sábado, 25 de fevereiro de 2017

Um diagnóstico invertido

Frequentemente se lê e ouve que um dos problemas essenciais da Europa de hoje é o afastamento dos cidadãos em relação às instituições europeias. Errado. Esse diagnóstico está feito ao contrário: um dos problemas essenciais da Europa de hoje é o afastamento das instituições europeias em relação aos cidadãos.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

O que é o populismo, afinal? (1)

Por estes dias, abundam as definições de populismo e outras tantas utilizações arbitrárias do termo não apoiadas em definição nenhuma. Reina uma certa confusão.

O populismo, tal como o racismo e a xenofobia, passou a querer significar tantas coisas diferentes, entendíveis e aplicáveis segundo as circunstâncias e os países, que já não se sabe ao certo o que significa. Ou melhor, sabe-se, mas o significado original é já talvez o que menos se utiliza. Esses três rótulos desvincularam-se dos respectivos conceitos, ou então (o que talvez seja mais verdadeiro) tornaram-se conceitos multiusos, versáteis, indefinidos, dos quais ressalta sobretudo a carga negativa e a condenação implícita que se quer atribuir a algo.

Como eu prefiro dizer, estes são “conceitos-panaceia”: servem para muitas e diversas ocasiões em que se quer anatematizar comportamentos ou opções alheias, e que, à falta de melhor, se podem aplicar a esmo e sem mais justificações. Precauções, então, também não são necessárias. Parte-se logo do princípio de que com eles se designa alguma maleita política ou moral que nos assola, ou às sociedades em geral, e que, por suposto, só afecta a saúde mental dos outros. Lançar mão de tais conceitos, independentemente do contexto e do bem-fundado do uso, parece já servir para começar a exorcizar o mal.

Digamo-lo por outras palavras: nos dias que correm, ser acusado ou suspeito de populismo, racismo ou xenofobia, seja lá o que for que alguém queira dizer com isso, significa que se merece ser excomungado, ostracizado ou retirado do rol das pessoas decentes. Nada menos. E é quanto basta para gerar de imediato um clima de hostilidade.

Na forma mais benigna deste desvario, houve quem tentasse assimilar o populismo à pura demagogia. Mas nesse caso, se o tentássemos combater a preceito, acabaríamos pior. Ficaríamos sem democracia, porque ficaríamos sem partidos. Haverá algum deles que, salvaguardadas as diferenças de intensidade e de estilo, não seja profundamente demagógico? Não andam todos eles a prometer muito mais do que podem (ou pretendem) cumprir? Até os militantes mais convictos, quando usam os cinco minutos anuais de consciência e bom senso que se permitem a si próprios, ficam a saber isso. Os mais intuitivos e os mais hipócritas sabem-no logo de imediato ou mesmo de antemão, mas também não levam a mal. Consideram que a demagogia faz parte do jogo político. E, infelizmente, faz. Pode-se confrontá-la, mas não se sabe a maneira de a evitar.

Portanto, o que distingue o populismo não é a demagogia, nem sequer alguma espécie particular de demagogia. Ela está em todo o espectro político, em doses e roupagens variáveis. Não será demagogia uma certa banda do nosso hemisfério parlamentar defender um determinado naipe de medidas e proclamar que “não há alternativa”? Há sempre alternativas. Não será também demagogia um outro quadrante celebrar os remedeios habilidosos ou os pequenos sucessos transitórios e artificiais como se fossem a verdadeira resolução dos problemas de fundo, ou o caminho adequado para ela? Navegar à bolina não é a melhor maneira de chegar ao destino pretendido. E não será ainda demagogia, como fazem outros sectores, prometer e afiançar ao eleitorado tudo e mais alguma coisa, indiferentes a constrangimentos externos e orçamentais, como se a realidade não existisse ou fosse simplesmente aquilo que em cada momento se quiser? Essa é a melhor receita para o desastre.

Se fosse possível reduzir o populismo à demagogia exacerbada, ou a uma certa variante dela, ou à mera conjugação de alguns dos ingredientes dela, ainda assim teríamos pano para mangas. Mas não se trata disso. Estamos perante um fenómeno diferente. E com a agravante de que não há um só populismo, mas vários, e alguns deles são de sinal oposto.

