1. Há não
muito tempo atrás, num semanário de grande tiragem, um jornalista descrevia o
actual exercício da função presidencial por Marcelo Rebelo de Sousa como um
populismo moderado e ao centro, chique e à portuguesa, somando apoios à
esquerda e à direita, e distinguindo-se dos populismos radicais por não
pretender crispar ou dividir, mas “fazer pontes, sarar feridas e somar
energias”.
Logo à primeira impressão,
deparamos aqui com três pequenas surpresas: primeira, numa era de populismos
radicais e em que se constata a tendência para ver no próprio radicalismo um
dos ingredientes fundamentais do fenómeno, é‑nos apresentada a noção de um
populismo moderado; segunda, este é descrito como irradiando do centro e
estabelecendo pontes, ou seja, mais ou menos equidistante dos extremos do
espectro político; e terceira, trata-se de um populismo “chique”, isto é, popular
mas não popularucho, com o seu quê de bom tom e bom gosto, não desagradando
portanto às próprias elites e primando por um certo garbo interventivo, enfim,
um populismo com estilo.
Para nosso aparente alívio,
ficamos assim a saber que populismo não é necessariamente sinónimo de
extremismo, conflitualidade ou grosseria. Valha-nos isso. Não obstante, embora
esta descrição de um estilo político peculiar seja bastante ilustrativa, talvez
não deva muito ao rigor dos termos. Há nela uma certa confusão entre populismo
e a busca deliberada da popularidade. Pode haver pontos de contacto ou de
intersecção entre as duas coisas, mas é bastante forçado falar de populismo
quando a popularidade é obtida sem ser a qualquer preço, ou seja, com critério,
com escrúpulo e com princípios. E sobretudo se não pretende minimamente
subverter o establishment, mas apenas
inundá-lo com a sua influência e condicioná-lo na sua actuação, sem qualquer desrespeito
de normas constitucionais.
2. Mais
recentemente, surgiu também na nossa imprensa um artigo traduzido de um
prestigiado jornal inglês, no qual se falava dos riscos dos populismos
centristas, convocando à parada exemplos tão heterogéneos como Berlusconi e
Matteo Renzi, Beppe Grilo ou até o ex-chanceler alemão Gerard Schroeder,
antecessor de Angela Merkel. O critério de uma tal mistura é bastante
discutível. Mas, desta perspectiva, salta aos olhos que o centro político pode
estar bem mais povoado de populismos do que desprevenidamente supúnhamos, se os
tomarmos apenas como um exercício incaracterístico, inconsequente ou heterodoxo
do poder, ou como a disputa dele por métodos irreverentes e retórica
iconoclasta, desafiando a classificação estereotipada de esquerda ou direita e
não encaixando nos padrões de actuação a que nos habituaram os partidos
tradicionais.
No entanto, se adoptarmos este
conceito simplista, chocamos com algumas dificuldades. Quando o critério
principal da governação ou das várias oposições assenta na adopção das
orientações que melhor sirvam o propósito de preservar ou disputar parcelas de
poder, sem qualquer visão estratégica que contemple o interesse geral ou o
avanço real do país, esgotando-se portanto no mero propósito de contentar ou
aliciar eleitores e clientelas, pouco importa até o estilo utilizado, porque
nesse caso o populismo infecta a própria substância da acção política. A maior
ou menor sofisticação do aparato ideológico torna-se então um pormenor
secundário, embora não de somenos. O poder é arvorado como um fim em sim mesmo,
ou como algo gerador de recompensas, não como um meio para atingir objectivos
definidos que se traduzam em progresso social, económico ou cultural. Trata-se,
portanto, de uma apropriação indevida do poder democrático, que desvirtua a sua
função e finalidade. E o que prevalece, nesse caso, não é a avaliação do mérito
e realismo do que se faz ou pretende fazer, mas reunir sem grandes embaraços
éticos todos os ingredientes de acção e de retórica que possam agradar a uma
grande quantidade de eleitores, nem que para tal seja indispensável
trapaceá-los. É a isso que assistimos correntemente, é esse o pathos actual de muitas escaramuças
partidárias.
