sexta-feira, 28 de julho de 2017

Alguns equívocos por desfazer

Ser tolerante não implica permitir que se advogue publicamente a intolerância sectária e virar‑lhe as costas com indiferença, alegando o direito de cada um pensar como quiser.

Ser pacifista não implica condescender em que alguém defenda publicamente ou pratique discretamente alguma forma de violência e fique impune, sem que nenhuma força se lhe oponha.

Ser multicultural não implica consentir que os valores e os costumes dos outros atropelem os nossos com o maior à-vontade do mundo.

Ser defensor de uma imigração controlada e selectiva não significa ser xenófobo ou racista, pois quem o é não quer imigração nenhuma.

Ser laico não implica permanecer neutro perante as doutrinas, os credos, as intenções e as iniciativas dos fundamentalismos religiosos, pois esse tipo de neutralidade acaba por se traduzir sem querer em conivência tácita.

Ser democrata não implica atribuir levianamente a cidadania ou o direito de voto a qualquer estrangeiro que resolva assentar arraiais por cá.

Ser humanista não implica dar a imigrantes ou refugiados mais protecção e apoios do que damos aos nossos concidadãos pobres ou idosos.

Ser internacionalista não implica prezar tão pouco a nossa nacionalidade que a ofereçamos de bandeja a quem só a quer para poder melhorar de vida, de preferência noutro país europeu.

Ser progressista não implica pautar-se por dogmas ideológicos e desdenhar as recomendações do bom senso, pois o progresso é invariavelmente avesso a ortodoxias arrogantes.

Ser idealista não significa virar completamente as costas ao realismo (nem vice-versa).

Ser solidário não implica sentirmo-nos obrigados a fazer por desconhecidos ou estrangeiros o que percebemos que eles nunca estariam dispostos a fazer por nós.

Ser cosmopolita ou de espírito aberto não implica fingir que acreditamos que os nossos padrões culturais valem o mesmo que os de quaisquer outras pessoas vindas doutras paragens, sobretudo se oriundas de países subdesenvolvidos.

Ser actual não implica estar na crista da onda de todas as imbecilidades que se tornam moda.

Ser europeísta não implica acreditar que as nações e as nacionalidades perderam a sua razão de existir.

E talvez mais importante ainda do que o resto: ser inteligente ou solidário (ou julgar que se é) não justifica considerar que todos os que pensam de modo diferente são estúpidos ou mal‑intencionados. É verdade que a inteligência e o altruísmo andam muito mal distribuídos neste mundo, mas nem sempre estão do lado de quem mais deles faz alarde. Talvez até pelo contrário.

E quanto a saber como se distinguem conceitos e preconceitos, isso daria pano para mangas, colete e sobrecapa. Já todos vimos diversa gente muito preconceituosa a combater supostos preconceitos, o que nos deveria servir de vacina. Mas não deixa de ser curioso constatar que muitos dos que aceitam e propagam o relativismo cultural, que interdita qualquer hierarquia de culturas, não alinham pelo relativismo conceptual, no sentido de aceitar que as concepções alheias possam valer tanto como as próprias. O “progressista” típico, sempre tão tolerante em matéria de valores e costumes exógenos (sobretudo quando se trata de imigrantes, refugiados e minorias étnicas ou religiosas) tende a ser arrogante e insultuoso em relação aos seus próprios concidadãos que pensam de maneira diferente. Bastante incoerente, não? E também esclarecedor.

domingo, 9 de julho de 2017

Portugal, sociedade fechada

Uma certa filosofia política habituou-nos a chamar sociedades abertas àqueles regimes políticos em que as pessoas elegem os seus líderes, atribuindo-lhes o encargo de zelar pelos interesses gerais de todo o eleitorado e de equilibrar os interesses conflituantes das várias partes dele.

Em contraste, são sociedades fechadas aquelas em que os líderes, por usurpação do poder ou por abuso dele, se dedicam a manipular ou tiranizar a maior parte dos seus concidadãos, sejam eles tidos como eleitores livres ou súbditos, para proteger e favorecer os interesses de um círculo relativamente fechado.

Digo “relativamente fechado” porque ele não o é em absoluto: há, em geral, alguma porta que se abre para aqueles que se mostram diligentes na gestão desse favorecimento, ou hábeis no seu próprio enriquecimento pessoal, sendo-lhes assim permitido fazer também parte desse círculo.

Nas sociedades fechadas, mesmo quando há eleições fidedignas, o que o eleitorado verdadeiramente escolhe é quem o vai defraudar na governação dos interesses comuns e particulares.

Portugal, nesse sentido, é uma sociedade fechada. Não só os líderes eleitos não conseguem satisfazer as expectativas, como permitem intencionalmente que as várias elites capturem a democracia e a riqueza, num fenómeno perverso que tende para um gradual açambarcamento.

Na política portuguesa, o tal círculo relativamente fechado tem-se chamado “centrão” – o que, acreditem-me, é algo muito diferente do centro político.

Um e outro apenas se assemelham no nome. Enquanto o centro político genuíno procura criar e preservar equilíbrios sociais, protegendo os interesses gerais e doseando adequadamente os interesses particulares, o “centrão” tem sido (e abrindo bem os olhos, continua a ser) a grande mola impulsionadora dos desequilíbrios e do crescimento deles. E refiro-me aos desequilíbrios todos: de poder, de riqueza, de estatuto, de benefícios e de favorecimento legislativo.

Nas sociedades abertas, o principal obstáculo a contornar costuma ser a incompetência, venha ela da incapacidade técnica ou do enviesamento ideológico. Nas sociedades fechadas, como a nossa, o que prepondera é a corrupção. Mas nada impede que uma e outra andem de mãos dadas, porque até na corrupção se pode ser muito incompetente.

É esse, infelizmente, o nosso caso. Há muito tempo que somos vítimas de uma imponderável combinação de corrupção e incompetência.

Para vencer a primeira, teremos de mudar a justiça e as mentalidades. Para vencer a segunda, teremos de reformar profundamente o sistema político.