sábado, 25 de março de 2017

O que é o populismo, afinal? (3)

Em abstracto, podem distinguir-se três perspectivas básicas sobre a natureza do populismo. E se duas já bastariam para turvar um pouco as águas, imagine-se o resultado com mais.

Para uns, o populismo é uma ideologia que considera a sociedade dividida em dois campos antagónicos e inconciliáveis, o povo e a elite (ou, no plural, as elites), e que preconiza alguma espécie de reacção popular, seja ela uma insurreição ou uma revolta eleitoral, contra o “sistema vigente” (o famoso establishment) e aqueles que o controlam, isto é, contra a “casta dominante”, os ricos, os privilegiados, os poderes formais e os poderes fácticos instituídos, em suma, contra todos os que mandam ou se movimentam nos meandros do poder, supostamente apenas em proveito próprio ou em prol de um intrincado cartel de interesses.

A sua tónica geral seria a condenação multifacetada das elites, pela sua ganância ou egoísmo, pela sua corrupção ou incompetência, pela sua incapacidade ou negligência em promover o bem-estar geral. E daí derivaria a urgência de subverter ou reformar radicalmente o próprio sistema político e as orientações tradicionalmente seguidas nas políticas sectoriais pelos partidos predominantes, fazendo prevalecer a vontade popular e os interesses da “maioria silenciosa” (entendida aqui sem quaisquer conotações específicas, apenas como menção genérica ao vasto número de pessoas a quem apenas se pede o voto e que logo em seguida se ignora, por que não é para elas que se governa e se faz política).

Para outros, o populismo não corresponde a uma ideologia em concreto, mas a uma forma de fazer política, e é por isso que surgem populismos em todos os quadrantes (à esquerda, à direita e ao centro). O que mais a caracteriza é o aproveitamento meramente táctico dos descontentamentos existentes, com uma dose generosa de exaltação e oportunismo, extremando posições e radicalizando a linguagem, explorando as emoções e os sentimentos mais básicos das pessoas comuns, introduzindo uma conflitualidade artificial nas pequenas fricções sociais, criando cenários irreais ou fazendo promessas inviáveis, distorcendo os factos e o seu significado, geralmente com recurso a uma demagogia capciosa e a uma retórica simplista, tudo isto guarnecido com uma aparente ausência de visão estratégica e com um reduzido naipe de objectivos definidos, jogando na própria fluidez e relativa indefinição para poder concentrar em poucas questões controversas um escasso programa político, onde desaguem algumas das queixas e frustrações mais comuns entre a população.

Mas há uma espécie de “terceira via” das interpretações do populismo que é em parte uma combinação das duas anteriores e, noutra parte, um acrescento a ambas. Trata-se de admitir que o populismo é uma certa forma de fazer política que tem um núcleo duro de doutrina (ou, pelo menos, de ideologia) e que também acrescenta algo ao debate político, trazendo para a ribalta os interesses e as ideias das pessoas comuns (ou de uma boa parte delas) que são habitualmente menosprezados pelas elites, em geral mais vocacionadas para implantar a sua mundivisão do que para respeitar o senso comum e mais empenhadas em prosseguir os seus interesses e carreirismos do que em pugnar pelo interesse geral.

Nesta perspectiva das coisas, torna-se portanto quase natural enfatizar o princípio da soberania popular e dar voz a grupos que não se sentem adequadamente representados pelo poder político instituído ou pelos tradicionais partidos de oposição, acusados de abraçar, cada um a seu modo, causas e medidas “politicamente correctas” (ou seja, estereotipadas e de matriz ideológica) que não espelham o sentir ou as convicções de grande parte da população, nem as suas necessidades, nem as suas reais preferências.

Ora é preciso reconhecer que, se o populismo dá voz a grupos e tendências que não se sentem representados nos partidos e coligações que habitualmente alternam no poder político, então ele funciona como um correctivo democrático, ao promover a politização aberta de questões que tendem a ser ignoradas ou menosprezadas, mas que encontram eco em muitos votantes. No caso dos populismos de esquerda, costumam ser sobretudo as desigualdades económicas gritantes e a falta de protecção de direitos individuais. No caso dos populismos de direita, costumam ser sobretudo as consequências dos excessos migratórios e a preservação da identidade nacional. E no caso dos populismos de centro, pode ser alguma combinação de ambas estas tendências ou a mera afirmação das vozes moderadas ou híbridas que tendem a ser desdenhadas ou escarnecidas em sociedades crescentemente radicalizadas. Mas está sempre presente um certo denominador comum, que é a alegada incapacidade das elites instaladas para actuarem em sintonia com as necessidades, as preocupações, os anseios e as expectativas das pessoas comuns, assim esvaziando na prática o sentido do seu voto.

