domingo, 16 de outubro de 2022

Adicional ao IMI -- viva a roubalheira!

 Em Portugal, o imposto municipal sobre imóveis (IMI) constitui receita dos municípios onde aqueles se localizam e é teoricamente justificado pelo chamado “princípio da equivalência ou do benefício”, segundo o qual o pagamento deste imposto é uma contrapartida dos benefícios que os proprietários e usufrutuários recebem com obras e serviços que o município proporciona. Por essa razão, os titulares de património imobiliário, adquiridos com ou sem empréstimo bancário, pagam o mesmo, de acordo com a respectiva avaliação.

Dito de outra maneira, à luz deste princípio e com uma formulação mais geral, os impostos devem corresponder ao valor ou ao custo dos bens disponibilizados pelo Estado aos contribuintes. (Tente não rir.)

Esta racionalização justificativa dos impostos é um tanto ou quanto deficiente, para não dizer outra coisa, tanto mais que ela implica logicamente alguma proporcionalidade entre os benefícios recebidos e o montante do imposto a pagar. Ora, em aparente contradição, as taxas dos diversos impostos tendem a manter-se estáveis (e, nalguns casos, tendem até a crescer) mesmo em períodos de fraco ou nulo investimento público.

Outro exemplo coxo desta racionalização é o da tributação do sector automóvel, em particular dos impostos sobre os combustíveis. Estes tributos destinar-se-iam a cobrir as despesas inerentes à construção e manutenção das estradas e outros custos associados. Dito de outro modo, tais impostos corresponderiam, de certa forma, aos preços dos bens ou serviços públicos utilizados pelos utentes das estradas. Fica por explicar, claro, a enorme disparidade dos nossos impostos sobre os combustíveis em relação aos outros países europeus com uma rede viária de qualidade semelhante.

Uma enorme pedra no sapato desta teoria é que, como sabe qualquer estudante de finanças públicas, em Portugal os impostos não estão nem podem estar (ao contrário do que acontece com a cobrança de taxas e emolumentos) sujeitos a qualquer afectação específica da despesa pública. Por exemplo, um imposto cobrado com justificações ambientais não tem que ser aplicado na defesa do ambiente; pelo contrário, pode ser aplicado onde o Estado quiser e lhe apetecer.

Mas enfim, adiante… Subjacente a esta doutrina está a ideia de que nós pagamos impostos ao Estado como contrapartida por aquilo que ele nos proporciona (ou é suposto proporcionar). Se fecharmos um pouco os olhos e paralisarmos o raciocínio, até se consegue aceitar a contragosto. Digamos que não explica tudo, e muito menos os excessos fiscais, mas cria um simulacro de reciprocidade entre os contribuintes e o Estado em sentido lato (incluindo, portanto, as autarquias). Quando levantamos questões de proporcionalidade e de justiça fiscal, aí é que estragamos tudo. E para não ter de mudar de assunto, vamos abster-nos disso.

Consideremos precariamente justificado o IMI, sem esmiuçar mais por agora. Deixemos de lado questões incómodas como as isenções, as taxas aplicáveis, as cobranças abusivas, a qualidade dos serviços e as escassas garantias dos contribuintes.

Pergunta-se: se essa é a justificação genérica para a cobrança do IMI, qual é então a justificação para a cobrança de um adicional ao IMI?

Desde que este foi instituído, ninguém tentou escamotear o facto de este ser um imposto sobre a riqueza. Ninguém tentou justificá-lo com investimentos “adicionais” das autarquias. Visava penalizar a acumulação de património, ponto. Mas isto fazia dele um imposto extremamente injusto logo à partida, porque é bastante discriminatório. Ele só visa o património imobiliário, que é o único que não pode fugir (não emigra nem sai do sítio, não pode esconder‑se, não cabe debaixo do colchão). E então as outras formas de riqueza? O dinheiro das contas bancárias pode mudar de país, acoitar-se em cofres ou desaparecer dos bancos. O investimento em ações e obrigações pode deslocar-se para outros mercados financeiros. Os activos das empresas podem ser depreciados ou relocalizados. Os lucros podem ser distorcidos ou camuflados e, se atacados seriamente, limitam o investimento privado ou põem-no em fuga. As viaturas de luxo e os iates podem também rumar a outras paragens mais hospitaleiras. O único património relativamente indefeso são os imóveis. As restantes formas de riqueza têm todas como escapar e, se necessário, não hesitam em fazê‑lo.

Mas a injustiça não fica por aí. Opta-se por atacar o elo mais fraco e, por acréscimo, de uma forma desproporcional à riqueza real que ele representa, porque se toma em consideração o património bruto e não o património líquido.

