Nos dias que correm,
somos assolados por diversas dúvidas:
a) qual é realmente a
perigosidade deste vírus?
b) podemos confiar nas estatísticas
oficiais sobre a pandemia?
c) a reacção está a ser
proporcional à ameaça ou há agora um excesso de zelo do tipo lava-culpas?
d) o que devemos recear
mais: os efeitos da epidemia ou um eventual colapso económico?
e) o que se deverá fazer?
Qual é realmente a
perigosidade deste vírus?
A verdade nua e crua é
que ninguém o sabe ao certo, embora pareça bem inferior ao que se chegou a temer.
O que não é propriamente um motivo de alívio, porque há grandes e intrigantes disparidades
na taxa de mortalidade da pandemia em diversos países europeus. Vários factores
podem explicar essas disparidades, mas também não se sabe em que proporção: a
situação geográfica, os possíveis vectores de contágio, as medidas de contenção
tomadas, os tempos de resposta, os meios sanitários à disposição, a organização
e o apetrechamento hospitalares, o grau de cumprimento das regras higiénicas e
das quarentenas pelas populações locais, as mutações do vírus que vão surgindo,
a agressividade das estirpes que mais assolam cada país. E ainda podemos juntar
ao rol a composição etária, étnica e genética das regiões afectadas, os
factores climáticos e metereológicos, a eventual influência dos programas
nacionais de vacinação contra outras doenças, etc... Enfim, um cocktail
de variáveis que dará assuntos de pesquisa para muitos anos, mas que não nos dá
agora pistas seguras.
No imediato, e apesar
das farroncas precipitadas de alguns governos, todos estão a navegar à vista,
com os olhos postos nos outros países e nas estatísticas. E esse é um outro
problema, como veremos.
Eis para já o que consta
na imprensa quanto à mortalidade: 3% dos infectados nos EUA e Canadá, um pouco
mais (3,5%) na Ásia, 5% no conjunto da África e uma média de 8% na Europa, com
alguns países aparentemente bem abaixo dela (como Portugal e Alemanha) e outros
acima (como Espanha e Itália). Mas estas percentagens são apuradas em relação apenas aos casos diagnosticados, pelo que as percentagens reais são desconhecidas.
A maior taxa de
mortalidade na Europa pode ser explicada pelo facto de ser o continente com uma
população mais envelhecida ou de estar a braços com mutações do vírus mais
agressivas, entre outras hipóteses. Mas não é crível que os diferentes sistemas
estatísticos nacionais tenham um grau de fiabilidade idêntico em toda a parte,
pelo que estas comparações podem ser bastante enganadoras.
Podemos confiar nas
estatísticas oficiais sobre a pandemia?
Infelizmente, não. São muito
rudimentares. Não sabemos o número real de infectados nem o número de óbitos
realmente provocados pela acção do vírus.
Todos os dias se anuncia
o número já conhecido de infectados, mas toda a gente percebe que o número real
é bem superior e totalmente desconhecido. Por várias razões: o número
disponível de testes tem sido sempre muito escasso; o número de testes efectuados foi ainda menor, devido às habituais atrapalhações da logística e à
quantidade limitada de laboratórios, equipamentos e reagentes; a cada dia que
passa, há ainda milhares de testes que aguardam os resultados laboratoriais; e
principalmente porque a esmagadora maioria da população infectada (estima-se
que cerca de 80%) é assintomática ou só apresenta sintomas discretos.
O que se pode concluir
daí? Se a capacidade de testar é ainda muito limitada, se a detecção de casos
depende dela e se os testes se aplicam sobretudo aos casos sintomáticos, o
número de infectados será decerto muito maior. Mas quantos? Alguns matemáticos
estimam que os casos reais sejam, pelo menos, dez vezes superiores aos casos
confirmados. E isso, a ser verdade, é uma boa notícia: significa, por esse prisma,
que a letalidade do vírus é muito menor do que o cálculo oficial, talvez dez vezes menos ou menor
ainda. Mas não é para menosprezar: a taxa de mortalidade entre os infectados
conhecidos aproxima-se agora entre nós dos 3% e mantém uma tendência lenta e firme de
subida. Duas semanas antes, era cerca de 2%.
Todos os dias se anuncia
o número de mortos apurados, mas a verdade é que não se tem distinguido entre
os que morrem com o coronavírus presente no organismo e os que morrem por
causa do coronavírus, ou seja, pela acção específica deste. Nem sequer é
distinção que seja sempre clinicamente fácil e não há muito tempo a perder com
isso, pelo que vai tudo parar ao mesmo saco. Todas as mortes de pessoas a quem
tenha sido diagnosticado o covid-19 são registadas como sendo causadas por ele,
como se outras causas de morte natural tivessem deixado de provocar baixas
entre os infectados. Ora isto é irrealista, sobretudo se atentarmos nas faixas
etárias em que os óbitos mais ocorrem.
