sábado, 5 de agosto de 2017

Ideias para Lisboa

“Em lugar de falar dos candidatos, parece-me mais útil aproveitar esta época eleitoral para fazer sugestões para Lisboa.” (Sim, alguém já o disse antes, tal e qual, daí as aspas.)

Uma delas é a cobertura da Rua Garrett, da Rua do Carmo e da Rua Nova do Almada com uma grande clarabóia de vidro, à semelhança da galeria Victor Emanuel, em Milão, tornando o Chiado um grande centro comercial de lojas tradicionais.

[A sugestão do vidro não é vinculativa, claro. Poderia ser qualquer outro material com propriedades semelhantes, mas mais adequado para servir de antídoto ao calor diurno no Verão. O projecto não iria descaracterizar a zona, antes pelo contrário; iria valorizá-la e deixaria a actividade comercial desta protegida dos períodos de chuva.]

Outra poderia ser a transferência da Feira do Livro para a zona do Rossio, Praça da Figueira e Martim Moniz, ligando as três praças, e assim dando ao centro um ambiente de festa – ao mesmo tempo que a Feira beneficiaria da presença de esplanadas e lojas à volta (abertas à noite) que a tornariam mais atractiva. E o facto de aquela zona ser abrigada e plana, ao contrário do Parque Eduardo VII, que é inclinado e ventoso, seria um factor de comodidade para os visitantes.

[Esta ideia admite uma alternativa. Como a sua deslocação temporal para Maio tornou a feira do Livro uma feira de primavera, poderia naquela época do ano manter-se onde está. Mas por que não realizar uma outra Feira do Livro que seja uma feira de outono, realizada essa em pleno centro da cidade? Com a enorme movimentação de gente que Lisboa tem actualmente, duas feiras por ano não seriam demais.]

Uma terceira ideia tem a ver com a difícil ligação ao rio em algumas zonas da cidade. Há uma faixa até Algés que não tem praticamente contacto com ele, essencialmente porque a linha férrea funciona como uma barreira de arame farpado que corta o acesso à zona ribeirinha. É o que acontece, por exemplo, em Belém (onde se situa parte importante da oferta turística lisboeta) e zonas adjacentes.

Em tempos defendeu-se o desnivelamento da linha férrea no troço entre o Cais do Sodré e Algés, mas depois chegou-se à conclusão de que esse investimento não seria rentável para a companhia ferroviária.

Há, contudo, uma alternativa que parece ser economicamente mais viável: acabar com o comboio entre o Cais do Sodré e Algés e prolongar até aqui o Metropolitano, criando uma interface fácil e rápida entre as duas vias (isto, sublinhe-se, sem aumentar os custos do transporte misto para os utentes regulares). 

Feito isso, e com acesso facilitado ao rio, uma faixa considerável da cidade iria renascer para o lazer e o turismo, livrando-se do abandono e da degradação que a perseguem há décadas.

Ideias originais? De modo algum. Elas foram lançadas, há mais de dez anos, e quase pelas mesmíssimas palavras (excepto alguns acrescentos meus), por aquele que é um dos mais conhecidos e lúcidos jornalistas portugueses (conotações e controvérsias à parte) e que é também, embora nem todos o saibam, arquitecto de formação. Refiro-me a José António Saraiva, então director do semanário Sol. Trata-se de um homem com ideias notáveis e que durante muitos anos fez, à sua conta, uma boa parte da agenda política e mediática do país, com as suas crónicas semanais (primeiro no Expresso e depois no Sol). Curiosamente, vá-se lá saber porquê, a discussão em torno destas ideias para Lisboa nunca pegou de estaca.

Agora que estamos de novo em ambiente de pré-autárquicas, vale a pena relançar o que ele sugeriu então. Sem ideias preconcebidas.

Para finalizar, resta-me esperar que o autor das ideias não me processe por plágio. Não foi essa a intenção, juro, embora em grande parte me tenha limitado a transcrever o que ele escreveu. O mérito é todo dele, portanto. O seu a seu dono. (E dito isto, espero obviamente ser perdoado, não obstante a minha enorme avareza nas aspas.)

Ah, já me esquecia: a citação logo no início também é dele. 

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

A política do ziguezague

O PSD e o CDS estão a aprender uma dura lição, que desde o início deveria ter sido óbvia: a de que num regime de alternância democrática, todas as medidas de um governo podem ser revertidas por outro. Basta que surjam circunstâncias favoráveis.

Não é certo, contudo, que o PS e a sua escolta parlamentar já a tenham aprendido também.

