quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

A questão das identidades e o descontrolo migratório

    
                                                     "(…) na Europa pós-moderna a identidade individual
                                                     é tudo e a identidade colectiva é nada (…)"
                                                                    Sérgio Sousa Pinto, Expresso, 08/02/2020

         Aí está algo que não é bem verdade, mas que toca numa questão sensível.               
         As pessoas tendem a acumular várias identidades individuais e várias identidades colectivas. Algumas delas sobrepõem-se como as camadas de uma cebola. E outras antagonizam-se, dando origem a conflitos interiores.

           Cada indivíduo tende, melhor ou pior e com maior ou menor ênfase, a assumir o seu sexo ou a sua orientação sexual, as suas particularidades físicas ou emocionais, as suas origens familiares e geográficas, a sua raça ou a cor da pele, o seu nível de habilitações académicas ou profissionais, a sua inserção laboral e os seus hobbies, as suas opiniões e crenças, os seus gostos e objectivos, e por aí fora. Enfim, tudo aquilo que ele julga que o define como indivíduo.

        Tudo o resto que o torna membro de diversas comunidades, para ele, vem geralmente depois, como se fossem meros acrescentos, independentemente da importância que lhes dê: a sua igreja, o seu clube de futebol, o seu partido político, uma associação qualquer a que aderiu, a sua nacionalidade, a sua etnia, a sua cultura regional, a sua civilização.

Como estas camadas “comunitárias” são mais exteriores e, portanto, aparentemente mais desligadas daquilo que o próprio crê ser o núcleo duro da sua personalidade, ele julga-as secundárias e menos relevantes. Mas tal como acontece com as camadas da cebola, as mais exteriores são as mais expostas aos choques e são as que mais estão em contacto com a atmosfera circundante e se ressentem dela. Quando os indivíduos interagem, o processo de conhecimento mútuo e de reconhecimento de identidades vai geralmente progredindo do que é mais evidente e exteriorizado para o que é mais pessoal e íntimo, como que descascando uma a uma as várias camadas da personalidade. O que significa que as camadas mais exteriores são as mais sociais, por assim dizer, e por isso mesmo as mais melindrosas e vulneráveis.

Graças ao egocentrismo moderno e proliferante, o que hoje se está a passar é que as pessoas pretensamente educadas e evoluídas fazem questão de valorizar muito mais as suas idiossincrasias pessoais do que os seus traços colectivos, presumindo que as comunidades a que naturalmente pertencem são aquelas que espontaneamente se formam pela partilha de características individuais. No mundo ocidental, tudo o que é de índole comunitária passou a ser subvalorizado ou suspeito, merecendo pouco mais do que aquela condescendência que se pode ter para tudo o que é tradicional. Há uma aversão crescente, ou pelo menos uma crescente desconfiança e um progressivo distanciamento a igrejas, partidos, regionalismos ou pertenças nacionais, e até mesmo em relação a diferenças civilizacionais.

Muitos membros das elites académicas e empresariais gostam de pensar-se a si mesmos como “cidadãos do mundo” e, até certo ponto, pelo modo como vivem ou pelos horizontes que adquirem, até parecem sê-lo. Mas amiúde compreendem mal o significado disso: ser um cidadão do mundo significa estarmos à vontade em todas as culturas e termos facilidade em lidar com todas elas, mas não significa pertencer indiscriminadamente a todas, o que seria impossível, ou acreditar que todas se equivalem ou que estão no mesmo patamar de evolução e sofisticação, o que tornaria impossível avaliá-las comparativamente sem nos apoiarmos em algum preconceito etnocêntrico (dito de outro modo, tornaria impossível hierarquizá-las como “avançadas” ou “atrasadas” sem tomar como bitola a nossa própria cultura ou qualquer outra que se nos apresente como paradigmática, por escolha arbitrária).

