos, duas medidas...?


Por favor, alguém me explica por que estamos a repatriar os turistas por motivos de saúde pública, mas não os migrantes ilegais?

Se agora enxotamos com poucas cerimónias os estrangeiros que ainda teimam em vir para cá passar apenas alguns dias de férias, por serem reconhecidamente um factor de risco nesta pandemia, por que não os que vieram irregularmente com intenções de ficar de vez?

Por que é que uns são recambiados e aos outros se faz vista grossa?

Se até os turistas e estudantes universitários que vêm dos países mais desenvolvidos do mundo são nesta altura encarados como possível vector de contágio, os migrantes que vieram de países subdesenvolvidos e com fracos hábitos de higiene são inócuos?

Por que barramos a entrada àqueles que pretendem entrar pelos portões da frente, mas não àqueles que continuam a chegar pela porta do cavalo?

Os viajantes maioritariamente civilizados que vêm de países com hábitos de solidariedade cívica semelhantes ou melhores que os nossos devem partir, mas os aventureiros ou delinquentes ou clandestinos que vêm das regiões do mundo onde imperam o caos e a bagunça podem ficar?

Os turistas e os estudantes de intercâmbio vêm contaminar-nos, mas os imigrantes ilegais vêm ajudar a nossa economia?

Neste momento até os estrangeiros que provêm de culturas onde está enraizado um espírito de disciplina individual e colectiva que nós apenas podemos invejar, como japoneses ou coreanos, são considerados indesejáveis, só por virem de fora, mas africanos e latino-americanos, “grosso modo” sobejamente conhecidos pela sua endémica indisciplina pessoal e cívica, são benvindos e toleráveis, só porque os consideramos culturalmente mais “próximos” de nós?

Parece-me que há aqui uma espécie de “racismo” ao contrário, agora que é legítimo falar de racismo para tudo.
Parece-me que há aqui uma xenofobia selectiva, que está a afinar pelo diapasão errado e que resolve tomar por alvo apenas os turistas e os nómadas universitários, quando não deveriam ser só eles os visados.

Estamos a assistir em crescendo a uma grande purga profiláctica, porque é de uma purga que se trata, tornada necessária pela calamitosa situação actual e que vai inviabilizar duradouramente o turismo, mas por que são poupados todos aqueles que por cá andam sem autorização de residência e sem visto válido?

Algumas destas perguntas são muito inconvenientes, mas é decerto uma boa altura para procurar as respostas. E a pertinência delas irá aumentando com a rápida e previsível progressão das infecções e dos óbitos, à medida que se for percebendo quem são os grupos étnicos mais propensos a desrespeitar a quarentena e as regras de higiene e contenção impostas.
Chegará inevitavelmente a altura de se cogitar o seguinte: quem circula por aí que nem sequer devia cá estar? E por que é que as autoridades, mesmo numa circunstância dramática como esta, não fazem cumprir as leis da imigração? E de que recursos estão a viver os residentes ilegais, com a actividade económica semi-paralisada como está? Muitos cidadãos gostariam de saber.

Haverá alguém com coragem para levantar tais questões na imprensa, nas televisões, na Assembleia da República?

sábado, 7 de março de 2020

Imigração: finalmente, um ponto de viragem?


Notícia saída recentemente a público num semanário:

"Para que os migrantes possam beneficiar de determinadas protecções como acesso a advogados, intérpretes e direito de permanecer na Europa, terão de entrar legalmente em território europeu e não ilegalmente -- determinou o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, cujas decisões são referenciais para 47 países europeus e compulsórias para todos os 27 países membros da União Europeia."
(...)
"A decisão, que na prática autoriza os governos europeus a deportarem sumariamente migrantes ilegais no momento em que violam a fronteira, transfere para os Estados-Nação europeus alguns poderes de tomada de decisão quanto à imigração. A deliberação é vista como vitória histórica para aqueles que acreditam que os Estados-Nação soberanos têm o direito de decidir quem pode e quem não pode entrar em seu território."

