sábado, 16 de janeiro de 2021

A "IVª República" trocada por miúdos (introdução)

 Num despretensioso livro de história geral encontrei há tempos esta frase simples, mas lapidar: “(…) se derrubarmos um sistema injusto sem termos uma ideia clara daquilo que o vai substituir, em última instância as coisas podem mudar muito menos do que esperávamos – ou então mudar de uma maneira completamente diferente.

Embora estas considerações se reportassem aos acontecimentos que precederam a Revolução Francesa, elas assentam que nem uma luva aos partidários lusos da chamada “IVª República”, muitos dos quais usam a expressão apenas para exprimir um vago anseio de mudança política radical, sem terem ideias muito definidas acerca dos princípios orientadores que a devem inspirar. E não admira: trata-se de um conceito que foi atirado para a ribalta política antes de ter sido devidamente moldado e aplainado. Por isso mesmo, torna-se urgente definir os seus contornos.

Não chega associar um ideal de mudança com simples aspirações de ordem geral, tais como: menos socialismo, menos criminalidade, menos corrupção, menos impostos, menos imigrantes. Tudo isso é perfeitamente compatível com o regime na sua actual forma e depende sobretudo de resultados eleitorais e orientações governativas. A ideia de uma IVª República tem de significar mais do que isso. Tem de implicar uma alteração substancial do próprio sistema político e dos princípios constitucionais que o regem, assim como da estrutura e funcionamento do Estado (em sentido amplo).

É possível desdobrá-la em, pelo menos, quatro vertentes:

1. Uma significativa alteração constitucional

2. Um novo sistema político

3. Uma reforma das leis eleitorais

4. Uma reforma do Estado (desconcentração de competências, descentralização de organismos, leis anti-corrupção e anti-nepotismo, regime de exclusividade dos titulares de cargos políticos, desburocratização, desregulamentação, digitalização)

Estas são as mudanças necessárias que deverão balizar os novos contornos do regime e albergar dentro de si as disputas partidárias, tanto as ideológicas como as programáticas. Não devem ser confundidas com orientações de governo nem com a supremacia de qualquer partido redentor. Se o regime continua a ser democrático, como indubitavelmente se pretende, ele não tem de fazer previamente as escolhas governativas que competem ao eleitorado. Não tem que fazer opções entre o liberalismo ou o socialismo, por exemplo, nem determinar orientações num sentido ou no outro.

No essencial, o que é preciso é remover os condicionamentos arbitrários que actualmente enviesam as normas e os procedimentos e as decisões a favor de uma concepção abrangente do socialismo, constitucionalmente consagrada numa época já ultrapassada em que a própria Constituição foi votada sob tutela militar e em circunstâncias ainda de turbulência revolucionária. É preciso retirar-lhe as amarras e devolver aos actos eleitorais e às opções governativas a amplitude de escolha que lhes foi negada. É preciso ampliar e revitalizar um espectro político que foi intencionalmente truncado à direita, de modo a favorecer maiorias de esquerda e a deslocar o centro, desacreditando-o, assim prejudicando o equilíbrio e a simetria do sistema.

A perversão ideológica que foi introduzida na Constituição e no funcionamento das instituições tem de ser eliminada. Mas, por outro lado, é preciso defender a estabilidade essencial de certas funções do Estado, que não podem ficar levianamente sujeitas aos efeitos destrutivos de um excesso de alternância ideológica, ou dito de outra maneira, de uma “política em ziguezague”. É esse o caso dos sistemas de educação e de saúde, por exemplo, ou do ordenamento do território, das leis da nacionalidade ou da política de população. Há certas leis estruturantes que não podem ficar à mercê de maiorias instáveis ou tangenciais e cuja alteração deve requerer maiorias qualificadas ou um certo espaçamento temporal. De facto, em algumas matérias, a falta de democracia pode ser tão perniciosa como o excesso de democracia, o que requer uma nova e cuidadosa ponderação constitucional.

Por conseguinte, falar da “IVª República” tem muito que se lhe diga. Por enquanto, este conceito exprime a necessidade indesmentível de uma mudança profunda. Mas é preciso detalhar melhor em que direcção devemos ir, para que não saia o tiro pela culatra. Há muito estudo e debate pela frente, por muito que isso doa aos apressados. Como diz o adágio: “depressa e bem, não há quem”. Mas é altura de pôr os pés ao caminho.

Nos próximos “posts”, tentarei dar alguns contributos.