Enquanto estão em posição de força e dão largas a uma certa arrogância decisória, muitos governantes se esquecem dessa verdade fundamental. Empenham-se em usar quase discricionariamente o poder que detêm, dentro dos moldes institucionais em vigor e das balizas impostas pelas coligações que lideram, esquecendo que o próprio poder tem os seus limites temporais, por vezes mais curtos do que se imagina. E enquanto parecem ainda longínquas as próximas eleições, perseveram no erro de acreditar que o eleitorado tem memória curta e irá decerto relevar os vários desapontamentos e as revoltas entretanto acumuladas, graças ao encantamento hipnótico de algumas benesses concedidas pouco tempo antes do novo sufrágio. Por vezes, enganam‑se.

Que sonham agora os partidos empurrados para a oposição? Reverter muitas das medidas do actual governo. Enquanto isso, queixam-se das reversões que este vai fazendo. Ou seja, estão na fila de espera para a continuação de uma política de ziguezague, que só faz o país perder tempo e recursos.

Um certa doença crónica é comum a ambos os lados da barricada: a aversão aos consensos, a rejeição de soluções equilibradas que não dêem depois azo a reviravoltas bruscas.

O governo anterior, e o PSD em particular, nunca deveriam ter resvalado para um grau de insensibilidade social que permitiu conotá-los com uma impopular orientação neoliberal, que lhes vai ficar colada à pele por muito tempo. Deveria ter havido mais comedimento e bom senso em muitas das decisões drásticas que foram tomadas, desde “o enorme aumento de impostos” até ao “ir além da troika”…

Como se tem visto nos últimos tempos, a consolidação orçamental continuou, mesmo abdicando de algumas medidas draconianas que pareciam não ter alternativa. A austeridade de esquerda trocou os cortes em salários e pensões por cortes nos recursos atribuídos aos serviços públicos (e convém notar cinicamente que os assalariados e pensionistas votam, enquanto os serviços públicos não). A carga fiscal continua elevadíssima e a dívida pública continua a crescer, mas o actual governo teve a habilidade de trocar as voltas a uma boa parte do descontentamento popular, diminuindo ligeiramente os impostos directos e indo buscar mais receitas a taxas e impostos indirectos, repondo rendimentos às pessoas e fazendo novas contratações de pessoal enquanto cortava sem dó nem piedade na despesa de muitos departamentos estatais e no próprio investimento público. Está provavelmente a pecar em sentido contrário ao do governo anterior, distribuindo liberalidades por muitas clientelas do Estado.

Mas não nos iludamos: a dívida pública continua a crescer. O Estado continua a pedir dinheiro emprestado para poder distribuir uma parte dele por tantos bolsos ansiosos. E os excessos que estão a ser cometidos agora arriscam-se a ser a catapulta que um dia trará a oposição de novo ao poder.

Ora muito do que se fez antes, assim como muito do que se faz agora, resulta de meras bandeiras ideológicas e das cegueiras que lhes andam associadas. As rivalidades tribais da democracia sobrepõem-se ao bom senso.

Esquerda e direita são os dois conceitos mais tóxicos da nossa política. São eles que nos condenam a uma evolução económica e social em ziguezague. E o ziguezague, como nos ensina a geometria mais elementar, está longe de ser o caminho mais curto para o progresso.

Moral da história: este país precisa desesperadamente de um regresso ao centro político, que entretanto ficou quase despovoado, espécie de “terra de ninguém”. As ortodoxias de turno em ambos os hemisférios políticos renegam categoricamente o centro-esquerda e o centro-direita (talvez pensem que o Diabo afinal possa deambular por aí…). E apesar de haver até algum espaço político desocupado para uma nova formação ao centro, quando se ouve falar disso não passam de rumores pífios. Ninguém com crédito se chega à frente.

Infelizmente, há também muita gente que pensa que o centro político é apenas uma espécie de indecisão entre a esquerda e a direita. Mas não é. É uma outra forma de estar na política e de procurar soluções (em princípio, menos parciais e menos transitórias) para os problemas. 

sexta-feira, 28 de julho de 2017

Alguns equívocos por desfazer

Ser tolerante não implica permitir que se advogue publicamente a intolerância sectária e virar‑lhe as costas com indiferença, alegando o direito de cada um pensar como quiser.

Ser pacifista não implica condescender em que alguém defenda publicamente ou pratique discretamente alguma forma de violência e fique impune, sem que nenhuma força se lhe oponha.

Ser multicultural não implica consentir que os valores e os costumes dos outros atropelem os nossos com o maior à-vontade do mundo.

Ser defensor de uma imigração controlada e selectiva não significa ser xenófobo ou racista, pois quem o é não quer imigração nenhuma.