E nós por cá, estamos à espera de quê para deportar todos os imigrantes indesejáveis que entraram e permanecem ilegalmente no país? Estamos à espera de Godot...
Deixamo-los andar e circular à vontade, como se fossem cidadãos de pleno direito.
Deixamo-los ocupar casas ilegalmente, sem que ninguém os tire de lá.
Deixamo-los construir clandestinamente em terrenos que não lhes pertencem.
Damos-lhes protecção social e assistência na doença, permitindo-lhes beneficiar gratuitamente de um sistema dispendioso para o qual nunca contribuíram.
Atribuímos-lhes subsídios para isto e para aquilo, como se tivéssemos obrigação moral de os apoiar na aventura temerária em que se meteram, ao virem para cá sem bases de sustentação.
Construimos ou recuperamos bairros sociais que nos custam milhões, para que muitos deles os aproveitem como antros de crime ou para negociatas lucrativas de subarrendamento ilegal, e sem que paguem sequer as rendas exíguas que deveriam pagar.
Damos a muitos deles apoios que não damos aos nossos idosos mais carenciados.
Toleramos que andem por aí impunemente a semear dívidas e abusos diversos, pregando calotes a quem podem, incluindo ao fisco, à segurança social, aos hospitais, aos senhorios, às empresas de telecomunicações, aos fornecedores de água e de electricidade, às câmaras municipais.
Não os impedimos de se movimentarem à vontade na economia paralela, auferindo durante anos a fio remunerações sem descontos e sem que o Estado sequer se interrogue de que é que vivem.
Deixamos que não paguem impostos e taxas e que beneficiem dos que nós pagamos.
Fazemos vista grossa a que andem sem pagar bilhete nos transportes públicos e saltem as cancelas.
Ninguém quer saber se usam identidades falsas para os mais variados expedientes.
Permitimos que sobre nós cometam intimidações, ameaças ou agressões, sem que sejam expulsos.
Fechamos os olhos a toda uma panóplia de delinquências e criminalidades ligeiras, que muitos dos nossos magistrados consideram meras bagatelas penais que não merecem castigo digno desse nome.
Deixamos passar muita criminalidade mais grave, porque não há meios policiais para tudo.
Deixamo-los andar a conduzir nas nossas estradas sem qualquer seguro, sem carta ou com cartas falsas, ou mesmo ébrios, condenando-os apenas a pequenas multas quando são apanhados, que aliás ninguém os obriga a pagar e acabam quase sempre por prescrever.
Deixamo-los não obedecer a notificações policiais ou judiciais, ou simplesmente fingir que não as recebem.
Deixamo-los vandalizar os nossos prédios, os nossos contentores de lixo, os nossos automóveis, os nossos monumentos, os nossos lugares públicos, sem que ninguém lhes peça contas.
Deixamo-los usufruir de um grau de impunidade de que o português médio não se pode gabar.
Concedemos-lhes assistência judiciária gratuita, paga pelos nossos impostos, para os defender nos processos desencadeados pelas tropelias que cometem ou pelos incumprimentos contratuais em que deliberadamente incorrem, tirando partido da permissividade geral que reina e da ineficácia punitiva dos tribunais.
Criamos tabus e preconceitos para os proteger de todas as acusações que lhes possam ser dirigidas em matéria de falta de civismo, selvajaria, propensão para a criminalidade, parasitismo ou atraso cultural.
Inventamos facilidades absurdas para que se legalizem, quase como se fosse um prémio por terem arriscado vir à margem da lei.
E finalmente damos-lhes quase de bandeja a nossa nacionalidade, como se esta fosse pouco mais do que um mero conjunto de formalidades a cumprir ou uma simples benesse burocrática.
Não lhes exigimos qualquer lealdade, ou sentimento de pertença, ou domínio da língua, ou respeito pelos valores e costumes locais, mas andamos sempre a dizer à boca cheia que queremos integrá-los.
Deixamo-los ser "portugueses" sem que eles nunca o tenham querido ser, a não ser por conveniência.
E acabamos a tratar como "nacionais" mesmo aqueles que abertamente nos desdenham, que desprezam profundamente os nossos hábitos, valores e costumes e que, em caso de hipotético conflito militar ou étnico-religioso, não hesitariam em se virar contra nós.
Conformamo-nos em manter indefinidamente por cá mesmo aqueles a quem consideramos um cancro social e que ameaçam a nossa segurança e perturbam a tranquilidade pública.