Para nos entendermos, vai ser preciso desembaraçar a meada. Até porque já não falta por aí quem chame populismo à simples tentativa de chamar a atenção para os factos incómodos ou para as verdades inconvenientes.

Em todo o Ocidente, no que respeita à terminologia política, estamos prestes a construir uma nova torre de Babel. E um dos efeitos disso pode vir a ser uma pandemia pior do que a rápida expansão da demagogia.

Por que digo isto? Porque, face aos fenómenos sociais que grassam nesta nossa parte do mundo, e atendendo à velocidade com que alastram, fazer diagnósticos errados não é apenas péssimo, é mortífero. Nem sequer acertar no nome das coisas, mais do que não perceber os sintomas, significa não perceber as causas. E quem não percebe as causas dificilmente poderá acertar nos antídotos. O prognóstico, portanto, é assustador.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Um novo conceito de democracia?

Comecemos pela contagiosa histeria anti-Trump que tem apimentado as eleições americanas. É o assunto que está mais na berra.

As televisões mostraram-nos hordas de manifestantes que vieram para as ruas partir montras, incendiar veículos e arremessar objectos contundentes à polícia, tudo isso, ao que parece, como uma saudável manifestação do chamado “direito à indignação”. Que tal direito exista nestes precisos termos é o que pode inferir-se dos comentários implicitamente aprovadores de quase todos os analistas e comentadores, também eles fortemente indignados com o resultado eleitoral, numa aliás rara sintonia de estados de alma opinativos e argumentativos.

O povo americano, é o que se conclui, enganou-se. Ou pior do que isso, foi enganado. Não votou em quem devia. Escolheu o candidato errado. Não faltou quem dissesse que as eleições deveriam ser impugnadas, repetidas, rectificadas, ou quem não lhes atribuísse valor algum. Como é óbvio, se a imprensa quase em peso está contra o vencedor, e já estava antes de ele o ser, foi um atrevimento descabido o povo americano ter votado nele. Mais inaceitável se torna o facto, se até a esmagadora maioria da classe política está também indignada. Pelos vistos e contados, o candidato em questão só ganhou porque a maioria mais alarve de todas, a dos eleitores, votou nele.

Ah, mas isso não é verdade, dizem logo alguns iluminados céleres. O candidato que ganhou teve menos três milhões de votos do que a sua grande rival. É certo que ninguém se atreveu ainda a falar de fraude eleitoral, porque tudo funcionou segundo as peculiares regras do sistema americano, em prática há mais de duzentos anos. Mas foi pelo menos uma distorção do próprio sistema, em si próprio questionável, que já mais de uma vez permitiu que perdesse o candidato que mais votos individuais recolheu (tal como às vezes acontece, por exemplo, na execrável democracia inglesa, com o seu sistema de círculos uninominais, agora tão estranhamente ambicionado pelas gentes lusas e outras).

Já havia antes quem tivesse criticado o sistema eleitoral em vigor, mas pouca. Na América, as tradições políticas têm muito peso e ajudam a sustentar a estrutura federal do país, resultante da sua singular história e geografia. Mas parece que desta vez esse sistema eleitoral, que até aqui tinha servido muito bem, produziu uma aberração. Ainda assim, são menos os que criticam o próprio sistema em si do que os que vituperam quem ousou ganhar à custa dele. E essa é a peculiaridade maior de todas.

Julgava eu, na minha imaturidade política, que quando é eleito um presidente ele passava a ser o presidente para todos os nacionais e residentes do país que o elegeu. Mas não, isso era dantes. Muitos dos manifestantes que vieram para as ruas exibir o seu descontentamento e indignação empunhavam cartazes dizendo “Este não é o meu presidente”. Pelos vistos, esses manifestantes (e todos os que, não se tendo manifestado, pensam como eles) passaram a ter como presidente a candidata vencida (ou talvez, quem sabe, algum dos candidatos a candidatos que não passaram sequer das primárias). Por mim, nada a opor. Acho que assim os resultados eleitorais poderão acabar por ficar mais ao contento de todos. A cada um, seu presidente, consoante as suas convicções. Ou seja: o candidato que venceu passa a ser o presidente só dos que votaram nele. Os outros eleitores escolhem a gosto de entre os candidatos eliminados ou vencidos. Por que não? É um novo conceito de democracia. Podemos chamar-lhe “democracia personalizada”. Trata-se de uma inovação importante. Por alguma razão, afinal, a América costuma andar um pouco à frente do resto do mundo, em geral pouco lesto a imitá-la e só perdendo com isso.