Ser laico não implica permanecer neutro perante as doutrinas, os credos, as intenções e as iniciativas dos fundamentalismos religiosos, pois esse tipo de neutralidade acaba por se traduzir sem querer em conivência tácita.

Ser democrata não implica atribuir levianamente a cidadania ou o direito de voto a qualquer estrangeiro que resolva assentar arraiais por cá.

Ser humanista não implica dar a imigrantes ou refugiados mais protecção e apoios do que damos aos nossos concidadãos pobres ou idosos.

Ser internacionalista não implica prezar tão pouco a nossa nacionalidade que a ofereçamos de bandeja a quem só a quer para poder melhorar de vida, de preferência noutro país europeu.

Ser progressista não implica pautar-se por dogmas ideológicos e desdenhar as recomendações do bom senso, pois o progresso é invariavelmente avesso a ortodoxias arrogantes.

Ser idealista não significa virar completamente as costas ao realismo (nem vice-versa).

Ser solidário não implica sentirmo-nos obrigados a fazer por desconhecidos ou estrangeiros o que percebemos que eles nunca estariam dispostos a fazer por nós.

Ser cosmopolita ou de espírito aberto não implica fingir que acreditamos que os nossos padrões culturais valem o mesmo que os de quaisquer outras pessoas vindas doutras paragens, sobretudo se oriundas de países subdesenvolvidos.

Ser actual não implica estar na crista da onda de todas as imbecilidades que se tornam moda.

Ser europeísta não implica acreditar que as nações e as nacionalidades perderam a sua razão de existir.

E talvez mais importante ainda do que o resto: ser inteligente ou solidário (ou julgar que se é) não justifica considerar que todos os que pensam de modo diferente são estúpidos ou mal‑intencionados. É verdade que a inteligência e o altruísmo andam muito mal distribuídos neste mundo, mas nem sempre estão do lado de quem mais deles faz alarde. Talvez até pelo contrário.

E quanto a saber como se distinguem conceitos e preconceitos, isso daria pano para mangas, colete e sobrecapa. Já todos vimos diversa gente muito preconceituosa a combater supostos preconceitos, o que nos deveria servir de vacina. Mas não deixa de ser curioso constatar que muitos dos que aceitam e propagam o relativismo cultural, que interdita qualquer hierarquia de culturas, não alinham pelo relativismo conceptual, no sentido de aceitar que as concepções alheias possam valer tanto como as próprias. O “progressista” típico, sempre tão tolerante em matéria de valores e costumes exógenos (sobretudo quando se trata de imigrantes, refugiados e minorias étnicas ou religiosas) tende a ser arrogante e insultuoso em relação aos seus próprios concidadãos que pensam de maneira diferente. Bastante incoerente, não? E também esclarecedor.

domingo, 9 de julho de 2017

Portugal, sociedade fechada

Uma certa filosofia política habituou-nos a chamar sociedades abertas àqueles regimes políticos em que as pessoas elegem os seus líderes, atribuindo-lhes o encargo de zelar pelos interesses gerais de todo o eleitorado e de equilibrar os interesses conflituantes das várias partes dele.

Em contraste, são sociedades fechadas aquelas em que os líderes, por usurpação do poder ou por abuso dele, se dedicam a manipular ou tiranizar a maior parte dos seus concidadãos, sejam eles tidos como eleitores livres ou súbditos, para proteger e favorecer os interesses de um círculo relativamente fechado.

Digo “relativamente fechado” porque ele não o é em absoluto: há, em geral, alguma porta que se abre para aqueles que se mostram diligentes na gestão desse favorecimento, ou hábeis no seu próprio enriquecimento pessoal, sendo-lhes assim permitido fazer também parte desse círculo.

Nas sociedades fechadas, mesmo quando há eleições fidedignas, o que o eleitorado verdadeiramente escolhe é quem o vai defraudar na governação dos interesses comuns e particulares.

Portugal, nesse sentido, é uma sociedade fechada. Não só os líderes eleitos não conseguem satisfazer as expectativas, como permitem intencionalmente que as várias elites capturem a democracia e a riqueza, num fenómeno perverso que tende para um gradual açambarcamento.

Na política portuguesa, o tal círculo relativamente fechado tem-se chamado “centrão” – o que, acreditem-me, é algo muito diferente do centro político.

Um e outro apenas se assemelham no nome. Enquanto o centro político genuíno procura criar e preservar equilíbrios sociais, protegendo os interesses gerais e doseando adequadamente os interesses particulares, o “centrão” tem sido (e abrindo bem os olhos, continua a ser) a grande mola impulsionadora dos desequilíbrios e do crescimento deles. E refiro-me aos desequilíbrios todos: de poder, de riqueza, de estatuto, de benefícios e de favorecimento legislativo.