Especificando um pouco
mais: sabemos que a esmagadora maioria dos óbitos parece resultar de uma conjunção
do novo coronavírus com várias outras patologias pré-existentes no mesmo
indivíduo, o que significa que o vírus é muito mais letal para quem já tenha
uma idade avançada e um grau de morbidez elevado, e que vitima sobretudo quem
já ultrapassou a esperança média de vida ou está perto de a atingir.
Mas será o número de
mortes apenas aquele que nos dizem? Nem pensar. Em Portugal, desde o final da
primeira semana de Março até aos primeiros dias de Abril, registou-se um acréscimo anormal de óbitos acima da
média dos últimos dez anos e também acima da média dos últimos três. Mesmo se
descontarmos os óbitos oficialmente atribuídos ao covid-19, restam mais de 800
óbitos por explicar, um desvio de 7% em relação ao expectável, desvio esse que
começou a manifestar-se apenas uma semana depois de terem sido detectados os
primeiros casos de infecção. Pelo menos uma parte destas mortes será
consequência do coronavírus em pessoas que nunca foram testadas.
Parece pois que afinal o
tão apregoado “milagre português” de baixa mortalidade se deve apenas ao facto
de muitas mortes causadas pela pandemia não terem sido registadas como tal. Por
cada óbito atribuído ao coronavírus, ficaram mais três por explicar, segundo os investigadores. Se os
tomarmos em consideração, concluiremos que esse “milagre português” foi apenas operado
pelas falhas da estatística e não pelas virtudes lusas da contenção, nem tão
pouco pela clarividência das autoridades.
Falhas casuais ou
intencionais? Ficamos a matutar.
A criatividade
contabilística dos gregos serviu-lhes em tempos para conseguirem entrar na zona
euro. A nossa criatividade estatística talvez nos sirva para fazermos o papel
de “exemplo a seguir” no combate à pandemia e marcarmos uns pontos nas
instituições europeias. Mas convém não nos iludirmos.
Todos os dias se fala
das virtudes da quarentena e do progressivo achatamento da curva de evolução da
doença, mas na ausença de vacina ou remédio eficaz (e para além de eficaz,
disponível nas quantidades necessárias), apenas estamos por enquanto a
prolongar e a diluir no tempo as consequências da epidemia, enquanto se esperam
milagres rápidos vindos das empresas farmacêuticas. Mas por quanto tempo se
consegue aguentar isto? Quantas vidas teremos de destruir economicamente para
salvar outras clinicamente? E quanto tempo faltará para a população de baixo
risco se impacientar?
A reacção está a ser
proporcional à ameaça ou há agora um excesso de zelo do tipo lava-culpas?
Sim, é uma pergunta
legítima. A natureza humana é o que é.
A princípio, a reacção
das autoridades foi desvalorizar o risco e protelar as medidas. A preocupação
dominante era não beliscar o anunciado excedente orçamental, para que os
políticos envolvidos brilhassem na conjuntura. À impreparação juntou-se o desleixo,
à falta de planeamento juntou-se a falta de meios. Quando se tornou impossível
continuar a ignorar a ameaça sanitária, havia que salvar a face e encobrir
responsabilidades. Perdidos por cem, perdidos por mil. Para compensar a incúria,
veio o excesso de zelo. É sempre assim.
Não, não se admirem:
mesmo no meio de uma pandemia, a política continua. Só o cenário muda.
Quem na véspera da crise
não fez nada do que devia, ou pouco mais que nada, quer amanhã que se pense e
diga que fez tudo o que podia, ou o máximo que estava ao seu alcance.
Objectivo: que nenhum partido seja desacreditado, que nenhuma equipa política
seja responsabilizada. Conseguido isso, pouco importam os danos colaterais.
Como é tradição, o cálculo político não se faz a retalho, faz-se por grosso.
O que devemos recear
mais: os efeitos da epidemia ou um eventual colapso económico?
Pergunta bastante difícil,
hein? Vamos de novo aos números. Numa altura destas, de mentes confusas e amedrontadas,
talvez eles possam ainda ajudar-nos.
Passaram quarenta dias
desde que se detectou o primeiro caso confirmado de infecção pelo coronavírus, e
havia já então cem outros casos suspeitos. Houve entretanto 470 óbitos que lhe
foram atribuídos, sem que se saiba exactamente quantas dessas pessoas infectadas
morreram realmente por causa do coronavírus e não por outra causa simultânea.
Mas desde o início da primeira quarentena passaram apenas três semanas e já
vamos em quase 30 mil empregos destruídos, enquanto 120.000 trabalhadores
independentes perderam parte substancial do seu rendimento.
Bastante pior, em termos
proporcionais, estão as coisas nos EUA: para 425.000 casos confirmados de
infecção e cerca de 18.000 mortes, havia já 17 milhões de empregos destruídos. Grosso
modo, por cada óbito perderam-se quase mil empregos. Em Portugal, perdem-se
uns sessenta, se acreditarmos muito ingenuamente que ninguém em lay-off
acabará no desemprego.
Desde o início desta
crise sanitária, houve 266 doentes recuperados. Muitos terão de ser
vigiados durante meses para se perceber as reais sequelas deixadas pela doença.
