Por estes dias, abundam as
definições de populismo e outras tantas utilizações arbitrárias do termo não
apoiadas em definição nenhuma. Reina uma certa confusão.
O populismo, tal como o racismo e
a xenofobia, passou a querer significar tantas coisas diferentes, entendíveis e
aplicáveis segundo as circunstâncias e os países, que já não se sabe ao certo o
que significa. Ou melhor, sabe-se, mas o significado original é já talvez o que
menos se utiliza. Esses três rótulos desvincularam-se dos respectivos
conceitos, ou então (o que talvez seja mais verdadeiro) tornaram-se conceitos
multiusos, versáteis, indefinidos, dos quais ressalta sobretudo a carga
negativa e a condenação implícita que se quer atribuir a algo.
Como eu prefiro dizer, estes são
“conceitos-panaceia”: servem para muitas e diversas ocasiões em que se quer
anatematizar comportamentos ou opções alheias, e que, à falta de melhor, se
podem aplicar a esmo e sem mais justificações. Precauções, então, também não
são necessárias. Parte-se logo do princípio de que com eles se designa alguma
maleita política ou moral que nos assola, ou às sociedades em geral, e que, por
suposto, só afecta a saúde mental dos outros. Lançar mão de tais conceitos,
independentemente do contexto e do bem-fundado do uso, parece já servir para começar
a exorcizar o mal.
Digamo-lo por outras palavras:
nos dias que correm, ser acusado ou suspeito de populismo, racismo ou
xenofobia, seja lá o que for que alguém queira dizer com isso, significa que se
merece ser excomungado, ostracizado ou retirado do rol das pessoas decentes.
Nada menos. E é quanto basta para gerar de imediato um clima de hostilidade.
Na forma mais benigna deste
desvario, houve quem tentasse assimilar o populismo à pura demagogia. Mas nesse
caso, se o tentássemos combater a preceito, acabaríamos pior. Ficaríamos sem
democracia, porque ficaríamos sem partidos. Haverá algum deles que,
salvaguardadas as diferenças de intensidade e de estilo, não seja profundamente
demagógico? Não andam todos eles a prometer muito mais do que podem (ou
pretendem) cumprir? Até os militantes mais convictos, quando usam os cinco
minutos anuais de consciência e bom senso que se permitem a si próprios, ficam
a saber isso. Os mais intuitivos e os mais hipócritas sabem-no logo de imediato
ou mesmo de antemão, mas também não levam a mal. Consideram que a demagogia faz
parte do jogo político. E, infelizmente, faz. Pode-se confrontá-la, mas não se
sabe a maneira de a evitar.
Portanto, o que distingue o
populismo não é a demagogia, nem sequer alguma espécie particular de demagogia.
Ela está em todo o espectro político, em doses e roupagens variáveis. Não será
demagogia uma certa banda do nosso hemisfério parlamentar defender um
determinado naipe de medidas e proclamar que “não há alternativa”? Há sempre
alternativas. Não será também demagogia um outro quadrante celebrar os
remedeios habilidosos ou os pequenos sucessos transitórios e artificiais como
se fossem a verdadeira resolução dos problemas de fundo, ou o caminho adequado
para ela? Navegar à bolina não é a melhor maneira de chegar ao destino
pretendido. E não será ainda demagogia, como fazem outros sectores, prometer e
afiançar ao eleitorado tudo e mais alguma coisa, indiferentes a
constrangimentos externos e orçamentais, como se a realidade não existisse ou
fosse simplesmente aquilo que em cada momento se quiser? Essa é a melhor
receita para o desastre.
Se fosse possível reduzir o
populismo à demagogia exacerbada, ou a uma certa variante dela, ou à mera
conjugação de alguns dos ingredientes dela, ainda assim teríamos pano para
mangas. Mas não se trata disso. Estamos perante um fenómeno diferente. E com a
agravante de que não há um só populismo, mas vários, e alguns deles são de
sinal oposto.
Para nos entendermos, vai ser
preciso desembaraçar a meada. Até porque já não falta por aí quem chame
populismo à simples tentativa de chamar a atenção para os factos incómodos ou
para as verdades inconvenientes.
Em todo o Ocidente, no que
respeita à terminologia política, estamos prestes a construir uma nova torre de
Babel. E um dos efeitos disso pode vir a ser uma pandemia pior do que a rápida
expansão da demagogia.
Por que digo isto? Porque, face
aos fenómenos sociais que grassam nesta nossa parte do mundo, e atendendo à
velocidade com que alastram, fazer diagnósticos errados não é apenas péssimo, é
mortífero. Nem sequer acertar no nome das coisas, mais do que não perceber os
sintomas, significa não perceber as causas. E quem não percebe as causas
dificilmente poderá acertar nos antídotos. O prognóstico, portanto, é
assustador.
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