Nas sociedades abertas, o principal obstáculo a contornar costuma ser a incompetência, venha ela da incapacidade técnica ou do enviesamento ideológico. Nas sociedades fechadas, como a nossa, o que prepondera é a corrupção. Mas nada impede que uma e outra andem de mãos dadas, porque até na corrupção se pode ser muito incompetente.

É esse, infelizmente, o nosso caso. Há muito tempo que somos vítimas de uma imponderável combinação de corrupção e incompetência.

Para vencer a primeira, teremos de mudar a justiça e as mentalidades. Para vencer a segunda, teremos de reformar profundamente o sistema político.

sábado, 6 de maio de 2017

A União Europeia, o Brexit e os demónios à solta

É confrangedora a curteza de vistas com que a União Europeia está a tratar a questão do Brexit.

Talvez a saída do Reino Unido seja um erro histórico, como alguns dizem. Lamentavelmente, a mim parece-me que não. Mais do que outros motivos, a recusa das instituições europeias em refrear a imigração descontrolada, perseverando numa política liberal de acolhimento e de circulação quase irrestrita de migrantes e refugiados, ademais impedindo obstinadamente o Reino Unido de lançar mão de algumas defesas necessárias contra os excessos migratórios de que tem sido alvo, na prática não lhe deixou outra opção. Não apenas por vontade da maioria do seu pessoal político, mas por vontade referendada da sua população, cada vez mais farta de sentir o seu país descaracterizado e cada vez menos seu, com o ónus adicional (e relativamente traumático) de uma ex-potência imperial ver as suas leis cada vez mais feitas fora de portas. Nestas coisas, os aspectos psicológicos e históricos contam sobremaneira.

Depois de séculos de férrea tradição diplomática e empenho militar em manter na Europa uma espécie de “balança de poder”, destinada a evitar o advento de uma qualquer hegemonia continental que lhe fosse hostil e que ameaçasse a sua independência, os seus interesses comerciais ou as suas possessões coloniais, o Reino Unido tem sido relativamente impotente para travar uma hegemonia partilhada franco-alemã, que leva por arrastamento as respectivas zonas de influência e está a conseguir moldar a seu modo as regras da convivência europeia. Estas regras têm vindo a consolidar-se, não obstante o descontentamento que grassa nalguns países do sul e do leste, por efeito natural do peso económico e demográfico da Alemanha e da França, acrescentado pelos apoios dos outros países de expressão francesa ou germânica. Na prática, estas duas potências estão paulatinamente a conseguir, por via política e negocial, e graças também ao seu músculo financeiro e diplomático, o que durante muitas gerações não conseguiram pela via militar: impor a sua vontade na Europa. Fazem-no por enquanto de forma partilhada e mais ou menos concertada, embora se vá tornando evidente que a própria França está a ficar para trás nesta liderança, vulgarmente designada como o “motor europeu”. E, de mansinho, um projecto ainda não assumidamente federal vai assim ganhando corpo, à revelia das identidades e soberanias nacionais, cada vez mais desgastadas, sem que nunca se tenha tirado a limpo, em escrutínio democrático claro, se os europeus preferem “uma Europa das pessoas”, “uma Europa das regiões” ou “uma Europa das nações”, para além de outras hipóteses possíveis. Ou seja, vamos marchando em frente, com tropeções aqui e ali, conforme os dirigentes alemães e franceses vão querendo, acolitados por outros países que sempre se apressam a querer o mesmo que eles.

O Reino Unido, sendo uma das três grandes potências desta nova Europa em vias de unificação, sempre guardou reservas em relação ao casamento de conveniência das outras duas, não apenas por uma questão de ter finalmente de enfrentar uma hegemonia relativamente adversa, mas porque as tradições britânicas, bastante mais liberais do que as do continente em diversas matérias políticas e económicas, se têm por vezes chocado de frente com os excessos de regulamentação e burocracia impostos pelos continentais, através das novas instituições europeias. Mas os grandes pomos de discórdia têm sido as orientações encapotadamente federalistas dessa recente supremacia franco-alemã e a torrencial invasão migratória que tem assolado as Ilhas Britânicas, com inúmeros efeitos negativos, sem que estas possam legitimamente travá-la no actual quadro jurídico da União.

