sábado, 11 de março de 2017

O que é o populismo, afinal? (2)

1. Há não muito tempo atrás, num semanário de grande tiragem, um jornalista descrevia o actual exercício da função presidencial por Marcelo Rebelo de Sousa como um populismo moderado e ao centro, chique e à portuguesa, somando apoios à esquerda e à direita, e distinguindo-se dos populismos radicais por não pretender crispar ou dividir, mas “fazer pontes, sarar feridas e somar energias”.

Logo à primeira impressão, deparamos aqui com três pequenas surpresas: primeira, numa era de populismos radicais e em que se constata a tendência para ver no próprio radicalismo um dos ingredientes fundamentais do fenómeno, é‑nos apresentada a noção de um populismo moderado; segunda, este é descrito como irradiando do centro e estabelecendo pontes, ou seja, mais ou menos equidistante dos extremos do espectro político; e terceira, trata-se de um populismo “chique”, isto é, popular mas não popularucho, com o seu quê de bom tom e bom gosto, não desagradando portanto às próprias elites e primando por um certo garbo interventivo, enfim, um populismo com estilo.

Para nosso aparente alívio, ficamos assim a saber que populismo não é necessariamente sinónimo de extremismo, conflitualidade ou grosseria. Valha-nos isso. Não obstante, embora esta descrição de um estilo político peculiar seja bastante ilustrativa, talvez não deva muito ao rigor dos termos. Há nela uma certa confusão entre populismo e a busca deliberada da popularidade. Pode haver pontos de contacto ou de intersecção entre as duas coisas, mas é bastante forçado falar de populismo quando a popularidade é obtida sem ser a qualquer preço, ou seja, com critério, com escrúpulo e com princípios. E sobretudo se não pretende minimamente subverter o establishment, mas apenas inundá-lo com a sua influência e condicioná-lo na sua actuação, sem qualquer desrespeito de normas constitucionais.


2. Mais recentemente, surgiu também na nossa imprensa um artigo traduzido de um prestigiado jornal inglês, no qual se falava dos riscos dos populismos centristas, convocando à parada exemplos tão heterogéneos como Berlusconi e Matteo Renzi, Beppe Grilo ou até o ex-chanceler alemão Gerard Schroeder, antecessor de Angela Merkel. O critério de uma tal mistura é bastante discutível. Mas, desta perspectiva, salta aos olhos que o centro político pode estar bem mais povoado de populismos do que desprevenidamente supúnhamos, se os tomarmos apenas como um exercício incaracterístico, inconsequente ou heterodoxo do poder, ou como a disputa dele por métodos irreverentes e retórica iconoclasta, desafiando a classificação estereotipada de esquerda ou direita e não encaixando nos padrões de actuação a que nos habituaram os partidos tradicionais.

No entanto, se adoptarmos este conceito simplista, chocamos com algumas dificuldades. Quando o critério principal da governação ou das várias oposições assenta na adopção das orientações que melhor sirvam o propósito de preservar ou disputar parcelas de poder, sem qualquer visão estratégica que contemple o interesse geral ou o avanço real do país, esgotando-se portanto no mero propósito de contentar ou aliciar eleitores e clientelas, pouco importa até o estilo utilizado, porque nesse caso o populismo infecta a própria substância da acção política. A maior ou menor sofisticação do aparato ideológico torna-se então um pormenor secundário, embora não de somenos. O poder é arvorado como um fim em sim mesmo, ou como algo gerador de recompensas, não como um meio para atingir objectivos definidos que se traduzam em progresso social, económico ou cultural. Trata-se, portanto, de uma apropriação indevida do poder democrático, que desvirtua a sua função e finalidade. E o que prevalece, nesse caso, não é a avaliação do mérito e realismo do que se faz ou pretende fazer, mas reunir sem grandes embaraços éticos todos os ingredientes de acção e de retórica que possam agradar a uma grande quantidade de eleitores, nem que para tal seja indispensável trapaceá-los. É a isso que assistimos correntemente, é esse o pathos actual de muitas escaramuças partidárias.