Esta terceira interpretação do populismo parece ser a que oferece mais substância.
Se o populismo não tivesse uma ideologia estruturada, por mais rudimentar que fosse, seria difícil distingui-la da mera demagogia. Mas tem.
Se o populismo não tivesse uma estratégia, mesmo que só implicitamente assumida, seria difícil distingui-lo do mero oportunismo político. Mas tem.
Se o populismo não tivesse factos e razões a alimentar fartamente a sua capacidade de persuadir e expandir-se, não alastraria como fogo na palha. Mas tem.

Por estes três motivos, o que de mais sensato as “elites” podem fazer, enquanto é tempo, é trazer para o centro do debate político, na sua inteira verdade e crueza, tudo o que está a contribuir para a proliferação do populismo, assumindo honestamente que não há fumo sem fogo e que são necessárias soluções urgentes para vários problemas que há muito andam a ser negligenciados. Mas, ao dizê-lo, refiro-me aos problemas tal como os sentem e vêem as pessoas comuns e não os defensores de todas as ortodoxias em voga, sejam elas quais forem.

É que nisto de populismos é preciso ter muito cuidado: sabe-se como começam e como proliferam, mas não se sabe como acabam. No hipotético saldo final, podem trazer correcções à democracia ou constituir uma ameaça a ela. Tudo depende de diversos factores difíceis de controlar. Mas a púdica e hipócrita atitude agora mais em uso, do género “credo, cruzes, t’arrenego”, não vai contribuir para a pacificação social nem para a sanidade do funcionamento do sistema político. As pressões demasiado tempo comprimidas acabam por rebentar. E os danos são imprevisíveis.

quarta-feira, 15 de março de 2017

A grande ameaça

Se o actual descontrolo migratório continuar, não será a Europa a integrar os imigrantes, serão os imigrantes a desintegrar a Europa.

terça-feira, 14 de março de 2017

Feminilidade e feminismo

Ser feminista não impede ser feminina. Pelo contrário, é parte essencial.
Para uma mulher, adoptar comportamentos, preferências ou padrões tipicamente masculinos pode ser uma questão de escolha, de gosto ou de temperamento, mas não é necessariamente uma afirmação de si nem uma emulação de género. Pode ser apenas mimetismo, o que bem vistas as coisas, é a opção menos feminista que há, logo a seguir à humilhação e à subserviência.
O verdadeiro feminismo não esconde as semelhanças, mas assume as diferenças.

sábado, 11 de março de 2017

O que é o populismo, afinal? (2)

1. Há não muito tempo atrás, num semanário de grande tiragem, um jornalista descrevia o actual exercício da função presidencial por Marcelo Rebelo de Sousa como um populismo moderado e ao centro, chique e à portuguesa, somando apoios à esquerda e à direita, e distinguindo-se dos populismos radicais por não pretender crispar ou dividir, mas “fazer pontes, sarar feridas e somar energias”.

Logo à primeira impressão, deparamos aqui com três pequenas surpresas: primeira, numa era de populismos radicais e em que se constata a tendência para ver no próprio radicalismo um dos ingredientes fundamentais do fenómeno, é‑nos apresentada a noção de um populismo moderado; segunda, este é descrito como irradiando do centro e estabelecendo pontes, ou seja, mais ou menos equidistante dos extremos do espectro político; e terceira, trata-se de um populismo “chique”, isto é, popular mas não popularucho, com o seu quê de bom tom e bom gosto, não desagradando portanto às próprias elites e primando por um certo garbo interventivo, enfim, um populismo com estilo.