Entretanto, 642.000 trabalhadores assalariados já viram os seus empregos colocados em regime de lay-off.
Terminada a quarentena e o apoio estatal, quantos deles se irão perder, quantos
serão recuperados? Ninguém sabe.
Havia que tomar medidas,
anunciar decisões impopulares, impor restrições severas? Claro que sim. Mas será
que a reacção foi proporcional à ameaça ou ao pânico instalado? Retrospectivamente, não
deixa de ser impressionante como em menos de duas semanas se passou de oito a
oitenta. Desde quase desprezar o problema até decretar uma quarentena severa
foi um ápice. Para uns, a quarentena veio tarde. Para outros, veio em excesso. Mas
dada a enormidade dos danos económicos e pessoais que vai provocar, chegou a
altura de pensar o que é mais perigoso no curto e médio prazo, se a doença, se
a cura. Será que o remédio utilizado é o mais adequado? E está a ser administrado
na dose certa? Talvez a resposta seja não. Talvez seja uma overdose.
A não ser que saiam depressa
vários coelhos gordos da cartola do prestidigitador-mor do reino, poderá não
faltar muito para que o pânico económico iguale o pânico sanitário, ou até o
supere. Há já muita gente a sentir-se entre a espada e a parede, cada vez mais
sem dinheiro para pagar as contas e governar a casa. Há já muitas pequenas
empresas a ir pelo cano, destruindo o trabalho e o investimento de anos. E o
empobrecimento não é bom conselheiro, tal como o medo.
O que se deverá fazer?
Voltemos às
estatísticas, ainda que manhosas.
Pelos números oficiais,
abaixo dos 60 anos morreram apenas 20 pessoas por causa do coronavírus e abaixo
dos 40 não morreu ninguém. É muito, em termos absolutos? Em termos estatísticos
é pouco mais que nada. No ano passado morreram cerca de três mil e quinhentas pessoas
só em Janeiro e Fevereiro por causa do surto gripal e da vaga de frio e não houve
nenhum alvoroço, nem o país parou.
Na média dos últimos três
anos, faleceram em Portugal cerca de 111.793 pessoas por ano, 9316 por mês, 306
por dia.
Supostamente por causa
do coronavírus, “a solo” ou conjugado com outras patologias graves, no espaço
de um mês morreram 470 pessoas, 450 delas acima dos 60 anos, 402 delas acima
dos 70 anos, 302 delas acima dos 80 anos. Ora a esperança média de vida
situa-se nos 77 anos para os homens e nos 83 para as mulheres, o que dá uma
média de 80 anos no geral, números redondos. O que mostra que cerca de dois
terços dos óbitos ocorreram após ser atingida ou ultrapassada a esperança média
de vida e quase todo o terço restante já bastante próximo dela. Como é óbvio, a
“esperança média de vida” não implica que todos devem morrer só depois de a
atingirem, pois se trata de uma média. (Creio que o Sr. de La Palisse não diria
melhor…)
Quantas mortes naturais teriam entretanto ocorrido, sem a intervenção do coronavírus? E quantas ocorreram com ele, mas não só por causa dele? Algumas, decerto. Também é necessário ponderar isso, ou estaremos a desvalorizar os outros factores relevantes, distorcendo a interpretação das estatísticas. A racionalidade manda que se pondere tudo.
Quantas mortes naturais teriam entretanto ocorrido, sem a intervenção do coronavírus? E quantas ocorreram com ele, mas não só por causa dele? Algumas, decerto. Também é necessário ponderar isso, ou estaremos a desvalorizar os outros factores relevantes, distorcendo a interpretação das estatísticas. A racionalidade manda que se pondere tudo.
Portanto, em termos
epidemiológicos e demográficos, não estamos a ser atingidos por um tsunami.
A coisa é bastante grave, sem dúvida, mas não passa de uma tempestade tropical, embora capaz de
grande devastação. Mas seremos certamente atingidos por um tsunami
económico e civilizacional, se uma quarentena tão drástica se prolongar por mais
alguns meses. E a reconstrução, na melhor das hipóteses, demorará anos; na pior, décadas.
Portanto, ponderem-se os
riscos e as consequências dos dois lados.
Decretem-se todas as
medidas sanitárias convenientes, apertem-se as regras e a vigilância, dê-se
toda a formação e equipamento protector que forem necessários, mas ponha-se
depressa o país a trabalhar. Em tempo de guerra, trabalha-se. Suprimem-se
algumas actividades perigosas e supérfluas, mas trabalha-se. Resguardam-se e protegem-se escrupulosamente os mais vulneráveis, mas trabalha-se. Poupam-se os mais débeis, mas trabalha-se.
E como já se percebeu
que não vai chover dinheiro grátis da União Europeia, e que todo o que vier é
para pagar, quanto mais depressa recomeçarmos, melhor. Antes que seja o
descalabro. Já não há pachorra, já ninguém tem pachorra para ouvir
ministros das finanças portugueses a falar outra vez do espectro da bancarrota.