Em Portugal, o imposto municipal sobre imóveis (IMI) constitui receita dos municípios onde aqueles se localizam e é teoricamente justificado pelo chamado “princípio da equivalência ou do benefício”, segundo o qual o pagamento deste imposto é uma contrapartida dos benefícios que os proprietários e usufrutuários recebem com obras e serviços que o município proporciona. Por essa razão, os titulares de património imobiliário, adquiridos com ou sem empréstimo bancário, pagam o mesmo, de acordo com a respectiva avaliação.
Dito de outra maneira, à
luz deste princípio e com uma formulação mais geral, os impostos devem
corresponder ao valor ou ao custo dos bens disponibilizados pelo Estado aos
contribuintes. (Tente não rir.)
Esta racionalização
justificativa dos impostos é um tanto ou quanto deficiente, para não dizer
outra coisa, tanto mais que ela implica logicamente alguma proporcionalidade
entre os benefícios recebidos e o montante do imposto a pagar. Ora, em
aparente contradição, as taxas dos diversos impostos tendem a manter-se estáveis
(e, nalguns casos, tendem até a crescer) mesmo em períodos de fraco ou nulo investimento
público.
Outro exemplo coxo desta
racionalização é o da tributação do sector automóvel, em particular dos
impostos sobre os combustíveis. Estes tributos destinar-se-iam a cobrir as
despesas inerentes à construção e manutenção das estradas e outros custos
associados. Dito de outro modo, tais impostos corresponderiam, de certa forma,
aos preços dos bens ou serviços públicos utilizados pelos utentes das estradas.
Fica por explicar, claro, a enorme disparidade dos nossos impostos sobre os
combustíveis em relação aos outros países europeus com uma rede viária de
qualidade semelhante.
Uma enorme pedra no sapato desta
teoria é que, como sabe qualquer estudante de finanças públicas, em Portugal os
impostos não estão nem podem estar (ao contrário do que acontece com a cobrança
de taxas e emolumentos) sujeitos a qualquer afectação específica da despesa pública.
Por exemplo, um imposto cobrado com justificações ambientais não tem que ser
aplicado na defesa do ambiente; pelo contrário, pode ser aplicado onde o Estado
quiser e lhe apetecer.
Mas enfim, adiante… Subjacente a
esta doutrina está a ideia de que nós pagamos impostos ao Estado como
contrapartida por aquilo que ele nos proporciona (ou é suposto proporcionar).
Se fecharmos um pouco os olhos e paralisarmos o raciocínio, até se consegue
aceitar a contragosto. Digamos que não explica tudo, e muito menos os excessos
fiscais, mas cria um simulacro de reciprocidade entre os contribuintes e o
Estado em sentido lato (incluindo, portanto, as autarquias). Quando levantamos
questões de proporcionalidade e de justiça fiscal, aí é que estragamos tudo. E
para não ter de mudar de assunto, vamos abster-nos disso.
Consideremos precariamente
justificado o IMI, sem esmiuçar mais por agora. Deixemos de lado questões
incómodas como as isenções, as taxas aplicáveis, as cobranças abusivas, a
qualidade dos serviços e as escassas garantias dos contribuintes.
Pergunta-se: se essa é a
justificação genérica para a cobrança do IMI, qual é então a justificação para
a cobrança de um adicional ao IMI?
Desde que este foi instituído,
ninguém tentou escamotear o facto de este ser um imposto sobre a riqueza.
Ninguém tentou justificá-lo com investimentos “adicionais” das autarquias.
Visava penalizar a acumulação de património, ponto. Mas isto fazia dele um
imposto extremamente injusto logo à partida, porque é bastante discriminatório.
Ele só visa o património imobiliário, que é o único que não pode fugir (não emigra
nem sai do sítio, não pode esconder‑se, não cabe debaixo do colchão). E então
as outras formas de riqueza? O dinheiro das contas bancárias pode mudar de país,
acoitar-se em cofres ou desaparecer dos bancos. O investimento em ações e
obrigações pode deslocar-se para outros mercados financeiros. Os activos das
empresas podem ser depreciados ou relocalizados. Os lucros podem ser
distorcidos ou camuflados e, se atacados seriamente, limitam o investimento
privado ou põem-no em fuga. As viaturas de luxo e os iates podem também rumar a
outras paragens mais hospitaleiras. O único património relativamente indefeso
são os imóveis. As restantes formas de riqueza têm todas como escapar e, se
necessário, não hesitam em fazê‑lo.
Mas a injustiça não fica por aí. Opta-se
por atacar o elo mais fraco e, por acréscimo, de uma forma desproporcional à
riqueza real que ele representa, porque se toma em consideração o património
bruto e não o património líquido.