Para nosso aparente alívio, ficamos assim a saber que populismo não é necessariamente sinónimo de extremismo, conflitualidade ou grosseria. Valha-nos isso. Não obstante, embora esta descrição de um estilo político peculiar seja bastante ilustrativa, talvez não deva muito ao rigor dos termos. Há nela uma certa confusão entre populismo e a busca deliberada da popularidade. Pode haver pontos de contacto ou de intersecção entre as duas coisas, mas é bastante forçado falar de populismo quando a popularidade é obtida sem ser a qualquer preço, ou seja, com critério, com escrúpulo e com princípios. E sobretudo se não pretende minimamente subverter o establishment, mas apenas inundá-lo com a sua influência e condicioná-lo na sua actuação, sem qualquer desrespeito de normas constitucionais.


2. Mais recentemente, surgiu também na nossa imprensa um artigo traduzido de um prestigiado jornal inglês, no qual se falava dos riscos dos populismos centristas, convocando à parada exemplos tão heterogéneos como Berlusconi e Matteo Renzi, Beppe Grilo ou até o ex-chanceler alemão Gerard Schroeder, antecessor de Angela Merkel. O critério de uma tal mistura é bastante discutível. Mas, desta perspectiva, salta aos olhos que o centro político pode estar bem mais povoado de populismos do que desprevenidamente supúnhamos, se os tomarmos apenas como um exercício incaracterístico, inconsequente ou heterodoxo do poder, ou como a disputa dele por métodos irreverentes e retórica iconoclasta, desafiando a classificação estereotipada de esquerda ou direita e não encaixando nos padrões de actuação a que nos habituaram os partidos tradicionais.

No entanto, se adoptarmos este conceito simplista, chocamos com algumas dificuldades. Quando o critério principal da governação ou das várias oposições assenta na adopção das orientações que melhor sirvam o propósito de preservar ou disputar parcelas de poder, sem qualquer visão estratégica que contemple o interesse geral ou o avanço real do país, esgotando-se portanto no mero propósito de contentar ou aliciar eleitores e clientelas, pouco importa até o estilo utilizado, porque nesse caso o populismo infecta a própria substância da acção política. A maior ou menor sofisticação do aparato ideológico torna-se então um pormenor secundário, embora não de somenos. O poder é arvorado como um fim em sim mesmo, ou como algo gerador de recompensas, não como um meio para atingir objectivos definidos que se traduzam em progresso social, económico ou cultural. Trata-se, portanto, de uma apropriação indevida do poder democrático, que desvirtua a sua função e finalidade. E o que prevalece, nesse caso, não é a avaliação do mérito e realismo do que se faz ou pretende fazer, mas reunir sem grandes embaraços éticos todos os ingredientes de acção e de retórica que possam agradar a uma grande quantidade de eleitores, nem que para tal seja indispensável trapaceá-los. É a isso que assistimos correntemente, é esse o pathos actual de muitas escaramuças partidárias.

Ora deste tipo de populismo mais básico está o panorama político repleto. E nem era necessário que alguém salientasse que ele não é de forma alguma isento de riscos, embora não sendo extremista. As populações dos países mal governados que o digam. Mas torna-se difícil destrinçá‑lo da mera demagogia, senão por um único aspecto: é que à demagogia se concede ainda o benefício da dúvida de poder ser utilizada em prol de alguma visão estratégica, enquanto tal possibilidade se nega ao populismo. E é precisamente aí que reside o erro.

Não encontrar estratégia nos populismos em voga é cegueira voluntária. E assim como é deficiência de análise não distinguir entre populismo e demagogia, é-o também a utilização indiscriminada do termo para designar todos os movimentos políticos que medram à margem do espectro tradicional da representação política.


3. A demagogia não precisa de estratégia para prosperar. Basta-lhe o oportunismo de actuação e a habilidade táctica. No limite, pode até contentar-se com a mera fruição pessoal e clientelar do poder. Nem sequer precisa de uma ideologia consistente, basta-lhe saber manipular as opiniões e os humores de uma parte do eleitorado.

Mas alguns dos populismos que hoje singram não se limitam a acicatar ou aproveitar “estados de alma”, descontentamentos, irreverências ou “ideias fracturantes”. Podem ser uma insurgência contra o “politicamente correcto” ou contra qualquer tradicional “arco da governabilidade”, mas não é só disso que se alimentam nem é só por isso que engrossam. Apoiam-se num sentimento popular cada vez mais difundido, criam e alargam novos espaços de opinião pública, revelam uma sofisticação doutrinária e estratégica crescentes. E estão longe de visar o poder apenas como um fim em si mesmo.

