sábado, 9 de novembro de 2019

A gaguez como virtude política


Se eu for coxo, não participo numa corrida de competição com obstáculos.
Se eu for surdo, certamente não compro bilhetes para ir a um concerto.
Se eu for cego ou absolutamente míope, não me inscrevo num campeonato de tiro.
Se eu for mudo ou tiver uma gaguez severa, não me candidato a orador parlamentar.
Tudo isto é, no essencial, uma questão de simples bom senso. Ou será que não?

Por estes dias, o país assiste aturdido e confrangido ao triste desempenho de uma deputada gaga de origem guineense que logrou fazer-se eleger para o nosso Parlamento, vá-se lá saber porquê. Na verdade, embora se especule muito, ninguém entende muito bem o que é que a dita senhora foi para lá fazer, porque nada de relevante se retira das suas patéticas intervenções que justifique tão improvável escolha. Mas mandam a boa educação e a nossa apurada correcção política que se omita que a visada nos dá um triste espectáculo sempre que abre a boca, fazendo daquele seu defeito ou feitio um motivo viral de mero sensacionalismo mediático. A senhora ganha alguma fama, o Parlamento perde alguma credibilidade, mas ambos se tornam motivo de chacota, e nada disto é saudável.

Qual foi então a intenção de quem a meteu como cabeça-de-lista numa candidatura partidária? Lembrar ao país que há pessoas gagas? Obrigado, já sabíamos. A inverosímil deputada traz alguma contribuição intelectual que valorize a sua participação no hemiciclo? Até aqui, não vimos nada. O objectivo era dar representação a alguma minoria desfavorecida? Talvez sim, mas nesse caso tenho várias questões a colocar.

A deputada, de que não menciono o nome porque não é preciso e porque não se trata aqui de particularizar, mas de escalpelizar a racionalidade do fenómeno em si mesmo, vem afinal ao quê? Vem representar os gagos, ou as pessoas de raça negra, ou as mulheres, ou quem tem alguma orientação sexual fora do padrão dominante, tal como a dos homens que gostam de andar de saias? Ainda nada lhe ouvimos nesse sentido. Mas se fosse esse o caso, a senhora deputada estaria lamentavelmente equivocada, porque a sua função constitucional é a de representar todos os portugueses e não apenas as minorias da sua predilecção. Pondo a coisa noutros termos: de um ponto de vista formal, ela simboliza, juntamente com os outros deputados, todos os cidadãos do país, não apenas os eleitores, não apenas o distrito por onde foi eleita, não apenas os simpatizantes ou os distraídos que votaram nela ou no seu partido. Ela não é paga pelos nossos impostos para fazer lobbying, mas para pensar o país como um todo. Ela é uma voz da nação, razão pela qual a nação deveria ter mais critério e a voz deveria ter mais noção das suas limitações para o cargo.

À superfície e em concreto, pode até parecer que é a própria pessoa que está em causa. Mas não. Ela tem tanto direito como qualquer outra a candidatar-se e a ser eleita, desde que reúna os requisitos legais para isso. Mas há certos direitos que é ridículo exercer.

No fundo e em abstracto, pode dizer-se que ela foi eleita, como todos os outros deputados, para representar uma população inteira, que é composta por pessoas de orientações diversas, incluindo maioritariamente as que não são gagas, que não são de raça negra ou sequer de origem africana, que talvez sejam mais mulheres do que homens, mas por uma escassa margem, e que decerto são apenas prosaicamente heterossexuais. Mas se ela se esquecer disso, passará num ápice da gaguez vocal para a gaguez política. E aí deixará de ser novidade, pois é óbvio que não faltam gagos desses no hemiciclo.

Apesar de tudo, é possível ver um aspecto positivo nesta sua deficiência da comunicação verbal. Não há nenhum mérito especial em ser mulher, ou em ser de raça negra, ou em fazer-se assessorar por gente de gostos estranhos. Tais atributos são (ou deveriam ser) neutros. Mas pode haver uma particular virtude, ainda que involuntária, em ser tão gaga, dado que a senhora deputada, por causa desse seu bloqueio, dificilmente terá tempo e oportunidade e capacidade para igualar a média de disparates e vacuidades que são proferidos pelos seus colegas. E isso é positivo. Talvez até não viesse mal nenhum ao país se passássemos a ter algumas dezenas de deputados mudos. Como muitos só lá estão para marcar presença, também não se perderia muito nem se notaria a diferença.


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