Recusando-lhe um acordo que pudesse acomodar melhor a permanência do Reino Unido na UE, nem que fosse ao abrigo de um qualquer estatuto de excepcionalidade (que nem sequer seria caso único, porque outros países o têm sob diversas formas), e fazendo vista grossa aos níveis de descontentamento interno e eurocepticismo que por lá grassam, as instâncias europeias acabaram por encurralar o Reino Unido numa alternativa extrema, a de escolher entre a submissão ou a saída, confiando sempre que prevaleceria eleitoralmente a primeira. Enganaram-se. E pior do que isso, não estão agora dispostas a reconhecer o erro e emendar a mão, o que, bem vistas as coisas, até nem seria demasiado difícil e problemático no cenário de uma Europa a várias velocidades. Bem mais dramática, como já está sobejamente à vista, é a avalanche de consequências que essa intransigência ameaça provocar, e ainda a procissão vai no adro.

No fim de contas, e sem exagero, pode dizer-se que foi a União Europeia, com a sua teimosa inflexibilidade, que precipitou este desfecho, que aliás se arrisca a não ser um episódio isolado. Mas os líderes e representantes dos outros países da União preferem não ver as coisas assim, pelo menos até serem mais seriamente confrontados com a real possibilidade de saída de algum outro país (e da próxima vez, quem sabe, talvez um dos países fundadores). Não esqueçamos nunca que foi na França e na Holanda que o Tratado Constitucional foi rejeitado em referendo.

Independentemente do que se pense nesta matéria, a UE está agora a querer demonstrar a força dos fracos, isto é, a querer fazer do Reino Unido um caso de punição exemplar para que o fenómeno não se repita, mas no fundo consciente de que a sua coesão está mais fissurada do que convém admitir e que enfrenta sérios riscos de novas brechas. Como se tem visto, o descontentamento instalou-se em muitos países, vai em crescendo e a União já não parece ter a mesma força atractiva que teve no passado. Nada que não se possa remediar, mas por enquanto é esta a situação.

Ora talvez seja um erro histórico bastante maior a demonstração de arrogância e espírito retaliatório que a União Europeia está actualmente a fazer em relação ao Reino Unido. Algo de que talvez venha a ter motivos bastante fortes para se arrepender, mais cedo do que tarde.

O bom senso aconselharia a que se tentasse manter o Reino Unido politica e economicamente tão próximo quanto possível da União Europeia, conservando-o numa zona de comércio livre, não necessariamente pensando na eventual hipótese de um futuro regresso ou de uma reversão do Brexit antes de ele estar definitivamente consumado, mas porque seria bem melhor manter uma estreita parceria com o Reino Unido do que vê-lo constituir ou integrar um bloco económico rival, ainda por cima bem aqui ao lado. Algo que este país, pelas suas relações privilegiadas com a Commonwealth e com todo o restante mundo de língua inglesa, muito especialmente os EUA, pode conseguir sem excessiva dificuldade. E com uma agravante: é que pode vir a funcionar como uma espécie de paraíso fiscal e polo de captação de investimento, com algumas vantagens competitivas na atracção dos negócios, mercê de um espírito económico mais liberal, mais pragmático e menos propenso a regulamentações excessivas. Em suma: a cooperação seria bem melhor que o duelo, que não deixará de infringir lesões a ambos os lados, seja qual for o lado que se ressinta mais.

Por outro prisma, a UE tem bem mais de quatro milhões dos seus cidadãos a viver e a trabalhar no Reino Unido, enquanto este apenas tem perto de um milhão instalado na UE. Convenhamos que se trata de um trunfo considerável: se as posições se extremarem em relação à concessão de vistos e ao direito de permanência, a UE ficará largamente a perder, tendo em conta não só a diferença dos números, mas também o facto de a economia continental ser em média menos dinâmica do que a britânica e, portanto, serem de esperar maiores dificuldades de reabsorção de um vasto contingente de regressados. E o problema poderá nem se colocar tanto pelo lado do Reino Unido, se as partes se encaminharem para um sistema de quotas iguais ou, em larga medida, menos favoráveis para os migrantes continentais do que a situação actual.