Digamos mais: ao contrário do que muitos pretendem, estão longe de ser apenas um exercício de baixa política ou uma onda de irracionalidade que ameaça alastrar até conquistar maiorias ou tornar-se incontornável em futuras coligações de poder. Ao invés de muitos governos em funções, alguns dos chamados populismos sabem bem para onde querem ir e percebem minimamente o que é preciso reformar; e o seu ideário, pelo menos ao nível das lideranças, já não mostra menos consistência do que as cartilhas ideológicas professadas por directórios partidários de vários quadrantes.


4. Goste-se ou não, os populismos representam uma reacção cada vez mais enérgica a muitos erros e abusos que têm sido cometidos, não só na política interna dos países europeus, como na política europeia em geral (e com outros contornos, também na norte-americana). Erros e abusos esses que não falta quem queira perpetuar, apesar dos resultados que estão à vista, numa clara demonstração de prepotência da ideologia sobre o realismo. Mas a reacção gerada não consiste apenas em vago descontentamento que alguém se encarrega de tentar manipular ou encabeçar. Tem muito mais densidade do que isso.

Não é portanto assisado falar displicentemente de populismos sempre que surgem opiniões, movimentos ou lideranças que não encaixam no catálogo tradicional das opções ideológicas e partidárias. Não obstante a sua diversidade e diferentes graus de sofisticação intelectual, os populismos em ascensão têm mais consistência e fundamento do que se pretende atribuir-lhes. E apesar da atenção que lhes dedica, a imprensa em geral trata-os com desdém e revela em relação a eles uma certa ausência de espírito crítico que se traduz precisamente num claro excesso de criticismo. Não há, em geral, a preocupação de distinguir o trigo do joio e de perceber o que realmente se passa. O populismo parece um mal em si mesmo. Mas não. O mal em si mesmo é que fortalece cada um dos populismos. Contudo, estranhamente, poucos ousam nomeá‑lo com todas as letras. Porquê? Porque apesar de todas as muitas irreverências do nosso tempo, continuam a existir alguns tabus. Mesmo para a imprensa.


5. Entretanto, como pano de fundo, alastra um crescente mal-estar no mundo ocidental, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos da América, que tem causas idênticas, mas que é alvo das explicações maís díspares, muitas delas apenas estereotipadas, especulativas, impressionistas ou erráticas. Há uma resistência obstinada em apontar o dedo às verdadeiras causas dos populismos, dado que elas chocam de frente com o “politicamente correcto” dos nossos dias, em várias versões e quadrantes. E é também por isso que os chamados “populismos” (incluindo os que o são, os que apenas parecem sê-lo e os que arbitrariamente vêm sendo designados como tal) crescem simultaneamente à esquerda, à direita e ao centro.

Pode haver diferentes interpretações sobre a raiz dos problemas actuais. Mas uma coisa é certa: os rótulos superficiais e apressados sempre serviram para mascarar o pouco entendimento das coisas, umas vezes por mera incapacidade de entendê-las, outras vezes por falta de vontade. Os tabus políticos em vigor colaboram em ambos os casos.

Eis a questão fundamental que deveria preocupar-nos: que mal-estar geral é esse, tão intenso e omnipresente, que gera populismos em ascensão vertiginosa em tantos países quase em simultâneo? Não, não é a alegada disfuncionalidade do euro. Nem a globalização em abstracto. Nem a irracionalidade de certas políticas financeiras e monetárias. Nem tão-pouco o facto de o projecto europeu marcar passo e se acentuarem as divergências regionais. Tudo isso já existia antes de proliferarem os populismos. O fenómeno crucial é outro. Mas seja ele qual for, não encontra expressão nem resposta adequada nos partidos tradicionais. É por isso que emergem os outros, obviamente.

