sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Um novo conceito de democracia?

Comecemos pela contagiosa histeria anti-Trump que tem apimentado as eleições americanas. É o assunto que está mais na berra.

As televisões mostraram-nos hordas de manifestantes que vieram para as ruas partir montras, incendiar veículos e arremessar objectos contundentes à polícia, tudo isso, ao que parece, como uma saudável manifestação do chamado “direito à indignação”. Que tal direito exista nestes precisos termos é o que pode inferir-se dos comentários implicitamente aprovadores de quase todos os analistas e comentadores, também eles fortemente indignados com o resultado eleitoral, numa aliás rara sintonia de estados de alma opinativos e argumentativos.

O povo americano, é o que se conclui, enganou-se. Ou pior do que isso, foi enganado. Não votou em quem devia. Escolheu o candidato errado. Não faltou quem dissesse que as eleições deveriam ser impugnadas, repetidas, rectificadas, ou quem não lhes atribuísse valor algum. Como é óbvio, se a imprensa quase em peso está contra o vencedor, e já estava antes de ele o ser, foi um atrevimento descabido o povo americano ter votado nele. Mais inaceitável se torna o facto, se até a esmagadora maioria da classe política está também indignada. Pelos vistos e contados, o candidato em questão só ganhou porque a maioria mais alarve de todas, a dos eleitores, votou nele.

Ah, mas isso não é verdade, dizem logo alguns iluminados céleres. O candidato que ganhou teve menos três milhões de votos do que a sua grande rival. É certo que ninguém se atreveu ainda a falar de fraude eleitoral, porque tudo funcionou segundo as peculiares regras do sistema americano, em prática há mais de duzentos anos. Mas foi pelo menos uma distorção do próprio sistema, em si próprio questionável, que já mais de uma vez permitiu que perdesse o candidato que mais votos individuais recolheu (tal como às vezes acontece, por exemplo, na execrável democracia inglesa, com o seu sistema de círculos uninominais, agora tão estranhamente ambicionado pelas gentes lusas e outras).

Já havia antes quem tivesse criticado o sistema eleitoral em vigor, mas pouca. Na América, as tradições políticas têm muito peso e ajudam a sustentar a estrutura federal do país, resultante da sua singular história e geografia. Mas parece que desta vez esse sistema eleitoral, que até aqui tinha servido muito bem, produziu uma aberração. Ainda assim, são menos os que criticam o próprio sistema em si do que os que vituperam quem ousou ganhar à custa dele. E essa é a peculiaridade maior de todas.

Julgava eu, na minha imaturidade política, que quando é eleito um presidente ele passava a ser o presidente para todos os nacionais e residentes do país que o elegeu. Mas não, isso era dantes. Muitos dos manifestantes que vieram para as ruas exibir o seu descontentamento e indignação empunhavam cartazes dizendo “Este não é o meu presidente”. Pelos vistos, esses manifestantes (e todos os que, não se tendo manifestado, pensam como eles) passaram a ter como presidente a candidata vencida (ou talvez, quem sabe, algum dos candidatos a candidatos que não passaram sequer das primárias). Por mim, nada a opor. Acho que assim os resultados eleitorais poderão acabar por ficar mais ao contento de todos. A cada um, seu presidente, consoante as suas convicções. Ou seja: o candidato que venceu passa a ser o presidente só dos que votaram nele. Os outros eleitores escolhem a gosto de entre os candidatos eliminados ou vencidos. Por que não? É um novo conceito de democracia. Podemos chamar-lhe “democracia personalizada”. Trata-se de uma inovação importante. Por alguma razão, afinal, a América costuma andar um pouco à frente do resto do mundo, em geral pouco lesto a imitá-la e só perdendo com isso.

Todas as exuberantes manifestações de desrespeito pelos resultados eleitorais passam a ser legítimas, portanto, se resultarem do novo e importantíssimo “direito à indignação”. E se pensarmos bem, para as coisas baterem certo, quaisquer eleições ou referendos deveriam ser repetidos tantas vezes quantas as necessárias até vencer o candidato com a melhor imprensa ou com a orientação mais desejável (estou confiante de que os descontentes do “Brexit” concordarão com isto). É uma ideia nova a reter, que significará um importante passo em frente (para onde, ninguém sabe, mas só os mesquinhos e os reaccionários se preocupam com isso).

É indiscutível, no caso actual, que o candidato mais indesejável venceu, e venceu segundo as regras vigentes. Ninguém percebe como ele se atreveu a tanto. Concordo que não devia ser permitido. Este insurrecto despenteado começou como um outsider, nem sequer era um político encartado, ou nem era um político de todo, e afinal, contra tudo e contra todos, pulverizou os seus rivais republicanos e ganhou, sem ser por uma unha negra, à candidata democrata indiscutivelmente favorita. Até os pais fundadores da nação americana se devem ter revolvido na tumba. Isto não se faz. Ou como agora soa dizer-se, “não é aceitável”.