Ora deste tipo de populismo mais
básico está o panorama político repleto. E nem era necessário que alguém
salientasse que ele não é de forma alguma isento de riscos, embora não sendo
extremista. As populações dos países mal governados que o digam. Mas torna-se
difícil destrinçá‑lo da mera demagogia, senão por um único aspecto: é que à
demagogia se concede ainda o benefício da dúvida de poder ser utilizada em prol
de alguma visão estratégica, enquanto tal possibilidade se nega ao populismo. E
é precisamente aí que reside o erro.
Não encontrar estratégia nos
populismos em voga é cegueira voluntária. E assim como é deficiência de análise
não distinguir entre populismo e demagogia, é-o também a utilização
indiscriminada do termo para designar todos os movimentos políticos que medram
à margem do espectro tradicional da representação política.
3. A
demagogia não precisa de estratégia para prosperar. Basta-lhe o oportunismo de
actuação e a habilidade táctica. No limite, pode até contentar-se com a mera
fruição pessoal e clientelar do poder. Nem sequer precisa de uma ideologia
consistente, basta-lhe saber manipular as opiniões e os humores de uma parte do
eleitorado.
Mas alguns dos populismos que
hoje singram não se limitam a acicatar ou aproveitar “estados de alma”,
descontentamentos, irreverências ou “ideias fracturantes”. Podem ser uma
insurgência contra o “politicamente correcto” ou contra qualquer tradicional
“arco da governabilidade”, mas não é só disso que se alimentam nem é só por
isso que engrossam. Apoiam-se num sentimento popular cada vez mais difundido,
criam e alargam novos espaços de opinião pública, revelam uma sofisticação
doutrinária e estratégica crescentes. E estão longe de visar o poder apenas
como um fim em si mesmo.
Digamos mais: ao contrário do que
muitos pretendem, estão longe de ser apenas um exercício de baixa política ou
uma onda de irracionalidade que ameaça alastrar até conquistar maiorias ou
tornar-se incontornável em futuras coligações de poder. Ao invés de muitos
governos em funções, alguns dos chamados populismos sabem bem para onde querem
ir e percebem minimamente o que é preciso reformar; e o seu ideário, pelo menos
ao nível das lideranças, já não mostra menos consistência do que as cartilhas
ideológicas professadas por directórios partidários de vários quadrantes.
4. Goste-se
ou não, os populismos representam uma reacção cada vez mais enérgica a muitos
erros e abusos que têm sido cometidos, não só na política interna dos países
europeus, como na política europeia em geral (e com outros contornos, também na
norte-americana). Erros e abusos esses que não falta quem queira perpetuar,
apesar dos resultados que estão à vista, numa clara demonstração de prepotência
da ideologia sobre o realismo. Mas a reacção gerada não consiste apenas em vago
descontentamento que alguém se encarrega de tentar manipular ou encabeçar. Tem muito
mais densidade do que isso.
Não é portanto assisado falar
displicentemente de populismos sempre que surgem opiniões, movimentos ou
lideranças que não encaixam no catálogo tradicional das opções ideológicas e
partidárias. Não obstante a sua diversidade e diferentes graus de sofisticação
intelectual, os populismos em ascensão têm mais consistência e fundamento do
que se pretende atribuir-lhes. E apesar da atenção que lhes dedica, a imprensa
em geral trata-os com desdém e revela em relação a eles uma certa ausência de
espírito crítico que se traduz precisamente num claro excesso de criticismo.
Não há, em geral, a preocupação de distinguir o trigo do joio e de perceber o
que realmente se passa. O populismo parece um mal em si mesmo. Mas não. O mal
em si mesmo é que fortalece cada um dos populismos. Contudo, estranhamente,
poucos ousam nomeá‑lo com todas as letras. Porquê? Porque apesar de todas as
muitas irreverências do nosso tempo, continuam a existir alguns tabus. Mesmo
para a imprensa.
5. Entretanto,
como pano de fundo, alastra um crescente mal-estar no mundo ocidental,
sobretudo na Europa e nos Estados Unidos da América, que tem causas idênticas,
mas que é alvo das explicações maís díspares, muitas delas apenas
estereotipadas, especulativas, impressionistas ou erráticas. Há uma resistência
obstinada em apontar o dedo às verdadeiras causas dos populismos, dado que elas
chocam de frente com o “politicamente correcto” dos nossos dias, em várias
versões e quadrantes. E é também por isso que os chamados “populismos”
(incluindo os que o são, os que apenas parecem sê-lo e os que arbitrariamente
vêm sendo designados como tal) crescem simultaneamente à esquerda, à direita e
ao centro.