Esta impressionante vaga de fundo surge em contracorrente com alguns dos valores, códigos, catecismos, rituais, ilusões e hipocrisias que foram adoptados durante décadas pelos partidos e ideologias do costume. A opinião pública está a mudar na sua composição, a ritmo acelerado, sem que as instituições e os média consigam acompanhar o passo. E o facto de os jornalistas e comentadores estarem maioritariamente a errar o alvo nas suas análises contribui enormemente para que as opiniões e simpatias das pessoas inconformadas fiquem acantonadas em movimentos políticos alternativos, emergindo das várias brechas do sistema politico. Mas não se limitam a ocupar os espaços vazios, comprimem os espaços dos outros, ganhando progressivamente terreno. E já não é possível despachá-los a todos, como simples lixo, para o caixote dos extremismos. Como pode ver-se, a “peste” está a alastrar depressa e bem. Mas será mesmo de uma “peste” que se trata?


6. Que espera a imprensa para levar realmente a sério este novo fenómeno, compreendendo-o nos seus fundamentos e na sua amplitude, em vez de tanto se empenhar em demonizá-lo nas suas múltiplas manifestações, atitude essa que não nos levará a lado nenhum, excepto a um impasse duradouro e a um cisma social? Detectar nos populismos apenas a ameaça de um qualquer retrocesso histórico é superficial e enganoso. Repito: eles trazem em si algo de novo e é preciso perceber o quê. De outro modo, quem alimentar o tabu estará apenas a contribuir para um diálogo de surdos. Ora não é para isso que a imprensa serve.  

Se quisermos começar a levantar a ponta do véu, teremos de começar a falar desapaixonadamente sobre as reais dimensões, as consequências cada vez mais devastadoras e os riscos potenciais de várias migrações descontroladas: de pessoas, de capitais, de empresas, de empregos, de receitas fiscais, de poderes decisórios… e de culturas que literalmente invadem bastiões alheios.

Sob variados aspectos, andamos há muito tempo a brincar com o fogo, e agora vai ser difícil apagá-lo. Mas virar‑lhe sobranceiramente as costas não ajuda nada. Pelo contrário, podemos todos acabar queimados. Acautelemo-nos, portanto. Os populismos vieram para ficar e é ainda imprevisível como vão evoluir. Mas não lhes faltam razões para existir e crescer, e não é boa política ignorá-las nem continuar a tentar encostá-las desdenhosamente às cordas. Essas razões têm de ser seriamente consideradas e rapidamente trazidas para o debate político dito “normal”, sem preconceitos nem tabus. E os problemas a que elas se referem têm de ser rapidamente enfrentados, antes que seja tarde demais para a paz social.

Em suma: os chamados “populismos” estão muito longe de ser meras manifestações de irracionalidade colectiva. A pior irracionalidade poderá consistir em nem sequer tentar perceber as razões que lhes assistem.

sábado, 25 de fevereiro de 2017

Um diagnóstico invertido

Frequentemente se lê e ouve que um dos problemas essenciais da Europa de hoje é o afastamento dos cidadãos em relação às instituições europeias. Errado. Esse diagnóstico está feito ao contrário: um dos problemas essenciais da Europa de hoje é o afastamento das instituições europeias em relação aos cidadãos.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

O que é o populismo, afinal? (1)

Por estes dias, abundam as definições de populismo e outras tantas utilizações arbitrárias do termo não apoiadas em definição nenhuma. Reina uma certa confusão.

O populismo, tal como o racismo e a xenofobia, passou a querer significar tantas coisas diferentes, entendíveis e aplicáveis segundo as circunstâncias e os países, que já não se sabe ao certo o que significa. Ou melhor, sabe-se, mas o significado original é já talvez o que menos se utiliza. Esses três rótulos desvincularam-se dos respectivos conceitos, ou então (o que talvez seja mais verdadeiro) tornaram-se conceitos multiusos, versáteis, indefinidos, dos quais ressalta sobretudo a carga negativa e a condenação implícita que se quer atribuir a algo.

Como eu prefiro dizer, estes são “conceitos-panaceia”: servem para muitas e diversas ocasiões em que se quer anatematizar comportamentos ou opções alheias, e que, à falta de melhor, se podem aplicar a esmo e sem mais justificações. Precauções, então, também não são necessárias. Parte-se logo do princípio de que com eles se designa alguma maleita política ou moral que nos assola, ou às sociedades em geral, e que, por suposto, só afecta a saúde mental dos outros. Lançar mão de tais conceitos, independentemente do contexto e do bem-fundado do uso, parece já servir para começar a exorcizar o mal.