Todas as exuberantes manifestações de desrespeito pelos resultados eleitorais passam a ser legítimas, portanto, se resultarem do novo e importantíssimo “direito à indignação”. E se pensarmos bem, para as coisas baterem certo, quaisquer eleições ou referendos deveriam ser repetidos tantas vezes quantas as necessárias até vencer o candidato com a melhor imprensa ou com a orientação mais desejável (estou confiante de que os descontentes do “Brexit” concordarão com isto). É uma ideia nova a reter, que significará um importante passo em frente (para onde, ninguém sabe, mas só os mesquinhos e os reaccionários se preocupam com isso).

É indiscutível, no caso actual, que o candidato mais indesejável venceu, e venceu segundo as regras vigentes. Ninguém percebe como ele se atreveu a tanto. Concordo que não devia ser permitido. Este insurrecto despenteado começou como um outsider, nem sequer era um político encartado, ou nem era um político de todo, e afinal, contra tudo e contra todos, pulverizou os seus rivais republicanos e ganhou, sem ser por uma unha negra, à candidata democrata indiscutivelmente favorita. Até os pais fundadores da nação americana se devem ter revolvido na tumba. Isto não se faz. Ou como agora soa dizer-se, “não é aceitável”.

Houve quem alvitrasse que este resultado só foi possível porque a espionagem russa se intrometeu no assunto e pôs a nu alguns podres da candidata democrata. Os meandros do que realmente aconteceu ainda estão envoltos em mistério. Mas se os russos fizeram isso, não vejo em tal atitude um sinal de parcialidade, mas de pragmatismo. É que acerca do candidato republicano não era necessário pôr nada a nu. Toda a imprensa nacional e internacional (incluindo editorialistas, comentadores, analistas, pivôs, opinion makers e os moços de recados das redacções) se empenhou nisso com entusiasmo e foi sempre unânime em não encontrar em Trump um único ponto positivo. Segundo o consenso generalizado e expresso em uníssono, não havia nele nada que se aproveitasse. Toda a gente com peso e opinião se entreteve durante quase dois anos a enxovalhar o espécime e a ridicularizá-lo. Por que haveriam os russos de perder tempo com ele? Não era preciso.

Que os russos tenham cometido intencionalmente umas inconfidências, fornecendo mais provas para o que já se sabia e mais fundamentos para o que já se suspeitava, foi visto como uma grave ingerência externa no processo eleitoral americano. Estou tentado a concordar. Mas, estranhamente, ninguém considerou uma ingerência externa o facto lastimável de quase toda a imprensa mundial, e sobretudo europeia, ter andado quase concertadamente a fazer uma campanha mediática feroz contra este candidato republicano e a favor da favorita democrata. E à imprensa juntaram-se as declarações bombásticas e os comentários intrusivos de tudo quanto era governante, diplomata, deputado, dirigente partidário, porta-voz ou militante de serviço por esse mundo adentro, sem sequer deixar de fora presidentes e chefes de governo. Se as eleições americanas bastassem, Trump teria involuntariamente promovido a concórdia universal, porque toda a gente que era alguém ou ninguém em algum lado estava de acordo contra ele. Nunca antes se tinha visto tantos responsáveis e irresponsáveis políticos tomarem abertamente partido numa eleição estrangeira. Mas se toda a gente acha que não se tratou de ingerência externa, excepto no pífio caso dos russos, quem sou eu para dizer o contrário? Pelo menos, temos a agradecer a estes últimos que tenham sido comedidos e que só tenham desnudado alguns podres da candidata democrata; se eles tivessem ido mais além e tivessem desnudado mais qualquer coisa, poderia ter sido algo feio de se ver.