Pode haver diferentes
interpretações sobre a raiz dos problemas actuais. Mas uma coisa é certa: os
rótulos superficiais e apressados sempre serviram para mascarar o pouco
entendimento das coisas, umas vezes por mera incapacidade de entendê-las,
outras vezes por falta de vontade. Os tabus políticos em vigor colaboram em
ambos os casos.
Eis a questão fundamental que
deveria preocupar-nos: que mal-estar geral é esse, tão intenso e omnipresente,
que gera populismos em ascensão vertiginosa em tantos países quase em
simultâneo? Não, não é a alegada disfuncionalidade do euro. Nem a globalização
em abstracto. Nem a irracionalidade de certas políticas financeiras e
monetárias. Nem tão-pouco o facto de o projecto europeu marcar passo e se
acentuarem as divergências regionais. Tudo isso já existia antes de
proliferarem os populismos. O fenómeno crucial é outro. Mas seja ele qual for,
não encontra expressão nem resposta adequada nos partidos tradicionais. É por
isso que emergem os outros, obviamente.
Esta impressionante vaga de fundo
surge em contracorrente com alguns dos valores, códigos, catecismos, rituais,
ilusões e hipocrisias que foram adoptados durante décadas pelos partidos e
ideologias do costume. A opinião pública está a mudar na sua composição, a
ritmo acelerado, sem que as instituições e os média consigam acompanhar o
passo. E o facto de os jornalistas e comentadores estarem maioritariamente a errar
o alvo nas suas análises contribui enormemente para que as opiniões e simpatias
das pessoas inconformadas fiquem acantonadas em movimentos políticos
alternativos, emergindo das várias brechas do sistema politico. Mas não se limitam
a ocupar os espaços vazios, comprimem os espaços dos outros, ganhando progressivamente
terreno. E já não é possível despachá-los a todos, como simples lixo, para o
caixote dos extremismos. Como pode ver-se, a “peste” está a alastrar depressa e
bem. Mas será mesmo de uma “peste” que se trata?
6. Que
espera a imprensa para levar realmente a sério este novo fenómeno,
compreendendo-o nos seus fundamentos e na sua amplitude, em vez de tanto se
empenhar em demonizá-lo nas suas múltiplas manifestações, atitude essa que não
nos levará a lado nenhum, excepto a um impasse duradouro e a um cisma social?
Detectar nos populismos apenas a ameaça de um qualquer retrocesso histórico é
superficial e enganoso. Repito: eles trazem em si algo de novo e é preciso
perceber o quê. De outro modo, quem alimentar o tabu estará apenas a contribuir
para um diálogo de surdos. Ora não é para isso que a imprensa serve.
Se quisermos começar a levantar a
ponta do véu, teremos de começar a falar desapaixonadamente sobre as reais dimensões,
as consequências cada vez mais devastadoras e os riscos potenciais de várias migrações
descontroladas: de pessoas, de capitais, de empresas, de empregos, de receitas
fiscais, de poderes decisórios… e de culturas que literalmente invadem bastiões
alheios.
Sob variados aspectos, andamos há
muito tempo a brincar com o fogo, e agora vai ser difícil apagá-lo. Mas virar‑lhe
sobranceiramente as costas não ajuda nada. Pelo contrário, podemos todos acabar
queimados. Acautelemo-nos, portanto. Os populismos vieram para ficar e é ainda imprevisível
como vão evoluir. Mas não lhes faltam razões para existir e crescer, e não é
boa política ignorá-las nem continuar a tentar encostá-las desdenhosamente às
cordas. Essas razões têm de ser seriamente consideradas e rapidamente trazidas
para o debate político dito “normal”, sem preconceitos nem tabus. E os
problemas a que elas se referem têm de ser rapidamente enfrentados, antes que
seja tarde demais para a paz social.
Em suma: os chamados “populismos”
estão muito longe de ser meras manifestações de irracionalidade colectiva. A pior
irracionalidade poderá consistir em nem sequer tentar perceber as razões que
lhes assistem.
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