Digamo-lo por outras palavras: nos dias que correm, ser acusado ou suspeito de populismo, racismo ou xenofobia, seja lá o que for que alguém queira dizer com isso, significa que se merece ser excomungado, ostracizado ou retirado do rol das pessoas decentes. Nada menos. E é quanto basta para gerar de imediato um clima de hostilidade.

Na forma mais benigna deste desvario, houve quem tentasse assimilar o populismo à pura demagogia. Mas nesse caso, se o tentássemos combater a preceito, acabaríamos pior. Ficaríamos sem democracia, porque ficaríamos sem partidos. Haverá algum deles que, salvaguardadas as diferenças de intensidade e de estilo, não seja profundamente demagógico? Não andam todos eles a prometer muito mais do que podem (ou pretendem) cumprir? Até os militantes mais convictos, quando usam os cinco minutos anuais de consciência e bom senso que se permitem a si próprios, ficam a saber isso. Os mais intuitivos e os mais hipócritas sabem-no logo de imediato ou mesmo de antemão, mas também não levam a mal. Consideram que a demagogia faz parte do jogo político. E, infelizmente, faz. Pode-se confrontá-la, mas não se sabe a maneira de a evitar.

Portanto, o que distingue o populismo não é a demagogia, nem sequer alguma espécie particular de demagogia. Ela está em todo o espectro político, em doses e roupagens variáveis. Não será demagogia uma certa banda do nosso hemisfério parlamentar defender um determinado naipe de medidas e proclamar que “não há alternativa”? Há sempre alternativas. Não será também demagogia um outro quadrante celebrar os remedeios habilidosos ou os pequenos sucessos transitórios e artificiais como se fossem a verdadeira resolução dos problemas de fundo, ou o caminho adequado para ela? Navegar à bolina não é a melhor maneira de chegar ao destino pretendido. E não será ainda demagogia, como fazem outros sectores, prometer e afiançar ao eleitorado tudo e mais alguma coisa, indiferentes a constrangimentos externos e orçamentais, como se a realidade não existisse ou fosse simplesmente aquilo que em cada momento se quiser? Essa é a melhor receita para o desastre.

Se fosse possível reduzir o populismo à demagogia exacerbada, ou a uma certa variante dela, ou à mera conjugação de alguns dos ingredientes dela, ainda assim teríamos pano para mangas. Mas não se trata disso. Estamos perante um fenómeno diferente. E com a agravante de que não há um só populismo, mas vários, e alguns deles são de sinal oposto.

Para nos entendermos, vai ser preciso desembaraçar a meada. Até porque já não falta por aí quem chame populismo à simples tentativa de chamar a atenção para os factos incómodos ou para as verdades inconvenientes.

Em todo o Ocidente, no que respeita à terminologia política, estamos prestes a construir uma nova torre de Babel. E um dos efeitos disso pode vir a ser uma pandemia pior do que a rápida expansão da demagogia.

Por que digo isto? Porque, face aos fenómenos sociais que grassam nesta nossa parte do mundo, e atendendo à velocidade com que alastram, fazer diagnósticos errados não é apenas péssimo, é mortífero. Nem sequer acertar no nome das coisas, mais do que não perceber os sintomas, significa não perceber as causas. E quem não percebe as causas dificilmente poderá acertar nos antídotos. O prognóstico, portanto, é assustador.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Um novo conceito de democracia?

Comecemos pela contagiosa histeria anti-Trump que tem apimentado as eleições americanas. É o assunto que está mais na berra.

As televisões mostraram-nos hordas de manifestantes que vieram para as ruas partir montras, incendiar veículos e arremessar objectos contundentes à polícia, tudo isso, ao que parece, como uma saudável manifestação do chamado “direito à indignação”. Que tal direito exista nestes precisos termos é o que pode inferir-se dos comentários implicitamente aprovadores de quase todos os analistas e comentadores, também eles fortemente indignados com o resultado eleitoral, numa aliás rara sintonia de estados de alma opinativos e argumentativos.