Resta concluir que, se Trump partiu quase do grau zero da política e conseguiu vencer contra tamanha oposição, ainda por cima gastando muito menos dinheiro na campanha do que a sua principal opositora, o homem só pode ser um génio político, mesmo que não venha a ser um estadista genial. Nem mesmo o mais talentoso dos seus críticos conceituados poderia ter aspirado a conseguir uma ínfima porção do que ele fez. Durante dois anos, quatro quintos do mundo (ou seria mais que isso?) tratou este inefável candidato como um pária, chamou-lhe quase tudo, de imbecil para cima, fez chacota das suas frases e dos seus gestos, tratou-o como proscrito, atribuiu-lhe todas as aleivosias imagináveis, preteriu-o em favor de todos os outros concorrentes possíveis ou confirmados, preferiu o diabo à companhia dele, viu nele a peste ideológica ou o perigo do apocalipse, instigou todas as consciências decentes e bem pensantes a rejeitá-lo liminarmente, e mesmo assim, ele ganhou. Agora, no rescaldo, especula-se ainda se o novo presidente é mesmo doido, como diziam, ou se foi a América que endoideceu. Por mim, vislumbro uma terceira hipótese: pelos vistos e acontecidos, pode ser que tenha sido o resto do mundo a perder a sanidade. Porque toda esta histeria anti-Trump não é normal.


O que é acima de tudo estranho é que, por muitos disparates que tenha eventualmente dito, o candidato Trump também disse algumas verdades incómodas, que a generalidade da opinião pública apelidada de “culta” não quer admitir nem aceitar, e que se recusa mesmo a analisar com seriedade. Não é bom sinal. Alguém já ouviu falar daqueles remotos dignitários eclesiásticos que, no seu tempo, se recusaram a espreitar pelo telescópio de Galileu, para não serem tentados pelas ilusões do Diabo? Noutros moldes mais modernos, é o que se está a passar agora. É melhor benzermo-nos também.

sábado, 11 de fevereiro de 2017

Uma adenda necessária...

Tentar perceber os factos não é o mesmo que enquadrá-los nos nossos preconceitos.

A irresistível tentação do erro


Seja no confronto ideológico, nas análises económicas ou nas visões de sociedade, a nossa vida política está profundamente impregnada de clichês, frases feitas e ideias ultrapassadas.

Não é de espantar. As ideias e as crenças tendem a perdurar no tempo e a resistir à erosão, mesmo quando mudaram os factos ou as circunstâncias que lhes deram suporte e justificação. Entranham-se subrepticiamente nas convicções dos especialistas, dos leigos, dos comentadores e dos escribas da comunicação social. Formatam as mentes e as opiniões até de pessoas dignas de crédito, que exibem preparação e conhecimentos para fazerem as interpretações que fazem (ou para comentarem as que os outros fazem) do mundo actual e seus eventos, da sociedade e seus conflitos, das doutrinas e suas contradições.

A consequência disto é que se formam gradualmente padrões de pensamento e de opinião que, com o andar dos tempos, se convertem em dogmas sem que se dê por isso. Ou que, nos casos mais benignos, se arvoram em meros pressupostos implícitos que condicionam as análises e as conclusões. Podem não ser considerados intocáveis, mas são eles que habitualmente definem as linhas do horizonte intelectual que vislumbramos. Para além desse horizonte, parece nada existir ou ser só miragem.

É bastante imprudente subestimar essa formatação cultural que o ambiente envolvente nos proporciona. Em bom rigor, não é apenas ele; desempenhamos nisso algum papel, porque em regra escolhemos, consciente ou inconscientemente, os nichos culturais a que preferimos pertencer e com os quais mais nos queremos identificar. Quando nem isso acontece, assimilamos sucessivamente referências através de uma mistura de mimetismos. Mas o resultado final é quase sempre pouco maleável, no que toca a adaptarmo-nos a novos ambientes e novos factos. E isso gera propensões e incompatibilidades dificilmente contornáveis, além de previsíveis.

Esta tendencial rigidez da nossa formatação cultural conduz a resultados indesejáveis e bastante nocivos: na moral e nos costumes, a intolerâncias diversas; na cena intelectual, a conflitos espúrios; na economia, a estratégias inadequadas; no debate ideológico, a concepções obsoletas; na imigração, à falência do multiculturalismo; no palco e nos bastidores da democracia, ao “politicamente correcto” em várias versões.

Eis o pior de tudo: quando um qualquer disparate vem de encontro aos nossos dogmas ou pressupostos, acolhemo-lo sem hesitar. Por vezes, fazemos até mais do que isso: precipitamo‑nos sobre ele e abraçamo-lo.

Ao invés disso, eis o que precisamos fazer: tentar perceber os factos. Algo que, apesar de incontáveis análises e comentários a tudo quanto sucede, está bastante em desuso.