A
fazer fé na imprensa, o Governo está decidido a impedir a realização de jogos
de futebol nos dias de actos eleitorais. Mas será esta uma boa ideia?
Vejamos.
Os jogos oficiais de futebol disputam-se geralmente à tarde ou à noite. Os que
são à noite não atrapalham nada. E os que são de tarde não impedem as pessoas
de votar de manhã. Fará sentido proibi-los? Se fizesse algum sentido, teríamos
de proibir muito mais coisas.
Se as
idas ao futebol impedissem realmente os cidadãos de votar de tarde, o que é um
pressuposto bastante discutível, e se isso pudesse considerar‑se catastrófico
para a democracia, poderíamos então alegar que as idas à missa impedem os
crentes praticantes de votar de manhã. Deveremos também proibir a celebração da
missa nos dias de eleições? Dependendo da religião que as pessoas professem com
mais convicção (o cristianismo, o futebol ou a política), muitos devotos
poderão não achar graça nenhuma a tais proibições. E em vez de levá-los a
votar, a medida pode gerar ainda mais descontentamento com a democracia (ainda
que seja só contra este género particular de democracia que temos).
Aliás,
para a proibição poder surtir efeito, conviria proibir também todas as
actividades de substituição que as pessoas podem encontrar para se entreterem,
se forem privadas de ir ao estádio ou à igreja em dias eleitorais. Haverá que
proibir a transmissão televisiva de jogos estrangeiros ou de ofícios
religiosos, e mesmo a televisão em geral, as emissões dos canais por cabo e por
satélite, os videojogos, a internet, o sexo diurno, os concertos, os cinemas, todos
os outros eventos culturais ou desportivos que sobrem e, no limite, até mesmo
levar os miúdos ao parque infantil ou convidar os familiares e amigos para
almoçar. Tudo o que possa distrair-nos do nosso dever cívico de votar será um
pecado democrático e, portanto, merecedor de interdição. Ou seja, para
pressionar os cidadãos desinteressados a fazer uma peregrinação às urnas seria
necessário proibir quase tudo e, já agora, acrescentar uma fatwa com ameaças de lapidação. E mesmo assim, sabe-se lá o
resultado.
Este
raciocínio que acabei de expor tem o seu análogo noutro que se faz em matemática
quando se pretende pôr em evidência que uma certa ideia não é boa: chama-se demonstração por absurdo. E o absurdo de
proibir os jogos de futebol em dias de eleições para levar as pessoas a votar é
de tal ordem que nem precisa de ser transformado em teorema, porque salta logo
aos olhos. A causa de tanta gente não votar não é nenhum de muitos impedimentos
lúdicos imagináveis, mas sobretudo uma de duas: desinteresse de o fazer ou não
querer mesmo fazê-lo. Contra isso não há proibições que valham.
Se o
governo quer pressionar as pessoas a votar, mesmo sem terem motivação para
isso, então seja coerente: torne o voto obrigatório e imponha uma multa a quem não
cumprir. E aguente-se depois com a contestação. Como pretexto, aliás idêntico
ao que já se usou noutros países, poderá alegar que é justo que quem não cumpra
o seu dever cívico de votar (mesmo que nulo ou branco) tenha o ónus de contribuir
para os custos do acto eleitoral, através da multa que lhe será imposta. Assim,
quem não se der à maçada de ir à urna terá o incómodo relativamente menor de ir
ao bolso e prescindir duns trocos.
Mas
toda esta polémica é artificiosa e ridícula. Nada impede ninguém de, no mesmo
dia, ir à missa, ir à urna e ir ao estádio, não necessariamente por esta ordem,
e ainda sobra tempo para o sexo diurno e outros devaneios. O problema com a
democracia, como toda a gente bem sabe, é outro. E não serão mais uns quantos
milhares de votos que irão resolvê-lo.
No
entanto, esta recente febre de proibições em prol da democracia levanta uma outra questão: o direito individual à liberdade de escolha. Se o voto for tornado
obrigatório, o cidadão ainda pode escolher entre ir votar ou pagar a multa. Mas
quando começam a proibir-lhe o que o motiva fazer, nunca se sabe qual será o
limite das proibições. De qualquer modo, está-se a restringir a escolha. O
melhor mesmo é não enveredar por aí, nem mesmo começando por simples jogos de
futebol, porque a lógica das proibições tem o feio costume de tomar o freio nos
dentes e não saber quando deve parar. Historicamente, não faltam exemplos disso.
E apesar de a História nunca se repetir, por vezes deixa-se imitar muito bem.
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