Historicamente falando, há coisas que são autênticos contra-sensos.
No passado, e por várias vezes, empenhámo-nos tão encarniçadamente em expulsar ou perseguir judeus e cristãos-novos que faziam parte da nossa elite administrativa e cultural, só porque não professavam a fé oficial, e agora, como que para nos redimirmos intimamente de fanatismos antigos que mancham a nossa história nacional, caímos no extremismo contrário e mal somos capazes de levantar um dedo contra quaisquer imigrantes desordeiros que desafiem as nossas leis e recusem a soberania nacional nos seus bairros étnicos, onde polícias e políticos só entram se eles deixarem.

Afinal de contas, perdemos já todo o respeito por nós próprios e pela civilização a que pertencemos?
Ou ainda nos sobra energia anímica para reagir à progressiva e muito óbvia decadência social em que estamos atolados?
De que massa somos feitos, afinal?
Está na altura de tirar tudo isso a limpo.

E podemos interrogar-nos: será que a nova jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos vai finalmente constituir um ponto de viragem em matéria de imigração? Tudo leva a crer que sim.
Mas ainda não entre nós, com um governo socialista que faz do acolhimento de quaisquer migrantes e falsos refugiados um apregoado motivo de orgulho. E não certamente com uma maioria de esquerda que acredita (erradamente) que todos esses migrantes lhes renderão votos adicionais no futuro.

Enquanto esta situação dura e o descontrolo migratório persiste, os níveis de insegurança e criminalidade aumentam, os níveis de civismo vão baixando vertiginosamente e a composição da nossa população vai-se alterando a um ritmo firme. Para pior.
Mais alguns anos disto e o país ficará irreconhecível.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

A questão das identidades e o descontrolo migratório

    
                                                     "(…) na Europa pós-moderna a identidade individual
                                                     é tudo e a identidade colectiva é nada (…)"
                                                                    Sérgio Sousa Pinto, Expresso, 08/02/2020

         Aí está algo que não é bem verdade, mas que toca numa questão sensível.               
         As pessoas tendem a acumular várias identidades individuais e várias identidades colectivas. Algumas delas sobrepõem-se como as camadas de uma cebola. E outras antagonizam-se, dando origem a conflitos interiores.

           Cada indivíduo tende, melhor ou pior e com maior ou menor ênfase, a assumir o seu sexo ou a sua orientação sexual, as suas particularidades físicas ou emocionais, as suas origens familiares e geográficas, a sua raça ou a cor da pele, o seu nível de habilitações académicas ou profissionais, a sua inserção laboral e os seus hobbies, as suas opiniões e crenças, os seus gostos e objectivos, e por aí fora. Enfim, tudo aquilo que ele julga que o define como indivíduo.

        Tudo o resto que o torna membro de diversas comunidades, para ele, vem geralmente depois, como se fossem meros acrescentos, independentemente da importância que lhes dê: a sua igreja, o seu clube de futebol, o seu partido político, uma associação qualquer a que aderiu, a sua nacionalidade, a sua etnia, a sua cultura regional, a sua civilização.