Imaginemos, para simplificar
contas, que alguém investe um milhão na compra de um imóvel, ou de vários, não
importa qual a finalidade desse investimento. Esse alguém aplica aí cem mil que
tinha de poupanças e pede emprestados a um banco os restantes novecentos mil. O
seu património líquido não se alterou. Adquiriu um imóvel de um milhão, mas ficou
a dever novecentos mil, portanto o valor líquido daquele património começa por
ser de apenas cem mil para si e só vai aumentando à medida que a respectiva
hipoteca vá sendo amortizada. O valor líquido deste património é, em cada
momento, o seu valor de mercado (ou, para efeitos fiscais, a sua avaliação
tributária) menos a dívida remanescente da hipoteca. Por outras palavras, é o
valor do que tem menos o que deve.
Mas o fisco, armado em chico-esperto
(como se diz na gíria), não quer saber para nada da sua dívida ou do empréstimo
que contraiu para adquirir o que tem. Tem um imóvel de um milhão registado em
seu nome? Então é dono de um milhão. Deve novecentos mil? Paciência, é problema
seu. Passe para cá o imposto sobre um milhão e vá carpir as mágoas para onde
quiser.
É esta a marca de um socialismo
retorcido que quer expropriar paulatinamente a riqueza onde ela se encontrar e
onde possa fazê-lo sem grandes efeitos secundários, capazes de gerar
complicações políticas indesejáveis? Não. É antes a marca de um Estado que se
tornou desonesto e demasiado ganancioso. Não podendo tributar às cegas, ataca o
património mais vulnerável. Poupa o património financeiro, que tem grande
mobilidade e pode facilmente fugir ou desaparecer, e golpeia o património
imobiliário, que está preso ao chão pelas fundações e só pode, na pior das
hipóteses, mudar de dono. (E é isso que frequentemente tem acontecido,
obrigando proprietários nacionais a vender apressadamente a investidores
estrangeiros ou a fundos especulativos, sobretudo quando as receitas turísticas
caíram por causa da crise pandémica. Muitos dos nossos imóveis de interesse
histórico ou arquitectónico têm assim mudado de mãos, passando a gerar
rendimentos ou evasivas fiscais para os capitais estrangeiros que estão em
melhores condições para resistir à investida, por vezes graças a reduções ou
isenções de que os contribuintes nacionais não beneficiam).
Todos os países têm impostos
sobre o património imobiliário, equivalentes ao nosso IMI. Mas poucos são os
que se atrevem a tributar a riqueza em si, para que ela não fuja, o que é
bastante sensato. A riqueza produz sempre mais benefícios onde estiver, seja
sob a forma de consumo ou de investimento, e qualquer destas formas de despesa
gera rendimentos para os fornecedores privados de bens ou serviços e impostos
para o Estado (incluindo as autarquias). Se a riqueza muda de poiso, vai
produzir benefícios para outro lado. Afugentar a riqueza é como degolar a
galinha dos ovos de ouro. É simplesmente estúpido, qualquer que seja a
ideologia subjacente.
Mas a coerência doutrinária
obriga à insensatez, que é como quem diz, à absoluta falta de pragmatismo. Um
dos grandes teóricos socialistas do nosso tempo, Thomas Piketty (que muitos
olham e veneram como uma espécie de Karl Marx do século XXI), advoga que o
imposto sobre a fortuna deve tentar tratar da mesma maneira todas as formas de
património, imobiliário ou financeiro, o que minimiza as distorções económicas,
mas aceita como um mal menor que tal imposto em França incorpore demasiadas
reduções e isenções fiscais (afinal em que ficamos?). Tudo, hélas!,
menos a isenção total do património financeiro. Chega até a defender que os
velhos impostos imobiliários sejam substituídos por um imposto geral sobre a
fortuna. Mas mesmo este visionário impenitente aceita como razoável e aponta
como uma das razões da superioridade de um tal imposto que ele permita a
dedução das dívidas. No caso do imobiliário, e para esse efeito, o património tributável deve ser o
valor dos imóveis menos os empréstimos que os oneram.
Por que é que no caso português
não é assim? Decerto os velhos e tradicionais socialistas compreendem a
diferença entre património bruto e património líquido e são capazes de captar a
lógica da justiça fiscal inerente à dedução das dívidas hipotecárias. Por que
permanece então o chamado “imposto Mortágua”, que obedece a uma lógica
completamente diferente, a da hostilidade raivosa a todo o património, a da
fiscalidade confiscatória, a da guerra implícita a toda a forma de propriedade,
que há muito deixou de ser apanágio de um socialismo moderno?
No nosso panorama político, agora
que a “geringonça” se tornou desnecessária, talvez devêssemos começar a
eliminar as aberrações que ela impôs.
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