O povo americano, é o que se conclui, enganou-se. Ou pior do que isso, foi enganado. Não votou em quem devia. Escolheu o candidato errado. Não faltou quem dissesse que as eleições deveriam ser impugnadas, repetidas, rectificadas, ou quem não lhes atribuísse valor algum. Como é óbvio, se a imprensa quase em peso está contra o vencedor, e já estava antes de ele o ser, foi um atrevimento descabido o povo americano ter votado nele. Mais inaceitável se torna o facto, se até a esmagadora maioria da classe política está também indignada. Pelos vistos e contados, o candidato em questão só ganhou porque a maioria mais alarve de todas, a dos eleitores, votou nele.

Ah, mas isso não é verdade, dizem logo alguns iluminados céleres. O candidato que ganhou teve menos três milhões de votos do que a sua grande rival. É certo que ninguém se atreveu ainda a falar de fraude eleitoral, porque tudo funcionou segundo as peculiares regras do sistema americano, em prática há mais de duzentos anos. Mas foi pelo menos uma distorção do próprio sistema, em si próprio questionável, que já mais de uma vez permitiu que perdesse o candidato que mais votos individuais recolheu (tal como às vezes acontece, por exemplo, na execrável democracia inglesa, com o seu sistema de círculos uninominais, agora tão estranhamente ambicionado pelas gentes lusas e outras).

Já havia antes quem tivesse criticado o sistema eleitoral em vigor, mas pouca. Na América, as tradições políticas têm muito peso e ajudam a sustentar a estrutura federal do país, resultante da sua singular história e geografia. Mas parece que desta vez esse sistema eleitoral, que até aqui tinha servido muito bem, produziu uma aberração. Ainda assim, são menos os que criticam o próprio sistema em si do que os que vituperam quem ousou ganhar à custa dele. E essa é a peculiaridade maior de todas.

Julgava eu, na minha imaturidade política, que quando é eleito um presidente ele passava a ser o presidente para todos os nacionais e residentes do país que o elegeu. Mas não, isso era dantes. Muitos dos manifestantes que vieram para as ruas exibir o seu descontentamento e indignação empunhavam cartazes dizendo “Este não é o meu presidente”. Pelos vistos, esses manifestantes (e todos os que, não se tendo manifestado, pensam como eles) passaram a ter como presidente a candidata vencida (ou talvez, quem sabe, algum dos candidatos a candidatos que não passaram sequer das primárias). Por mim, nada a opor. Acho que assim os resultados eleitorais poderão acabar por ficar mais ao contento de todos. A cada um, seu presidente, consoante as suas convicções. Ou seja: o candidato que venceu passa a ser o presidente só dos que votaram nele. Os outros eleitores escolhem a gosto de entre os candidatos eliminados ou vencidos. Por que não? É um novo conceito de democracia. Podemos chamar-lhe “democracia personalizada”. Trata-se de uma inovação importante. Por alguma razão, afinal, a América costuma andar um pouco à frente do resto do mundo, em geral pouco lesto a imitá-la e só perdendo com isso.

Todas as exuberantes manifestações de desrespeito pelos resultados eleitorais passam a ser legítimas, portanto, se resultarem do novo e importantíssimo “direito à indignação”. E se pensarmos bem, para as coisas baterem certo, quaisquer eleições ou referendos deveriam ser repetidos tantas vezes quantas as necessárias até vencer o candidato com a melhor imprensa ou com a orientação mais desejável (estou confiante de que os descontentes do “Brexit” concordarão com isto). É uma ideia nova a reter, que significará um importante passo em frente (para onde, ninguém sabe, mas só os mesquinhos e os reaccionários se preocupam com isso).

É indiscutível, no caso actual, que o candidato mais indesejável venceu, e venceu segundo as regras vigentes. Ninguém percebe como ele se atreveu a tanto. Concordo que não devia ser permitido. Este insurrecto despenteado começou como um outsider, nem sequer era um político encartado, ou nem era um político de todo, e afinal, contra tudo e contra todos, pulverizou os seus rivais republicanos e ganhou, sem ser por uma unha negra, à candidata democrata indiscutivelmente favorita. Até os pais fundadores da nação americana se devem ter revolvido na tumba. Isto não se faz. Ou como agora soa dizer-se, “não é aceitável”.