Houve quem alvitrasse que este resultado só foi possível porque a espionagem russa se intrometeu no assunto e pôs a nu alguns podres da candidata democrata. Os meandros do que realmente aconteceu ainda estão envoltos em mistério. Mas se os russos fizeram isso, não vejo em tal atitude um sinal de parcialidade, mas de pragmatismo. É que acerca do candidato republicano não era necessário pôr nada a nu. Toda a imprensa nacional e internacional (incluindo editorialistas, comentadores, analistas, pivôs, opinion makers e os moços de recados das redacções) se empenhou nisso com entusiasmo e foi sempre unânime em não encontrar em Trump um único ponto positivo. Segundo o consenso generalizado e expresso em uníssono, não havia nele nada que se aproveitasse. Toda a gente com peso e opinião se entreteve durante quase dois anos a enxovalhar o espécime e a ridicularizá-lo. Por que haveriam os russos de perder tempo com ele? Não era preciso.

Que os russos tenham cometido intencionalmente umas inconfidências, fornecendo mais provas para o que já se sabia e mais fundamentos para o que já se suspeitava, foi visto como uma grave ingerência externa no processo eleitoral americano. Estou tentado a concordar. Mas, estranhamente, ninguém considerou uma ingerência externa o facto lastimável de quase toda a imprensa mundial, e sobretudo europeia, ter andado quase concertadamente a fazer uma campanha mediática feroz contra este candidato republicano e a favor da favorita democrata. E à imprensa juntaram-se as declarações bombásticas e os comentários intrusivos de tudo quanto era governante, diplomata, deputado, dirigente partidário, porta-voz ou militante de serviço por esse mundo adentro, sem sequer deixar de fora presidentes e chefes de governo. Se as eleições americanas bastassem, Trump teria involuntariamente promovido a concórdia universal, porque toda a gente que era alguém ou ninguém em algum lado estava de acordo contra ele. Nunca antes se tinha visto tantos responsáveis e irresponsáveis políticos tomarem abertamente partido numa eleição estrangeira. Mas se toda a gente acha que não se tratou de ingerência externa, excepto no pífio caso dos russos, quem sou eu para dizer o contrário? Pelo menos, temos a agradecer a estes últimos que tenham sido comedidos e que só tenham desnudado alguns podres da candidata democrata; se eles tivessem ido mais além e tivessem desnudado mais qualquer coisa, poderia ter sido algo feio de se ver.

Resta concluir que, se Trump partiu quase do grau zero da política e conseguiu vencer contra tamanha oposição, ainda por cima gastando muito menos dinheiro na campanha do que a sua principal opositora, o homem só pode ser um génio político, mesmo que não venha a ser um estadista genial. Nem mesmo o mais talentoso dos seus críticos conceituados poderia ter aspirado a conseguir uma ínfima porção do que ele fez. Durante dois anos, quatro quintos do mundo (ou seria mais que isso?) tratou este inefável candidato como um pária, chamou-lhe quase tudo, de imbecil para cima, fez chacota das suas frases e dos seus gestos, tratou-o como proscrito, atribuiu-lhe todas as aleivosias imagináveis, preteriu-o em favor de todos os outros concorrentes possíveis ou confirmados, preferiu o diabo à companhia dele, viu nele a peste ideológica ou o perigo do apocalipse, instigou todas as consciências decentes e bem pensantes a rejeitá-lo liminarmente, e mesmo assim, ele ganhou. Agora, no rescaldo, especula-se ainda se o novo presidente é mesmo doido, como diziam, ou se foi a América que endoideceu. Por mim, vislumbro uma terceira hipótese: pelos vistos e acontecidos, pode ser que tenha sido o resto do mundo a perder a sanidade. Porque toda esta histeria anti-Trump não é normal.


O que é acima de tudo estranho é que, por muitos disparates que tenha eventualmente dito, o candidato Trump também disse algumas verdades incómodas, que a generalidade da opinião pública apelidada de “culta” não quer admitir nem aceitar, e que se recusa mesmo a analisar com seriedade. Não é bom sinal. Alguém já ouviu falar daqueles remotos dignitários eclesiásticos que, no seu tempo, se recusaram a espreitar pelo telescópio de Galileu, para não serem tentados pelas ilusões do Diabo? Noutros moldes mais modernos, é o que se está a passar agora. É melhor benzermo-nos também.

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