Como estas camadas “comunitárias” são mais exteriores e, portanto, aparentemente mais desligadas daquilo que o próprio crê ser o núcleo duro da sua personalidade, ele julga-as secundárias e menos relevantes. Mas tal como acontece com as camadas da cebola, as mais exteriores são as mais expostas aos choques e são as que mais estão em contacto com a atmosfera circundante e se ressentem dela. Quando os indivíduos interagem, o processo de conhecimento mútuo e de reconhecimento de identidades vai geralmente progredindo do que é mais evidente e exteriorizado para o que é mais pessoal e íntimo, como que descascando uma a uma as várias camadas da personalidade. O que significa que as camadas mais exteriores são as mais sociais, por assim dizer, e por isso mesmo as mais melindrosas e vulneráveis.

Graças ao egocentrismo moderno e proliferante, o que hoje se está a passar é que as pessoas pretensamente educadas e evoluídas fazem questão de valorizar muito mais as suas idiossincrasias pessoais do que os seus traços colectivos, presumindo que as comunidades a que naturalmente pertencem são aquelas que espontaneamente se formam pela partilha de características individuais. No mundo ocidental, tudo o que é de índole comunitária passou a ser subvalorizado ou suspeito, merecendo pouco mais do que aquela condescendência que se pode ter para tudo o que é tradicional. Há uma aversão crescente, ou pelo menos uma crescente desconfiança e um progressivo distanciamento a igrejas, partidos, regionalismos ou pertenças nacionais, e até mesmo em relação a diferenças civilizacionais.

Muitos membros das elites académicas e empresariais gostam de pensar-se a si mesmos como “cidadãos do mundo” e, até certo ponto, pelo modo como vivem ou pelos horizontes que adquirem, até parecem sê-lo. Mas amiúde compreendem mal o significado disso: ser um cidadão do mundo significa estarmos à vontade em todas as culturas e termos facilidade em lidar com todas elas, mas não significa pertencer indiscriminadamente a todas, o que seria impossível, ou acreditar que todas se equivalem ou que estão no mesmo patamar de evolução e sofisticação, o que tornaria impossível avaliá-las comparativamente sem nos apoiarmos em algum preconceito etnocêntrico (dito de outro modo, tornaria impossível hierarquizá-las como “avançadas” ou “atrasadas” sem tomar como bitola a nossa própria cultura ou qualquer outra que se nos apresente como paradigmática, por escolha arbitrária).

Ora o que acontece é que entre as diferentes culturas não há apenas diferenças de natureza, mas também de grau. Umas estão num estádio evolutivo mais avançado do que outras, o que implica que não partilham o mesmo nível de progressão histórica nem o mesmo grau de refinamento mental e de costumes.

Por outro lado, entre culturas diferentes não há apenas meras diferenças, há quase sempre também algumas incompatibilidades. Enquanto a convivência social e os ordenamentos jurídicos conseguem acomodar razoavelmente as diferenças que podem coexistir pacificamente, alicerçadas em hábitos induzidos de tolerância mútua, elas enriquecem o panorama cultural e trazem-lhe algum colorido; mas as incompatibilidades irresolúveis são motivo de fricções e de hostilidades recíprocas.

Chegados a este ponto, talvez seja melhor ilustrar com alguns exemplos óbvios. Não é possível acomodar pacificamente no mesmo sistema jurídico a consagração do casamento exclusivo e a poligamia, a paridade entre os sexos e a menorização da mulher, a aceitação dos “crimes de honra” e a proibição de fazer justiça pelas próprias mãos, os direitos dos menores e a mutilação genital de crianças, o canibalismo e a proibição de profanação dos cadáveres, a escolaridade obrigatória e o trabalho infantil que impeça a sua frequência, assim como não é possível fazer coexistir ordeiramente no mesmo caldo de cultura a higiene pública e a flagrante falta dela, o civismo e a rebaldaria, o trato educado e a agressividade arrogante, o tendencial cumprimento das leis e a elevada propensão para a criminalidade, o respeito generalizado das regras e os hábitos arreigados de delinquência. Fatalmente, estes diferentes traços culturais entrarão em choque com alguma regularidade e virulência.

