Num despretensioso livro de história geral encontrei há tempos esta frase simples, mas lapidar: “(…) se derrubarmos um sistema injusto sem termos uma ideia clara daquilo que o vai substituir, em última instância as coisas podem mudar muito menos do que esperávamos – ou então mudar de uma maneira completamente diferente.”
Embora estas considerações se
reportassem aos acontecimentos que precederam a Revolução Francesa, elas
assentam que nem uma luva aos partidários lusos da chamada “IVª República”,
muitos dos quais usam a expressão apenas para exprimir um vago anseio de
mudança política radical, sem terem ideias muito definidas acerca dos
princípios orientadores que a devem inspirar. E não admira: trata-se de um
conceito que foi atirado para a ribalta política antes de ter sido devidamente
moldado e aplainado. Por isso mesmo, torna-se urgente definir os seus
contornos.
Não chega associar um ideal de
mudança com simples aspirações de ordem geral, tais como: menos socialismo,
menos criminalidade, menos corrupção, menos impostos, menos imigrantes. Tudo
isso é perfeitamente compatível com o regime
na sua actual forma e depende sobretudo de resultados eleitorais e orientações
governativas. A ideia de uma IVª República tem de significar mais do que isso.
Tem de implicar uma alteração substancial do próprio sistema político e dos
princípios constitucionais que o regem, assim como da estrutura e funcionamento
do Estado (em sentido amplo).
É possível desdobrá-la em, pelo
menos, quatro vertentes:
1. Uma significativa alteração
constitucional
2. Um novo sistema político
3. Uma reforma das leis
eleitorais
4. Uma reforma do Estado (desconcentração
de competências, descentralização de organismos, leis anti-corrupção e
anti-nepotismo, regime de exclusividade dos titulares de cargos políticos,
desburocratização, desregulamentação, digitalização)
Estas são as mudanças necessárias
que deverão balizar os novos contornos do regime e albergar dentro de si as disputas
partidárias, tanto as ideológicas como as programáticas. Não devem ser
confundidas com orientações de governo nem com a supremacia de qualquer partido
redentor. Se o regime continua a ser democrático, como indubitavelmente se
pretende, ele não tem de fazer previamente as escolhas governativas que
competem ao eleitorado. Não tem que fazer opções entre o liberalismo ou o socialismo,
por exemplo, nem determinar orientações num sentido ou no outro.
No essencial, o que é preciso é
remover os condicionamentos arbitrários que actualmente enviesam as normas e os
procedimentos e as decisões a favor de uma concepção abrangente do socialismo,
constitucionalmente consagrada numa época já ultrapassada em que a própria
Constituição foi votada sob tutela militar e em circunstâncias ainda de
turbulência revolucionária. É preciso retirar-lhe as amarras e devolver aos
actos eleitorais e às opções governativas a amplitude de escolha que lhes foi
negada. É preciso ampliar e revitalizar um espectro político que foi
intencionalmente truncado à direita, de modo a favorecer maiorias de esquerda e
a deslocar o centro, desacreditando-o, assim prejudicando o equilíbrio e a
simetria do sistema.
A perversão ideológica que foi
introduzida na Constituição e no funcionamento das instituições tem de ser
eliminada. Mas, por outro lado, é preciso defender a estabilidade essencial de
certas funções do Estado, que não podem ficar levianamente sujeitas aos efeitos
destrutivos de um excesso de alternância ideológica, ou dito de outra maneira,
de uma “política em ziguezague”. É esse o caso dos sistemas de educação e de
saúde, por exemplo, ou do ordenamento do território, das leis da nacionalidade
ou da política de população. Há certas leis estruturantes que não podem ficar à
mercê de maiorias instáveis ou tangenciais e cuja alteração deve requerer
maiorias qualificadas ou um certo espaçamento temporal. De facto, em algumas
matérias, a falta de democracia pode ser tão perniciosa como o excesso de
democracia, o que requer uma nova e cuidadosa ponderação constitucional.
Por conseguinte, falar da “IVª
República” tem muito que se lhe diga. Por enquanto, este conceito exprime a
necessidade indesmentível de uma mudança profunda. Mas é preciso detalhar
melhor em que direcção devemos ir, para que não saia o tiro pela culatra. Há
muito estudo e debate pela frente, por muito que isso doa aos apressados. Como
diz o adágio: “depressa e bem, não há quem”. Mas é altura de pôr os pés ao
caminho.
Nos próximos “posts”, tentarei
dar alguns contributos.