sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

O que é o populismo, afinal? (1)

Por estes dias, abundam as definições de populismo e outras tantas utilizações arbitrárias do termo não apoiadas em definição nenhuma. Reina uma certa confusão.

O populismo, tal como o racismo e a xenofobia, passou a querer significar tantas coisas diferentes, entendíveis e aplicáveis segundo as circunstâncias e os países, que já não se sabe ao certo o que significa. Ou melhor, sabe-se, mas o significado original é já talvez o que menos se utiliza. Esses três rótulos desvincularam-se dos respectivos conceitos, ou então (o que talvez seja mais verdadeiro) tornaram-se conceitos multiusos, versáteis, indefinidos, dos quais ressalta sobretudo a carga negativa e a condenação implícita que se quer atribuir a algo.

Como eu prefiro dizer, estes são “conceitos-panaceia”: servem para muitas e diversas ocasiões em que se quer anatematizar comportamentos ou opções alheias, e que, à falta de melhor, se podem aplicar a esmo e sem mais justificações. Precauções, então, também não são necessárias. Parte-se logo do princípio de que com eles se designa alguma maleita política ou moral que nos assola, ou às sociedades em geral, e que, por suposto, só afecta a saúde mental dos outros. Lançar mão de tais conceitos, independentemente do contexto e do bem-fundado do uso, parece já servir para começar a exorcizar o mal.

Digamo-lo por outras palavras: nos dias que correm, ser acusado ou suspeito de populismo, racismo ou xenofobia, seja lá o que for que alguém queira dizer com isso, significa que se merece ser excomungado, ostracizado ou retirado do rol das pessoas decentes. Nada menos. E é quanto basta para gerar de imediato um clima de hostilidade.

Na forma mais benigna deste desvario, houve quem tentasse assimilar o populismo à pura demagogia. Mas nesse caso, se o tentássemos combater a preceito, acabaríamos pior. Ficaríamos sem democracia, porque ficaríamos sem partidos. Haverá algum deles que, salvaguardadas as diferenças de intensidade e de estilo, não seja profundamente demagógico? Não andam todos eles a prometer muito mais do que podem (ou pretendem) cumprir? Até os militantes mais convictos, quando usam os cinco minutos anuais de consciência e bom senso que se permitem a si próprios, ficam a saber isso. Os mais intuitivos e os mais hipócritas sabem-no logo de imediato ou mesmo de antemão, mas também não levam a mal. Consideram que a demagogia faz parte do jogo político. E, infelizmente, faz. Pode-se confrontá-la, mas não se sabe a maneira de a evitar.

Portanto, o que distingue o populismo não é a demagogia, nem sequer alguma espécie particular de demagogia. Ela está em todo o espectro político, em doses e roupagens variáveis. Não será demagogia uma certa banda do nosso hemisfério parlamentar defender um determinado naipe de medidas e proclamar que “não há alternativa”? Há sempre alternativas. Não será também demagogia um outro quadrante celebrar os remedeios habilidosos ou os pequenos sucessos transitórios e artificiais como se fossem a verdadeira resolução dos problemas de fundo, ou o caminho adequado para ela? Navegar à bolina não é a melhor maneira de chegar ao destino pretendido. E não será ainda demagogia, como fazem outros sectores, prometer e afiançar ao eleitorado tudo e mais alguma coisa, indiferentes a constrangimentos externos e orçamentais, como se a realidade não existisse ou fosse simplesmente aquilo que em cada momento se quiser? Essa é a melhor receita para o desastre.

Se fosse possível reduzir o populismo à demagogia exacerbada, ou a uma certa variante dela, ou à mera conjugação de alguns dos ingredientes dela, ainda assim teríamos pano para mangas. Mas não se trata disso. Estamos perante um fenómeno diferente. E com a agravante de que não há um só populismo, mas vários, e alguns deles são de sinal oposto.

Para nos entendermos, vai ser preciso desembaraçar a meada. Até porque já não falta por aí quem chame populismo à simples tentativa de chamar a atenção para os factos incómodos ou para as verdades inconvenientes.

Em todo o Ocidente, no que respeita à terminologia política, estamos prestes a construir uma nova torre de Babel. E um dos efeitos disso pode vir a ser uma pandemia pior do que a rápida expansão da demagogia.

Por que digo isto? Porque, face aos fenómenos sociais que grassam nesta nossa parte do mundo, e atendendo à velocidade com que alastram, fazer diagnósticos errados não é apenas péssimo, é mortífero. Nem sequer acertar no nome das coisas, mais do que não perceber os sintomas, significa não perceber as causas. E quem não percebe as causas dificilmente poderá acertar nos antídotos. O prognóstico, portanto, é assustador.

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