Cada cultura não se diferencia das outras apenas em pormenores exóticos e pitorescos como a indumentária e a gastronomia, as devoções religiosas e as formas de saudação, os estilos de arquitectura tradicional ou as tradições folclóricas. A cada cultura correspondem valores, atitudes e comportamentos que as diferenciam das demais. E das duas, uma: ou essas diferenças podem coexistir pacificamente entre si, porque não se molestam umas às outras, ou revelam incompatibilidades que as fazem entrar em atrito e depois em choque declarado.

Como a realidade demonstra sobejamente, não só entre culturas como entre pessoas, algumas poucas características conflituantes bastam para impedir a harmonia ou a irrelevância das restantes. Às vezes basta apenas uma. Quantas paixões aparentemente destinadas ao idílio não foram já arruinadas por um simples pormenor insuportável! Nas questões de vizinhança, tudo se passa de modo irritantemente análogo. Basta uma particularidade desagradável para afectar uma boa impressão de conjunto, e se essa particularidade não for facilmente suportável até a boa impressão de conjunto depressa acaba por desvanecer-se. O negativo tende a sobrepor-se ao positivo, tal como uma simples dor de dentes faz logo desaparecer o bem-estar geral.

É também por considerações deste género, pesem embora as abstracções ou as analogias apressadas, que as migrações indiscriminadas e descontroladas criam um mal-estar crescente e aumentam rapidamente o potencial de conflito étnico. Quando se misturam indiscriminadamente culturas que não são compatíveis em alguns dos seus aspectos fulcrais (sobretudo, nas atitudes e comportamentos) não se deve esperar que no fim prevaleça a tolerância. Esta dirige-se com facilidade às diferenças inofensivas, por mais contrastantes que sejam, mas não às incompatibilidades incómodas, e ter de conviver forçosamente com estas últimas conduz inevitavelmente ao conflito e à erosão da própria tolerância. Tal como acontece na química, algumas misturas podem tornar-se explosivas.

Antes de tentar viver no melhor dos mundos possíveis, os políticos fariam melhor em tentar arrumar razoavelmente aquele que temos. E para isso convém começar por percebê-lo. Nos tempos modernos, de fácil mobilidade, nenhum país pode prescindir de uma criteriosa política de população. Ou a violência étnica, mais dia menos dia, ressurgirá em grande escala.
                                                                                                                            

sábado, 16 de novembro de 2019

Ser ou não ser de extrema-direita, eis a questão


Na anterior legislatura, só com a contribuição generosa do PCP e do Bloco de Esquerda, tínhamos no Parlamento nada menos do que 36 deputados de extrema-esquerda ou afins. Quase ninguém se escandalizou por isso, o que foi, segundo então ouvimos, um sinal de maturidade democrática. Não só pela aceitação generalizada do fenómeno, mas também pelo facto de esses dois partidos parecerem continuar dispostos a renunciar temporariamente aos seus ímpetos revolucionários, dado a conjuntura não ser a melhor.

Na actual legislatura, a quantidade de deputados da extrema-esquerda caiu para apenas 31 deputados, o que já foi motivo de escândalo para alguns. Parecia ser uma injustiça, depois de tantas negociações e arruadas que fizeram em prol do país. Mas ainda assim, segundo certas perspectivas, continuaram a ser muitos.

O grande fenómeno recente foi termos passado finalmente a ter também um deputado de extrema-direita. E isso sim, suscitou a indignação geral, excepto a do próprio e seus apoiantes. Não sei se deveremos ver nisto também um sinal de maturidade democrática e de contenção cívica, visto que, até ao momento em que escrevo, o eleito ainda não sofreu nenhum atentado nem lhe fizeram um auto-de-fé no Terreiro do Paço. O que mostra que, contra a vontade dos discordantes, vamos no bom caminho: o da tolerância de costumes.