Ora deste tipo de populismo mais básico está o panorama político repleto. E nem era necessário que alguém salientasse que ele não é de forma alguma isento de riscos, embora não sendo extremista. As populações dos países mal governados que o digam. Mas torna-se difícil destrinçá‑lo da mera demagogia, senão por um único aspecto: é que à demagogia se concede ainda o benefício da dúvida de poder ser utilizada em prol de alguma visão estratégica, enquanto tal possibilidade se nega ao populismo. E é precisamente aí que reside o erro.

Não encontrar estratégia nos populismos em voga é cegueira voluntária. E assim como é deficiência de análise não distinguir entre populismo e demagogia, é-o também a utilização indiscriminada do termo para designar todos os movimentos políticos que medram à margem do espectro tradicional da representação política.


3. A demagogia não precisa de estratégia para prosperar. Basta-lhe o oportunismo de actuação e a habilidade táctica. No limite, pode até contentar-se com a mera fruição pessoal e clientelar do poder. Nem sequer precisa de uma ideologia consistente, basta-lhe saber manipular as opiniões e os humores de uma parte do eleitorado.

Mas alguns dos populismos que hoje singram não se limitam a acicatar ou aproveitar “estados de alma”, descontentamentos, irreverências ou “ideias fracturantes”. Podem ser uma insurgência contra o “politicamente correcto” ou contra qualquer tradicional “arco da governabilidade”, mas não é só disso que se alimentam nem é só por isso que engrossam. Apoiam-se num sentimento popular cada vez mais difundido, criam e alargam novos espaços de opinião pública, revelam uma sofisticação doutrinária e estratégica crescentes. E estão longe de visar o poder apenas como um fim em si mesmo.

Digamos mais: ao contrário do que muitos pretendem, estão longe de ser apenas um exercício de baixa política ou uma onda de irracionalidade que ameaça alastrar até conquistar maiorias ou tornar-se incontornável em futuras coligações de poder. Ao invés de muitos governos em funções, alguns dos chamados populismos sabem bem para onde querem ir e percebem minimamente o que é preciso reformar; e o seu ideário, pelo menos ao nível das lideranças, já não mostra menos consistência do que as cartilhas ideológicas professadas por directórios partidários de vários quadrantes.


4. Goste-se ou não, os populismos representam uma reacção cada vez mais enérgica a muitos erros e abusos que têm sido cometidos, não só na política interna dos países europeus, como na política europeia em geral (e com outros contornos, também na norte-americana). Erros e abusos esses que não falta quem queira perpetuar, apesar dos resultados que estão à vista, numa clara demonstração de prepotência da ideologia sobre o realismo. Mas a reacção gerada não consiste apenas em vago descontentamento que alguém se encarrega de tentar manipular ou encabeçar. Tem muito mais densidade do que isso.

Não é portanto assisado falar displicentemente de populismos sempre que surgem opiniões, movimentos ou lideranças que não encaixam no catálogo tradicional das opções ideológicas e partidárias. Não obstante a sua diversidade e diferentes graus de sofisticação intelectual, os populismos em ascensão têm mais consistência e fundamento do que se pretende atribuir-lhes. E apesar da atenção que lhes dedica, a imprensa em geral trata-os com desdém e revela em relação a eles uma certa ausência de espírito crítico que se traduz precisamente num claro excesso de criticismo. Não há, em geral, a preocupação de distinguir o trigo do joio e de perceber o que realmente se passa. O populismo parece um mal em si mesmo. Mas não. O mal em si mesmo é que fortalece cada um dos populismos. Contudo, estranhamente, poucos ousam nomeá‑lo com todas as letras. Porquê? Porque apesar de todas as muitas irreverências do nosso tempo, continuam a existir alguns tabus. Mesmo para a imprensa.


5. Entretanto, como pano de fundo, alastra um crescente mal-estar no mundo ocidental, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos da América, que tem causas idênticas, mas que é alvo das explicações maís díspares, muitas delas apenas estereotipadas, especulativas, impressionistas ou erráticas. Há uma resistência obstinada em apontar o dedo às verdadeiras causas dos populismos, dado que elas chocam de frente com o “politicamente correcto” dos nossos dias, em várias versões e quadrantes. E é também por isso que os chamados “populismos” (incluindo os que o são, os que apenas parecem sê-lo e os que arbitrariamente vêm sendo designados como tal) crescem simultaneamente à esquerda, à direita e ao centro.