Há também a questão da defesa e segurança europeias. O Reino Unido tem sido, a uma considerável distância, a principal potência militar da União Europeia e aquela que possui os melhores serviços de informações. Passar a tê‑lo fora de um qualquer esquema europeu de defesa, já de si ainda débil e embrionário, não só fará as delícias dos potenciais inimigos da Europa como pode vir a revelar vulnerabilidades difíceis de colmatar a curto prazo. Mas quase passa sem dizer-se que, por enquanto, a UE não fareja perigos sérios ou iminentes nas suas fronteiras externas e por isso não parece muito preocupada, vivendo naquela típica descontração próxima da inconsciência. Ainda não percebeu que enfrenta outras ameaças além da Rússia e do terrorismo, que de resto também não são levadas tanto a sério como a retórica política e diplomática pode fazer crer. A UE continua a comportar-se, a começar pelos seus orçamentos de defesa, como se nenhum perigo sério andasse a rondar-lhe as fronteiras. Ainda não percebeu os riscos que corre a sul nem a ameaça potencial que pode vir a representar a Turquia, se as relações com este país azedarem mais ou se vierem a tornar-se necessárias medidas repressivas, restritivas, desfavoráveis ou consideradas discriminatórias contra os milhões de migrantes turcos que já assentaram arraiais na União. Ninguém pensa nisso, mas a diáspora turca pode vir a ser uma questão tão explosiva como o foi em tempos a diáspora alemã.

Os iluminados de Bruxelas também ainda não anteciparam as desvantagens colossais de o Reino Unido e seus parceiros comerciais mais próximos virem a estreitar mais os laços comerciais com os EUA do que com a Europa continental, ou de aquele poder agir mais autonomamente em relação à China e à Índia, no que respeita à celebração de tratados comerciais e financeiros. A táctica mais consagrada e sábia sempre foi a de o poder vigente manter os recalcitrantes próximos de si e debaixo da sua alçada, para poder controlá-los melhor, mas o que a UE está a fazer, ostentando poses de quase expulsão punitiva, é exactamente o contrário: é empurrar o Reino Unido para a opção que esta já teve de assumir em face da hostilidade manifesta que lhe têm votado, ou seja, o hard Brexit, que pelo menos o deixará de mãos livres para perseguir autonomamente os seus interesses, por mais antagónicos que sejam com os da UE. E ou muito me engano ou não passará muito tempo até que se torne evidente que tal opção acabará por ser uma bênção para o Reino Unido, tendo feito da sua deserção um caso de sucesso, com o impacto indesejável que tal facto poderá vir a ter noutros países da União já não muito felizes com a sua integração (ou, pelo menos, com o grau de integração já existente). Se assim for, a UE arrisca-se a que o feitiço se vire contra o feiticeiro, incentivando nas opiniões públicas de outros países-membros o desejo de sair, em vez de o desencorajarem. E quanto maiores as retaliações agora, maior parecerá depois o eventual sucesso britânico.

A ver vamos, como se costuma dizer. Entretanto, espera-se do governo português, até pela ancestral aliança que temos mantido com a Inglaterra, e que já tão útil nos foi por diversas vezes, que contribua para moderar os ânimos e contrariar o espírito retaliatório que ameaça vir a ensombrar as negociações do Brexit e o perfil político da Europa.

Quanto ao mais, futuramente se verá se é a UE que faz mais falta ao Reino Unido ou se é este que faz mais falta à União. Eu não aposto as fichas todas em nenhuma destas alternativas, mas acredito mais na segunda. E, se calhar, tal poderá suceder por motivos que hoje ainda mal suspeitamos. A História é fértil em pregar partidas dessas, contrariando as certezas e as probabilidades defendidas pelos arrogantes que só enxergam o dia imediato.

Entretanto, como não podia deixar de ser, não é estranha a toda esta crescente hostilidade ao Reino Unido a caça desenfreada aos lugares de influência que este ainda ocupa nas instituições europeias, às grandes sedes empresariais que ainda operam no seu território (mas que podem querer deslocalizar-se por causa do Brexit e que são alvo de cobiça) e a um naco substancial das transações financeiras intermediadas pela praça financeira de Londres. Há ainda a apetitosa questão da redistribuição dos assentos que vão ficar vagos no Parlamento Europeu e que terão de ser rateados pelos outros Estados membros. Na sequência deste cerrar de dentes contra o país “desertor”, ainda vamos provavelmente assistir a muitas brigas de bastidores, mesmo antes de o Reino Unido levantar de vez o acampamento, para ver quem fica com os despojos. Apesar disso, como convém ao lado público da política e da diplomacia, os discursos de união e consenso continuarão quase em uníssono.

Como já aconteceu por diversas vezes no passado, os europeus continentais estão de novo a menosprezar a determinação e a capacidade de resistência dos britânicos. Com o pragmatismo que os caracteriza, hão-de acabar por resolver os problemas que lhes criarem muito mais depressa e melhor do que a União Europeia tem conseguido resolver os seus. Terão, aliás, muito mais flexibilidade para isso, livres de muitos dos constrangimentos que embaraçam as restantes economias europeias. E têm vários outros trunfos para jogar, para além da possibilidade de adopção de práticas de “dumping” fiscal que lesariam as economias europeias da parte continental. Com a actual soberba proporcionada pela superioridade numérica e pela desproporção demográfica, a restante Europa a 27 não está a ponderar bem tudo o que tem a perder.