De facto, já bem basta a consternação de o homem ter sido eleito, não é necessário aprofundar o drama. Mas com ele se quebrou mais um tabu da democracia portuguesa: afinal, o extremismo não é um privilégio exclusivo da esquerda. Nem tão pouco, ao que parece, da esquerda e da direita juntas, visto que um novo e pujante partido, o PAN, pretende empurrá-lo noutras direcções. Estou convencido de que a rosa-dos-ventos ficará satisfeita com isso, ao ver abrirem-se novos caminhos para a navegação (embora só de cabotagem, como sempre).

A dúvida que me assalta é se o eleito é mesmo da extrema-direita ou se existe um esforço concertado para o empurrar para lá, apenas porque diz algumas verdades inconvenientes. Nesta segunda hipótese, corre‑se o risco de ele e os seus apoiantes se convencerem de que é mesmo aí o seu lugar. E isso seria para os críticos como um tiro no pé. O visado bem pode alegar que preza a democracia, que é um europeísta, que nem sequer liga às peculiaridades da nossa arquitectura parlamentar, que mesmo assim ninguém lhe dá ouvidos. E lá diz o ditado: se não podes vencê-los, junta-te a eles. O que neste caso equivaleria a aceitar resignadamente preencher o espaço que quase todos parecem destinar-lhe. Sinceramente, não acho todo este ostracismo uma boa ideia.

Tenho até, aliás, uma teoria também bastante inconveniente sobre este assunto. No fundo, pode não se tratar senão de um equívoco explicável pela nossa história recente. Após a épica revolução de Abril e o tsunami socialista e social-democrata que se lhe seguiu, os partidos que pretendiam mesmo ser de extrema-direita foram ilegalizados ou mediaticamente proscritos, pelo que chegámos ao ponto um pouco absurdo de o partido mais à direita no espectro político que tínhamos ser o Centro Democrático e Social (CDS). Ou seja: nominalmente, deixámos de ter direita (ou melhor, direitas). Na realidade, elas continuaram por aí a ser muitas e várias, mas andavam à nora, sem assumir os seus pecadilhos ideológicos e sem saberem como se apelidar sem serem logo alvo de bullying ou de perseguição jornalística. Nem os simpáticos liberais nem os sisudos conservadores punham os pauzinhos de fora, pelo menos de forma explícita e assumida, chamando logo os bois pelos nomes. Andavam ali num limbo, numa indefinição crónica, até por fim não saberem já quem eram, de onde vinham ou para onde iam, o que é a pior coisa que pode acontecer a uma filosofia política. Ou seja: durante décadas, privado de uma direita assumida e coerente, o país viveu politicamente amputado e nem deu por isso.

Entretanto, tudo mudou ou tende a mudar, mas certos hábitos intelectuais ficaram. Ainda há muita gente disposta a chamar extrema-direita a qualquer coisa que mexa um pouquinho mais à direita que o CDS, que até hoje ainda não renunciou a posicionar-se (pelo menos parcialmente) no centro. Daí que depois fique difícil atribuir as cadeiras no Parlamento, sobretudo quando nele surgem novas forças políticas, pois que ainda há pouca gente destemida a preferir abertamente sentar-se à direita do hemiciclo e os deputados da esquerda e do centro, tal como os da direita envergonhada, recusam firmemente sentar-se ao colo uns dos outros. O que vale é que, não obstante algumas escaramuças, tem imperado o sentido prático. Senão teríamos de reduzir drasticamente o número de deputados para conseguir sentar todos, o que não deixaria de ser um daqueles males que vêm por bem.


sábado, 9 de novembro de 2019

A gaguez como virtude política


Se eu for coxo, não participo numa corrida de competição com obstáculos.
Se eu for surdo, certamente não compro bilhetes para ir a um concerto.
Se eu for cego ou absolutamente míope, não me inscrevo num campeonato de tiro.
Se eu for mudo ou tiver uma gaguez severa, não me candidato a orador parlamentar.
Tudo isto é, no essencial, uma questão de simples bom senso. Ou será que não?

