sábado, 16 de setembro de 2017

Política versus futebol

A fazer fé na imprensa, o Governo está decidido a impedir a realização de jogos de futebol nos dias de actos eleitorais. Mas será esta uma boa ideia?

Vejamos. Os jogos oficiais de futebol disputam-se geralmente à tarde ou à noite. Os que são à noite não atrapalham nada. E os que são de tarde não impedem as pessoas de votar de manhã. Fará sentido proibi-los? Se fizesse algum sentido, teríamos de proibir muito mais coisas.

Se as idas ao futebol impedissem realmente os cidadãos de votar de tarde, o que é um pressuposto bastante discutível, e se isso pudesse considerar‑se catastrófico para a democracia, poderíamos então alegar que as idas à missa impedem os crentes praticantes de votar de manhã. Deveremos também proibir a celebração da missa nos dias de eleições? Dependendo da religião que as pessoas professem com mais convicção (o cristianismo, o futebol ou a política), muitos devotos poderão não achar graça nenhuma a tais proibições. E em vez de levá-los a votar, a medida pode gerar ainda mais descontentamento com a democracia (ainda que seja só contra este género particular de democracia que temos).

Aliás, para a proibição poder surtir efeito, conviria proibir também todas as actividades de substituição que as pessoas podem encontrar para se entreterem, se forem privadas de ir ao estádio ou à igreja em dias eleitorais. Haverá que proibir a transmissão televisiva de jogos estrangeiros ou de ofícios religiosos, e mesmo a televisão em geral, as emissões dos canais por cabo e por satélite, os videojogos, a internet, o sexo diurno, os concertos, os cinemas, todos os outros eventos culturais ou desportivos que sobrem e, no limite, até mesmo levar os miúdos ao parque infantil ou convidar os familiares e amigos para almoçar. Tudo o que possa distrair-nos do nosso dever cívico de votar será um pecado democrático e, portanto, merecedor de interdição. Ou seja, para pressionar os cidadãos desinteressados a fazer uma peregrinação às urnas seria necessário proibir quase tudo e, já agora, acrescentar uma fatwa com ameaças de lapidação. E mesmo assim, sabe-se lá o resultado.

Este raciocínio que acabei de expor tem o seu análogo noutro que se faz em matemática quando se pretende pôr em evidência que uma certa ideia não é boa: chama-se demonstração por absurdo. E o absurdo de proibir os jogos de futebol em dias de eleições para levar as pessoas a votar é de tal ordem que nem precisa de ser transformado em teorema, porque salta logo aos olhos. A causa de tanta gente não votar não é nenhum de muitos impedimentos lúdicos imagináveis, mas sobretudo uma de duas: desinteresse de o fazer ou não querer mesmo fazê-lo. Contra isso não há proibições que valham.

Se o governo quer pressionar as pessoas a votar, mesmo sem terem motivação para isso, então seja coerente: torne o voto obrigatório e imponha uma multa a quem não cumprir. E aguente-se depois com a contestação. Como pretexto, aliás idêntico ao que já se usou noutros países, poderá alegar que é justo que quem não cumpra o seu dever cívico de votar (mesmo que nulo ou branco) tenha o ónus de contribuir para os custos do acto eleitoral, através da multa que lhe será imposta. Assim, quem não se der à maçada de ir à urna terá o incómodo relativamente menor de ir ao bolso e prescindir duns trocos.

Mas toda esta polémica é artificiosa e ridícula. Nada impede ninguém de, no mesmo dia, ir à missa, ir à urna e ir ao estádio, não necessariamente por esta ordem, e ainda sobra tempo para o sexo diurno e outros devaneios. O problema com a democracia, como toda a gente bem sabe, é outro. E não serão mais uns quantos milhares de votos que irão resolvê-lo.

No entanto, esta recente febre de proibições em prol da democracia levanta uma outra questão: o direito individual à liberdade de escolha. Se o voto for tornado obrigatório, o cidadão ainda pode escolher entre ir votar ou pagar a multa. Mas quando começam a proibir-lhe o que o motiva fazer, nunca se sabe qual será o limite das proibições. De qualquer modo, está-se a restringir a escolha. O melhor mesmo é não enveredar por aí, nem mesmo começando por simples jogos de futebol, porque a lógica das proibições tem o feio costume de tomar o freio nos dentes e não saber quando deve parar. Historicamente, não faltam exemplos disso. E apesar de a História nunca se repetir, por vezes deixa-se imitar muito bem.