Em abstracto, podem distinguir-se
três perspectivas básicas sobre a natureza do populismo. E se duas já bastariam
para turvar um pouco as águas, imagine-se o resultado com mais.
Para uns, o populismo é uma
ideologia que considera a sociedade dividida em dois campos antagónicos e
inconciliáveis, o povo e a elite (ou, no plural, as elites), e que preconiza
alguma espécie de reacção popular, seja ela uma insurreição ou uma revolta eleitoral,
contra o “sistema vigente” (o famoso establishment)
e aqueles que o controlam, isto é, contra a “casta dominante”, os ricos, os
privilegiados, os poderes formais e os poderes fácticos instituídos, em suma,
contra todos os que mandam ou se movimentam nos meandros do poder, supostamente
apenas em proveito próprio ou em prol de um intrincado cartel de interesses.
A sua tónica geral seria a
condenação multifacetada das elites, pela sua ganância ou egoísmo, pela sua
corrupção ou incompetência, pela sua incapacidade ou negligência em promover o
bem-estar geral. E daí derivaria a urgência de subverter ou reformar
radicalmente o próprio sistema político e as orientações tradicionalmente
seguidas nas políticas sectoriais pelos partidos predominantes, fazendo
prevalecer a vontade popular e os interesses da “maioria silenciosa” (entendida
aqui sem quaisquer conotações específicas, apenas como menção genérica ao vasto
número de pessoas a quem apenas se pede o voto e que logo em seguida se ignora,
por que não é para elas que se governa e se faz política).
Para outros, o populismo não
corresponde a uma ideologia em concreto, mas a uma forma de fazer política, e é
por isso que surgem populismos em todos os quadrantes (à esquerda, à direita e
ao centro). O que mais a caracteriza é o aproveitamento meramente táctico dos
descontentamentos existentes, com uma dose generosa de exaltação e oportunismo,
extremando posições e radicalizando a linguagem, explorando as emoções e os
sentimentos mais básicos das pessoas comuns, introduzindo uma conflitualidade
artificial nas pequenas fricções sociais, criando cenários irreais ou fazendo
promessas inviáveis, distorcendo os factos e o seu significado, geralmente com
recurso a uma demagogia capciosa e a uma retórica simplista, tudo isto
guarnecido com uma aparente ausência de visão estratégica e com um reduzido
naipe de objectivos definidos, jogando na própria fluidez e relativa indefinição
para poder concentrar em poucas questões controversas um escasso programa
político, onde desaguem algumas das queixas e frustrações mais comuns entre a
população.
Mas há uma espécie de “terceira
via” das interpretações do populismo que é em parte uma combinação das duas
anteriores e, noutra parte, um acrescento a ambas. Trata-se de admitir que o
populismo é uma certa forma de fazer política que tem um núcleo duro de
doutrina (ou, pelo menos, de ideologia) e que também acrescenta algo ao debate
político, trazendo para a ribalta os interesses e as ideias das pessoas comuns
(ou de uma boa parte delas) que são habitualmente menosprezados pelas elites,
em geral mais vocacionadas para implantar a sua mundivisão do que para
respeitar o senso comum e mais empenhadas em prosseguir os seus interesses e
carreirismos do que em pugnar pelo interesse geral.
Nesta perspectiva das coisas,
torna-se portanto quase natural enfatizar o princípio da soberania popular e
dar voz a grupos que não se sentem adequadamente representados pelo poder
político instituído ou pelos tradicionais partidos de oposição, acusados de
abraçar, cada um a seu modo, causas e medidas “politicamente correctas” (ou
seja, estereotipadas e de matriz ideológica) que não espelham o sentir ou as
convicções de grande parte da população, nem as suas necessidades, nem as suas
reais preferências.
Ora é preciso reconhecer que, se
o populismo dá voz a grupos e tendências que não se sentem representados nos
partidos e coligações que habitualmente alternam no poder político, então ele
funciona como um correctivo democrático, ao promover a politização aberta de questões
que tendem a ser ignoradas ou menosprezadas, mas que encontram eco em muitos
votantes. No caso dos populismos de esquerda, costumam ser sobretudo as
desigualdades económicas gritantes e a falta de protecção de direitos
individuais. No caso dos populismos de direita, costumam ser sobretudo as
consequências dos excessos migratórios e a preservação da identidade nacional.
E no caso dos populismos de centro, pode ser alguma combinação de ambas estas
tendências ou a mera afirmação das vozes moderadas ou híbridas que tendem a ser
desdenhadas ou escarnecidas em sociedades crescentemente radicalizadas. Mas
está sempre presente um certo denominador comum, que é a alegada incapacidade
das elites instaladas para actuarem em sintonia com as necessidades, as
preocupações, os anseios e as expectativas das pessoas comuns, assim esvaziando
na prática o sentido do seu voto.
Esta terceira interpretação do
populismo parece ser a que oferece mais substância.
Se o populismo não tivesse uma
ideologia estruturada, por mais rudimentar que fosse, seria difícil
distingui-la da mera demagogia. Mas tem.
Se o populismo não tivesse uma
estratégia, mesmo que só implicitamente assumida, seria difícil distingui-lo do
mero oportunismo político. Mas tem.
Se o populismo não tivesse factos
e razões a alimentar fartamente a sua capacidade de persuadir e expandir-se,
não alastraria como fogo na palha. Mas tem.
Por estes três motivos, o que de
mais sensato as “elites” podem fazer, enquanto é tempo, é trazer para o centro
do debate político, na sua inteira verdade e crueza, tudo o que está a
contribuir para a proliferação do populismo, assumindo honestamente que não há
fumo sem fogo e que são necessárias soluções urgentes para vários problemas que
há muito andam a ser negligenciados. Mas, ao dizê-lo, refiro-me aos problemas
tal como os sentem e vêem as pessoas comuns e não os defensores de todas as
ortodoxias em voga, sejam elas quais forem.
É que nisto de populismos é
preciso ter muito cuidado: sabe-se como começam e como proliferam, mas não se
sabe como acabam. No hipotético saldo final, podem trazer correcções à
democracia ou constituir uma ameaça a ela. Tudo depende de diversos factores
difíceis de controlar. Mas a púdica e hipócrita atitude agora mais em uso, do
género “credo, cruzes, t’arrenego”,
não vai contribuir para a pacificação social nem para a sanidade do
funcionamento do sistema político. As pressões demasiado tempo comprimidas
acabam por rebentar. E os danos são imprevisíveis.
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