Por estes dias, o país assiste aturdido e confrangido ao triste desempenho de uma deputada gaga de origem guineense que logrou fazer-se eleger para o nosso Parlamento, vá-se lá saber porquê. Na verdade, embora se especule muito, ninguém entende muito bem o que é que a dita senhora foi para lá fazer, porque nada de relevante se retira das suas patéticas intervenções que justifique tão improvável escolha. Mas mandam a boa educação e a nossa apurada correcção política que se omita que a visada nos dá um triste espectáculo sempre que abre a boca, fazendo daquele seu defeito ou feitio um motivo viral de mero sensacionalismo mediático. A senhora ganha alguma fama, o Parlamento perde alguma credibilidade, mas ambos se tornam motivo de chacota, e nada disto é saudável.

Qual foi então a intenção de quem a meteu como cabeça-de-lista numa candidatura partidária? Lembrar ao país que há pessoas gagas? Obrigado, já sabíamos. A inverosímil deputada traz alguma contribuição intelectual que valorize a sua participação no hemiciclo? Até aqui, não vimos nada. O objectivo era dar representação a alguma minoria desfavorecida? Talvez sim, mas nesse caso tenho várias questões a colocar.

A deputada, de que não menciono o nome porque não é preciso e porque não se trata aqui de particularizar, mas de escalpelizar a racionalidade do fenómeno em si mesmo, vem afinal ao quê? Vem representar os gagos, ou as pessoas de raça negra, ou as mulheres, ou quem tem alguma orientação sexual fora do padrão dominante, tal como a dos homens que gostam de andar de saias? Ainda nada lhe ouvimos nesse sentido. Mas se fosse esse o caso, a senhora deputada estaria lamentavelmente equivocada, porque a sua função constitucional é a de representar todos os portugueses e não apenas as minorias da sua predilecção. Pondo a coisa noutros termos: de um ponto de vista formal, ela simboliza, juntamente com os outros deputados, todos os cidadãos do país, não apenas os eleitores, não apenas o distrito por onde foi eleita, não apenas os simpatizantes ou os distraídos que votaram nela ou no seu partido. Ela não é paga pelos nossos impostos para fazer lobbying, mas para pensar o país como um todo. Ela é uma voz da nação, razão pela qual a nação deveria ter mais critério e a voz deveria ter mais noção das suas limitações para o cargo.

À superfície e em concreto, pode até parecer que é a própria pessoa que está em causa. Mas não. Ela tem tanto direito como qualquer outra a candidatar-se e a ser eleita, desde que reúna os requisitos legais para isso. Mas há certos direitos que é ridículo exercer.

No fundo e em abstracto, pode dizer-se que ela foi eleita, como todos os outros deputados, para representar uma população inteira, que é composta por pessoas de orientações diversas, incluindo maioritariamente as que não são gagas, que não são de raça negra ou sequer de origem africana, que talvez sejam mais mulheres do que homens, mas por uma escassa margem, e que decerto são apenas prosaicamente heterossexuais. Mas se ela se esquecer disso, passará num ápice da gaguez vocal para a gaguez política. E aí deixará de ser novidade, pois é óbvio que não faltam gagos desses no hemiciclo.

Apesar de tudo, é possível ver um aspecto positivo nesta sua deficiência da comunicação verbal. Não há nenhum mérito especial em ser mulher, ou em ser de raça negra, ou em fazer-se assessorar por gente de gostos estranhos. Tais atributos são (ou deveriam ser) neutros. Mas pode haver uma particular virtude, ainda que involuntária, em ser tão gaga, dado que a senhora deputada, por causa desse seu bloqueio, dificilmente terá tempo e oportunidade e capacidade para igualar a média de disparates e vacuidades que são proferidos pelos seus colegas. E isso é positivo. Talvez até não viesse mal nenhum ao país se passássemos a ter algumas dezenas de deputados mudos. Como muitos só lá estão para marcar presença, também não se perderia muito nem se notaria a diferença.