Pode haver diferentes interpretações sobre a raiz dos problemas actuais. Mas uma coisa é certa: os rótulos superficiais e apressados sempre serviram para mascarar o pouco entendimento das coisas, umas vezes por mera incapacidade de entendê-las, outras vezes por falta de vontade. Os tabus políticos em vigor colaboram em ambos os casos.

Eis a questão fundamental que deveria preocupar-nos: que mal-estar geral é esse, tão intenso e omnipresente, que gera populismos em ascensão vertiginosa em tantos países quase em simultâneo? Não, não é a alegada disfuncionalidade do euro. Nem a globalização em abstracto. Nem a irracionalidade de certas políticas financeiras e monetárias. Nem tão-pouco o facto de o projecto europeu marcar passo e se acentuarem as divergências regionais. Tudo isso já existia antes de proliferarem os populismos. O fenómeno crucial é outro. Mas seja ele qual for, não encontra expressão nem resposta adequada nos partidos tradicionais. É por isso que emergem os outros, obviamente.

Esta impressionante vaga de fundo surge em contracorrente com alguns dos valores, códigos, catecismos, rituais, ilusões e hipocrisias que foram adoptados durante décadas pelos partidos e ideologias do costume. A opinião pública está a mudar na sua composição, a ritmo acelerado, sem que as instituições e os média consigam acompanhar o passo. E o facto de os jornalistas e comentadores estarem maioritariamente a errar o alvo nas suas análises contribui enormemente para que as opiniões e simpatias das pessoas inconformadas fiquem acantonadas em movimentos políticos alternativos, emergindo das várias brechas do sistema politico. Mas não se limitam a ocupar os espaços vazios, comprimem os espaços dos outros, ganhando progressivamente terreno. E já não é possível despachá-los a todos, como simples lixo, para o caixote dos extremismos. Como pode ver-se, a “peste” está a alastrar depressa e bem. Mas será mesmo de uma “peste” que se trata?


6. Que espera a imprensa para levar realmente a sério este novo fenómeno, compreendendo-o nos seus fundamentos e na sua amplitude, em vez de tanto se empenhar em demonizá-lo nas suas múltiplas manifestações, atitude essa que não nos levará a lado nenhum, excepto a um impasse duradouro e a um cisma social? Detectar nos populismos apenas a ameaça de um qualquer retrocesso histórico é superficial e enganoso. Repito: eles trazem em si algo de novo e é preciso perceber o quê. De outro modo, quem alimentar o tabu estará apenas a contribuir para um diálogo de surdos. Ora não é para isso que a imprensa serve.  

Se quisermos começar a levantar a ponta do véu, teremos de começar a falar desapaixonadamente sobre as reais dimensões, as consequências cada vez mais devastadoras e os riscos potenciais de várias migrações descontroladas: de pessoas, de capitais, de empresas, de empregos, de receitas fiscais, de poderes decisórios… e de culturas que literalmente invadem bastiões alheios.

Sob variados aspectos, andamos há muito tempo a brincar com o fogo, e agora vai ser difícil apagá-lo. Mas virar‑lhe sobranceiramente as costas não ajuda nada. Pelo contrário, podemos todos acabar queimados. Acautelemo-nos, portanto. Os populismos vieram para ficar e é ainda imprevisível como vão evoluir. Mas não lhes faltam razões para existir e crescer, e não é boa política ignorá-las nem continuar a tentar encostá-las desdenhosamente às cordas. Essas razões têm de ser seriamente consideradas e rapidamente trazidas para o debate político dito “normal”, sem preconceitos nem tabus. E os problemas a que elas se referem têm de ser rapidamente enfrentados, antes que seja tarde demais para a paz social.

Em suma: os chamados “populismos” estão muito longe de ser meras manifestações de irracionalidade colectiva. A pior irracionalidade poderá consistir em nem sequer tentar perceber as razões que lhes assistem.

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