Imaginemos, para simplificar contas, que alguém investe um milhão na compra de um imóvel, ou de vários, não importa qual a finalidade desse investimento. Esse alguém aplica aí cem mil que tinha de poupanças e pede emprestados a um banco os restantes novecentos mil. O seu património líquido não se alterou. Adquiriu um imóvel de um milhão, mas ficou a dever novecentos mil, portanto o valor líquido daquele património começa por ser de apenas cem mil para si e só vai aumentando à medida que a respectiva hipoteca vá sendo amortizada. O valor líquido deste património é, em cada momento, o seu valor de mercado (ou, para efeitos fiscais, a sua avaliação tributária) menos a dívida remanescente da hipoteca. Por outras palavras, é o valor do que tem menos o que deve.

Mas o fisco, armado em chico-esperto (como se diz na gíria), não quer saber para nada da sua dívida ou do empréstimo que contraiu para adquirir o que tem. Tem um imóvel de um milhão registado em seu nome? Então é dono de um milhão. Deve novecentos mil? Paciência, é problema seu. Passe para cá o imposto sobre um milhão e vá carpir as mágoas para onde quiser. 

É esta a marca de um socialismo retorcido que quer expropriar paulatinamente a riqueza onde ela se encontrar e onde possa fazê-lo sem grandes efeitos secundários, capazes de gerar complicações políticas indesejáveis? Não. É antes a marca de um Estado que se tornou desonesto e demasiado ganancioso. Não podendo tributar às cegas, ataca o património mais vulnerável. Poupa o património financeiro, que tem grande mobilidade e pode facilmente fugir ou desaparecer, e golpeia o património imobiliário, que está preso ao chão pelas fundações e só pode, na pior das hipóteses, mudar de dono. (E é isso que frequentemente tem acontecido, obrigando proprietários nacionais a vender apressadamente a investidores estrangeiros ou a fundos especulativos, sobretudo quando as receitas turísticas caíram por causa da crise pandémica. Muitos dos nossos imóveis de interesse histórico ou arquitectónico têm assim mudado de mãos, passando a gerar rendimentos ou evasivas fiscais para os capitais estrangeiros que estão em melhores condições para resistir à investida, por vezes graças a reduções ou isenções de que os contribuintes nacionais não beneficiam).

Todos os países têm impostos sobre o património imobiliário, equivalentes ao nosso IMI. Mas poucos são os que se atrevem a tributar a riqueza em si, para que ela não fuja, o que é bastante sensato. A riqueza produz sempre mais benefícios onde estiver, seja sob a forma de consumo ou de investimento, e qualquer destas formas de despesa gera rendimentos para os fornecedores privados de bens ou serviços e impostos para o Estado (incluindo as autarquias). Se a riqueza muda de poiso, vai produzir benefícios para outro lado. Afugentar a riqueza é como degolar a galinha dos ovos de ouro. É simplesmente estúpido, qualquer que seja a ideologia subjacente.

Mas a coerência doutrinária obriga à insensatez, que é como quem diz, à absoluta falta de pragmatismo. Um dos grandes teóricos socialistas do nosso tempo, Thomas Piketty (que muitos olham e veneram como uma espécie de Karl Marx do século XXI), advoga que o imposto sobre a fortuna deve tentar tratar da mesma maneira todas as formas de património, imobiliário ou financeiro, o que minimiza as distorções económicas, mas aceita como um mal menor que tal imposto em França incorpore demasiadas reduções e isenções fiscais (afinal em que ficamos?). Tudo, hélas!, menos a isenção total do património financeiro. Chega até a defender que os velhos impostos imobiliários sejam substituídos por um imposto geral sobre a fortuna. Mas mesmo este visionário impenitente aceita como razoável e aponta como uma das razões da superioridade de um tal imposto que ele permita a dedução das dívidas. No caso do imobiliário, e para esse efeito, o património tributável deve ser o valor dos imóveis menos os empréstimos que os oneram.

Por que é que no caso português não é assim? Decerto os velhos e tradicionais socialistas compreendem a diferença entre património bruto e património líquido e são capazes de captar a lógica da justiça fiscal inerente à dedução das dívidas hipotecárias. Por que permanece então o chamado “imposto Mortágua”, que obedece a uma lógica completamente diferente, a da hostilidade raivosa a todo o património, a da fiscalidade confiscatória, a da guerra implícita a toda a forma de propriedade, que há muito deixou de ser apanágio de um socialismo moderno?

No nosso panorama político, agora que a “geringonça” se tornou desnecessária, talvez devêssemos começar a eliminar as aberrações que ela impôs.