Em suma: seria mais proveitoso (e, sobretudo, menos perigoso) conceder um estatuto de excepcionalidade ao Reino Unido do que abrir esta tremenda brecha na coesão europeia. De qualquer modo, o descontentamento com o descontrolo migratório está a crescer a olhos vistos e vai confrontar a UE com novas crises graves. Mais cedo ou mais tarde, talvez mesmo antes de vir a perfilar-se no horizonte o risco iminente da saída de qualquer outro país membro, terão de ser adoptadas algumas restrições temporárias à livre circulação e residência de pessoas, para evitar males maiores. E quando tal acontecer, muitos se interrogarão tardiamente por que não se enveredou logo por essa opção no caso do Reino Unido, causadora de bem menos danos do que a saída deste. Para já, o que é previsível é que a retórica extremamente agressiva e os comportamentos retaliatórios vão tornar a União ainda mais odiosa, não só aos olhos da população das Ilhas Britânicas, como aos de todos os outros eurocépticos, quer se sintam ou não solidários com o descontentamento britânico.

Já que tal imagem pegou de estaca na retórica política em uso, pode agora dizer-se que é nas amargas circunstâncias de um divórcio litigioso que pode aferir-se melhor quão fiável era a afeição conjugal. Para começar, as instâncias europeias deveriam logo ter enveredado por um divórcio amigável, por mútuo consentimento e com equitativa partilha de interesses; mas pelas declarações já vindas a lume, há quem esteja obstinado em que sejam o ressentimento e a vingança a ditar os termos. Se as coisas tomarem esse rumo, o que vier a passar-se poderá ser muito educativo para o resto da Europa, mas talvez não do jeito que os líderes europeus agora imaginam.

A procissão ainda vai no adro, dizia eu. Mas ainda o andor mal começou a mover-se e, como sinal premonitório, já estamos a assistir ao regresso das rivalidades territoriais europeias. Isto dá que pensar. E o primeiro pensamento que se impõe é que ainda é tempo de arrepiar caminho. O Reino Unido deveria ser tratado com compreensão e afabilidade, até pelo muito que a Europa lhe deve. Mas é absurdo que aquele país esteja a exercer um direito legítimo, aliás previsto nos tratados, e se chegue ao ponto de lhe exigir uma espécie de reparação de guerra. A Europa enlouqueceu de novo?

sábado, 8 de abril de 2017

Sinal de intolerância

Quando alguém se atreve hoje a falar contra os excessos migratórios, logo outro alguém o acusa de racismo ou xenofobia. É como defender que se beba com moderação e ser imediatamente acusado de ser partidário da Lei Seca.

sábado, 25 de março de 2017

O que é o populismo, afinal? (3)

Em abstracto, podem distinguir-se três perspectivas básicas sobre a natureza do populismo. E se duas já bastariam para turvar um pouco as águas, imagine-se o resultado com mais.

Para uns, o populismo é uma ideologia que considera a sociedade dividida em dois campos antagónicos e inconciliáveis, o povo e a elite (ou, no plural, as elites), e que preconiza alguma espécie de reacção popular, seja ela uma insurreição ou uma revolta eleitoral, contra o “sistema vigente” (o famoso establishment) e aqueles que o controlam, isto é, contra a “casta dominante”, os ricos, os privilegiados, os poderes formais e os poderes fácticos instituídos, em suma, contra todos os que mandam ou se movimentam nos meandros do poder, supostamente apenas em proveito próprio ou em prol de um intrincado cartel de interesses.

A sua tónica geral seria a condenação multifacetada das elites, pela sua ganância ou egoísmo, pela sua corrupção ou incompetência, pela sua incapacidade ou negligência em promover o bem-estar geral. E daí derivaria a urgência de subverter ou reformar radicalmente o próprio sistema político e as orientações tradicionalmente seguidas nas políticas sectoriais pelos partidos predominantes, fazendo prevalecer a vontade popular e os interesses da “maioria silenciosa” (entendida aqui sem quaisquer conotações específicas, apenas como menção genérica ao vasto número de pessoas a quem apenas se pede o voto e que logo em seguida se ignora, por que não é para elas que se governa e se faz política).