Houve quem alvitrasse que este resultado só foi possível porque a espionagem russa se intrometeu no assunto e pôs a nu alguns podres da candidata democrata. Os meandros do que realmente aconteceu ainda estão envoltos em mistério. Mas se os russos fizeram isso, não vejo em tal atitude um sinal de parcialidade, mas de pragmatismo. É que acerca do candidato republicano não era necessário pôr nada a nu. Toda a imprensa nacional e internacional (incluindo editorialistas, comentadores, analistas, pivôs, opinion makers e os moços de recados das redacções) se empenhou nisso com entusiasmo e foi sempre unânime em não encontrar em Trump um único ponto positivo. Segundo o consenso generalizado e expresso em uníssono, não havia nele nada que se aproveitasse. Toda a gente com peso e opinião se entreteve durante quase dois anos a enxovalhar o espécime e a ridicularizá-lo. Por que haveriam os russos de perder tempo com ele? Não era preciso.

Que os russos tenham cometido intencionalmente umas inconfidências, fornecendo mais provas para o que já se sabia e mais fundamentos para o que já se suspeitava, foi visto como uma grave ingerência externa no processo eleitoral americano. Estou tentado a concordar. Mas, estranhamente, ninguém considerou uma ingerência externa o facto lastimável de quase toda a imprensa mundial, e sobretudo europeia, ter andado quase concertadamente a fazer uma campanha mediática feroz contra este candidato republicano e a favor da favorita democrata. E à imprensa juntaram-se as declarações bombásticas e os comentários intrusivos de tudo quanto era governante, diplomata, deputado, dirigente partidário, porta-voz ou militante de serviço por esse mundo adentro, sem sequer deixar de fora presidentes e chefes de governo. Se as eleições americanas bastassem, Trump teria involuntariamente promovido a concórdia universal, porque toda a gente que era alguém ou ninguém em algum lado estava de acordo contra ele. Nunca antes se tinha visto tantos responsáveis e irresponsáveis políticos tomarem abertamente partido numa eleição estrangeira. Mas se toda a gente acha que não se tratou de ingerência externa, excepto no pífio caso dos russos, quem sou eu para dizer o contrário? Pelo menos, temos a agradecer a estes últimos que tenham sido comedidos e que só tenham desnudado alguns podres da candidata democrata; se eles tivessem ido mais além e tivessem desnudado mais qualquer coisa, poderia ter sido algo feio de se ver.

Resta concluir que, se Trump partiu quase do grau zero da política e conseguiu vencer contra tamanha oposição, ainda por cima gastando muito menos dinheiro na campanha do que a sua principal opositora, o homem só pode ser um génio político, mesmo que não venha a ser um estadista genial. Nem mesmo o mais talentoso dos seus críticos conceituados poderia ter aspirado a conseguir uma ínfima porção do que ele fez. Durante dois anos, quatro quintos do mundo (ou seria mais que isso?) tratou este inefável candidato como um pária, chamou-lhe quase tudo, de imbecil para cima, fez chacota das suas frases e dos seus gestos, tratou-o como proscrito, atribuiu-lhe todas as aleivosias imagináveis, preteriu-o em favor de todos os outros concorrentes possíveis ou confirmados, preferiu o diabo à companhia dele, viu nele a peste ideológica ou o perigo do apocalipse, instigou todas as consciências decentes e bem pensantes a rejeitá-lo liminarmente, e mesmo assim, ele ganhou. Agora, no rescaldo, especula-se ainda se o novo presidente é mesmo doido, como diziam, ou se foi a América que endoideceu. Por mim, vislumbro uma terceira hipótese: pelos vistos e acontecidos, pode ser que tenha sido o resto do mundo a perder a sanidade. Porque toda esta histeria anti-Trump não é normal.


O que é acima de tudo estranho é que, por muitos disparates que tenha eventualmente dito, o candidato Trump também disse algumas verdades incómodas, que a generalidade da opinião pública apelidada de “culta” não quer admitir nem aceitar, e que se recusa mesmo a analisar com seriedade. Não é bom sinal. Alguém já ouviu falar daqueles remotos dignitários eclesiásticos que, no seu tempo, se recusaram a espreitar pelo telescópio de Galileu, para não serem tentados pelas ilusões do Diabo? Noutros moldes mais modernos, é o que se está a passar agora. É melhor benzermo-nos também.