sábado, 16 de novembro de 2019

Ser ou não ser de extrema-direita, eis a questão


Na anterior legislatura, só com a contribuição generosa do PCP e do Bloco de Esquerda, tínhamos no Parlamento nada menos do que 36 deputados de extrema-esquerda ou afins. Quase ninguém se escandalizou por isso, o que foi, segundo então ouvimos, um sinal de maturidade democrática. Não só pela aceitação generalizada do fenómeno, mas também pelo facto de esses dois partidos parecerem continuar dispostos a renunciar temporariamente aos seus ímpetos revolucionários, dado a conjuntura não ser a melhor.

Na actual legislatura, a quantidade de deputados da extrema-esquerda caiu para apenas 31 deputados, o que já foi motivo de escândalo para alguns. Parecia ser uma injustiça, depois de tantas negociações e arruadas que fizeram em prol do país. Mas ainda assim, segundo certas perspectivas, continuaram a ser muitos.

O grande fenómeno recente foi termos passado finalmente a ter também um deputado de extrema-direita. E isso sim, suscitou a indignação geral, excepto a do próprio e seus apoiantes. Não sei se deveremos ver nisto também um sinal de maturidade democrática e de contenção cívica, visto que, até ao momento em que escrevo, o eleito ainda não sofreu nenhum atentado nem lhe fizeram um auto-de-fé no Terreiro do Paço. O que mostra que, contra a vontade dos discordantes, vamos no bom caminho: o da tolerância de costumes.

De facto, já bem basta a consternação de o homem ter sido eleito, não é necessário aprofundar o drama. Mas com ele se quebrou mais um tabu da democracia portuguesa: afinal, o extremismo não é um privilégio exclusivo da esquerda. Nem tão pouco, ao que parece, da esquerda e da direita juntas, visto que um novo e pujante partido, o PAN, pretende empurrá-lo noutras direcções. Estou convencido de que a rosa-dos-ventos ficará satisfeita com isso, ao ver abrirem-se novos caminhos para a navegação (embora só de cabotagem, como sempre).

A dúvida que me assalta é se o eleito é mesmo da extrema-direita ou se existe um esforço concertado para o empurrar para lá, apenas porque diz algumas verdades inconvenientes. Nesta segunda hipótese, corre‑se o risco de ele e os seus apoiantes se convencerem de que é mesmo aí o seu lugar. E isso seria para os críticos como um tiro no pé. O visado bem pode alegar que preza a democracia, que é um europeísta, que nem sequer liga às peculiaridades da nossa arquitectura parlamentar, que mesmo assim ninguém lhe dá ouvidos. E lá diz o ditado: se não podes vencê-los, junta-te a eles. O que neste caso equivaleria a aceitar resignadamente preencher o espaço que quase todos parecem destinar-lhe. Sinceramente, não acho todo este ostracismo uma boa ideia.

Tenho até, aliás, uma teoria também bastante inconveniente sobre este assunto. No fundo, pode não se tratar senão de um equívoco explicável pela nossa história recente. Após a épica revolução de Abril e o tsunami socialista e social-democrata que se lhe seguiu, os partidos que pretendiam mesmo ser de extrema-direita foram ilegalizados ou mediaticamente proscritos, pelo que chegámos ao ponto um pouco absurdo de o partido mais à direita no espectro político que tínhamos ser o Centro Democrático e Social (CDS). Ou seja: nominalmente, deixámos de ter direita (ou melhor, direitas). Na realidade, elas continuaram por aí a ser muitas e várias, mas andavam à nora, sem assumir os seus pecadilhos ideológicos e sem saberem como se apelidar sem serem logo alvo de bullying ou de perseguição jornalística. Nem os simpáticos liberais nem os sisudos conservadores punham os pauzinhos de fora, pelo menos de forma explícita e assumida, chamando logo os bois pelos nomes. Andavam ali num limbo, numa indefinição crónica, até por fim não saberem já quem eram, de onde vinham ou para onde iam, o que é a pior coisa que pode acontecer a uma filosofia política. Ou seja: durante décadas, privado de uma direita assumida e coerente, o país viveu politicamente amputado e nem deu por isso.

Entretanto, tudo mudou ou tende a mudar, mas certos hábitos intelectuais ficaram. Ainda há muita gente disposta a chamar extrema-direita a qualquer coisa que mexa um pouquinho mais à direita que o CDS, que até hoje ainda não renunciou a posicionar-se (pelo menos parcialmente) no centro. Daí que depois fique difícil atribuir as cadeiras no Parlamento, sobretudo quando nele surgem novas forças políticas, pois que ainda há pouca gente destemida a preferir abertamente sentar-se à direita do hemiciclo e os deputados da esquerda e do centro, tal como os da direita envergonhada, recusam firmemente sentar-se ao colo uns dos outros. O que vale é que, não obstante algumas escaramuças, tem imperado o sentido prático. Senão teríamos de reduzir drasticamente o número de deputados para conseguir sentar todos, o que não deixaria de ser um daqueles males que vêm por bem.


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