Para outros, o populismo não corresponde a uma ideologia em concreto, mas a uma forma de fazer política, e é por isso que surgem populismos em todos os quadrantes (à esquerda, à direita e ao centro). O que mais a caracteriza é o aproveitamento meramente táctico dos descontentamentos existentes, com uma dose generosa de exaltação e oportunismo, extremando posições e radicalizando a linguagem, explorando as emoções e os sentimentos mais básicos das pessoas comuns, introduzindo uma conflitualidade artificial nas pequenas fricções sociais, criando cenários irreais ou fazendo promessas inviáveis, distorcendo os factos e o seu significado, geralmente com recurso a uma demagogia capciosa e a uma retórica simplista, tudo isto guarnecido com uma aparente ausência de visão estratégica e com um reduzido naipe de objectivos definidos, jogando na própria fluidez e relativa indefinição para poder concentrar em poucas questões controversas um escasso programa político, onde desaguem algumas das queixas e frustrações mais comuns entre a população.

Mas há uma espécie de “terceira via” das interpretações do populismo que é em parte uma combinação das duas anteriores e, noutra parte, um acrescento a ambas. Trata-se de admitir que o populismo é uma certa forma de fazer política que tem um núcleo duro de doutrina (ou, pelo menos, de ideologia) e que também acrescenta algo ao debate político, trazendo para a ribalta os interesses e as ideias das pessoas comuns (ou de uma boa parte delas) que são habitualmente menosprezados pelas elites, em geral mais vocacionadas para implantar a sua mundivisão do que para respeitar o senso comum e mais empenhadas em prosseguir os seus interesses e carreirismos do que em pugnar pelo interesse geral.

Nesta perspectiva das coisas, torna-se portanto quase natural enfatizar o princípio da soberania popular e dar voz a grupos que não se sentem adequadamente representados pelo poder político instituído ou pelos tradicionais partidos de oposição, acusados de abraçar, cada um a seu modo, causas e medidas “politicamente correctas” (ou seja, estereotipadas e de matriz ideológica) que não espelham o sentir ou as convicções de grande parte da população, nem as suas necessidades, nem as suas reais preferências.

Ora é preciso reconhecer que, se o populismo dá voz a grupos e tendências que não se sentem representados nos partidos e coligações que habitualmente alternam no poder político, então ele funciona como um correctivo democrático, ao promover a politização aberta de questões que tendem a ser ignoradas ou menosprezadas, mas que encontram eco em muitos votantes. No caso dos populismos de esquerda, costumam ser sobretudo as desigualdades económicas gritantes e a falta de protecção de direitos individuais. No caso dos populismos de direita, costumam ser sobretudo as consequências dos excessos migratórios e a preservação da identidade nacional. E no caso dos populismos de centro, pode ser alguma combinação de ambas estas tendências ou a mera afirmação das vozes moderadas ou híbridas que tendem a ser desdenhadas ou escarnecidas em sociedades crescentemente radicalizadas. Mas está sempre presente um certo denominador comum, que é a alegada incapacidade das elites instaladas para actuarem em sintonia com as necessidades, as preocupações, os anseios e as expectativas das pessoas comuns, assim esvaziando na prática o sentido do seu voto.

Esta terceira interpretação do populismo parece ser a que oferece mais substância.
Se o populismo não tivesse uma ideologia estruturada, por mais rudimentar que fosse, seria difícil distingui-la da mera demagogia. Mas tem.
Se o populismo não tivesse uma estratégia, mesmo que só implicitamente assumida, seria difícil distingui-lo do mero oportunismo político. Mas tem.
Se o populismo não tivesse factos e razões a alimentar fartamente a sua capacidade de persuadir e expandir-se, não alastraria como fogo na palha. Mas tem.

Por estes três motivos, o que de mais sensato as “elites” podem fazer, enquanto é tempo, é trazer para o centro do debate político, na sua inteira verdade e crueza, tudo o que está a contribuir para a proliferação do populismo, assumindo honestamente que não há fumo sem fogo e que são necessárias soluções urgentes para vários problemas que há muito andam a ser negligenciados. Mas, ao dizê-lo, refiro-me aos problemas tal como os sentem e vêem as pessoas comuns e não os defensores de todas as ortodoxias em voga, sejam elas quais forem.

É que nisto de populismos é preciso ter muito cuidado: sabe-se como começam e como proliferam, mas não se sabe como acabam. No hipotético saldo final, podem trazer correcções à democracia ou constituir uma ameaça a ela. Tudo depende de diversos factores difíceis de controlar. Mas a púdica e hipócrita atitude agora mais em uso, do género “credo, cruzes, t’arrenego”, não vai contribuir para a pacificação social nem para a sanidade do funcionamento do sistema político. As pressões demasiado tempo comprimidas acabam por rebentar. E os danos são imprevisíveis.