Ora o que acontece é que entre as diferentes culturas não há apenas diferenças de natureza, mas também de grau. Umas estão num estádio evolutivo mais avançado do que outras, o que implica que não partilham o mesmo nível de progressão histórica nem o mesmo grau de refinamento mental e de costumes.

Por outro lado, entre culturas diferentes não há apenas meras diferenças, há quase sempre também algumas incompatibilidades. Enquanto a convivência social e os ordenamentos jurídicos conseguem acomodar razoavelmente as diferenças que podem coexistir pacificamente, alicerçadas em hábitos induzidos de tolerância mútua, elas enriquecem o panorama cultural e trazem-lhe algum colorido; mas as incompatibilidades irresolúveis são motivo de fricções e de hostilidades recíprocas.

Chegados a este ponto, talvez seja melhor ilustrar com alguns exemplos óbvios. Não é possível acomodar pacificamente no mesmo sistema jurídico a consagração do casamento exclusivo e a poligamia, a paridade entre os sexos e a menorização da mulher, a aceitação dos “crimes de honra” e a proibição de fazer justiça pelas próprias mãos, os direitos dos menores e a mutilação genital de crianças, o canibalismo e a proibição de profanação dos cadáveres, a escolaridade obrigatória e o trabalho infantil que impeça a sua frequência, assim como não é possível fazer coexistir ordeiramente no mesmo caldo de cultura a higiene pública e a flagrante falta dela, o civismo e a rebaldaria, o trato educado e a agressividade arrogante, o tendencial cumprimento das leis e a elevada propensão para a criminalidade, o respeito generalizado das regras e os hábitos arreigados de delinquência. Fatalmente, estes diferentes traços culturais entrarão em choque com alguma regularidade e virulência.

Cada cultura não se diferencia das outras apenas em pormenores exóticos e pitorescos como a indumentária e a gastronomia, as devoções religiosas e as formas de saudação, os estilos de arquitectura tradicional ou as tradições folclóricas. A cada cultura correspondem valores, atitudes e comportamentos que as diferenciam das demais. E das duas, uma: ou essas diferenças podem coexistir pacificamente entre si, porque não se molestam umas às outras, ou revelam incompatibilidades que as fazem entrar em atrito e depois em choque declarado.

Como a realidade demonstra sobejamente, não só entre culturas como entre pessoas, algumas poucas características conflituantes bastam para impedir a harmonia ou a irrelevância das restantes. Às vezes basta apenas uma. Quantas paixões aparentemente destinadas ao idílio não foram já arruinadas por um simples pormenor insuportável! Nas questões de vizinhança, tudo se passa de modo irritantemente análogo. Basta uma particularidade desagradável para afectar uma boa impressão de conjunto, e se essa particularidade não for facilmente suportável até a boa impressão de conjunto depressa acaba por desvanecer-se. O negativo tende a sobrepor-se ao positivo, tal como uma simples dor de dentes faz logo desaparecer o bem-estar geral.

É também por considerações deste género, pesem embora as abstracções ou as analogias apressadas, que as migrações indiscriminadas e descontroladas criam um mal-estar crescente e aumentam rapidamente o potencial de conflito étnico. Quando se misturam indiscriminadamente culturas que não são compatíveis em alguns dos seus aspectos fulcrais (sobretudo, nas atitudes e comportamentos) não se deve esperar que no fim prevaleça a tolerância. Esta dirige-se com facilidade às diferenças inofensivas, por mais contrastantes que sejam, mas não às incompatibilidades incómodas, e ter de conviver forçosamente com estas últimas conduz inevitavelmente ao conflito e à erosão da própria tolerância. Tal como acontece na química, algumas misturas podem tornar-se explosivas.

Antes de tentar viver no melhor dos mundos possíveis, os políticos fariam melhor em tentar arrumar razoavelmente aquele que temos. E para isso convém começar por percebê-lo. Nos tempos modernos, de fácil mobilidade, nenhum país pode prescindir de uma criteriosa política de população. Ou a violência étnica, mais dia menos dia, ressurgirá em grande escala.