sábado, 25 de março de 2017

O que é o populismo, afinal? (3)

Em abstracto, podem distinguir-se três perspectivas básicas sobre a natureza do populismo. E se duas já bastariam para turvar um pouco as águas, imagine-se o resultado com mais.

Para uns, o populismo é uma ideologia que considera a sociedade dividida em dois campos antagónicos e inconciliáveis, o povo e a elite (ou, no plural, as elites), e que preconiza alguma espécie de reacção popular, seja ela uma insurreição ou uma revolta eleitoral, contra o “sistema vigente” (o famoso establishment) e aqueles que o controlam, isto é, contra a “casta dominante”, os ricos, os privilegiados, os poderes formais e os poderes fácticos instituídos, em suma, contra todos os que mandam ou se movimentam nos meandros do poder, supostamente apenas em proveito próprio ou em prol de um intrincado cartel de interesses.

A sua tónica geral seria a condenação multifacetada das elites, pela sua ganância ou egoísmo, pela sua corrupção ou incompetência, pela sua incapacidade ou negligência em promover o bem-estar geral. E daí derivaria a urgência de subverter ou reformar radicalmente o próprio sistema político e as orientações tradicionalmente seguidas nas políticas sectoriais pelos partidos predominantes, fazendo prevalecer a vontade popular e os interesses da “maioria silenciosa” (entendida aqui sem quaisquer conotações específicas, apenas como menção genérica ao vasto número de pessoas a quem apenas se pede o voto e que logo em seguida se ignora, por que não é para elas que se governa e se faz política).

Para outros, o populismo não corresponde a uma ideologia em concreto, mas a uma forma de fazer política, e é por isso que surgem populismos em todos os quadrantes (à esquerda, à direita e ao centro). O que mais a caracteriza é o aproveitamento meramente táctico dos descontentamentos existentes, com uma dose generosa de exaltação e oportunismo, extremando posições e radicalizando a linguagem, explorando as emoções e os sentimentos mais básicos das pessoas comuns, introduzindo uma conflitualidade artificial nas pequenas fricções sociais, criando cenários irreais ou fazendo promessas inviáveis, distorcendo os factos e o seu significado, geralmente com recurso a uma demagogia capciosa e a uma retórica simplista, tudo isto guarnecido com uma aparente ausência de visão estratégica e com um reduzido naipe de objectivos definidos, jogando na própria fluidez e relativa indefinição para poder concentrar em poucas questões controversas um escasso programa político, onde desaguem algumas das queixas e frustrações mais comuns entre a população.

Mas há uma espécie de “terceira via” das interpretações do populismo que é em parte uma combinação das duas anteriores e, noutra parte, um acrescento a ambas. Trata-se de admitir que o populismo é uma certa forma de fazer política que tem um núcleo duro de doutrina (ou, pelo menos, de ideologia) e que também acrescenta algo ao debate político, trazendo para a ribalta os interesses e as ideias das pessoas comuns (ou de uma boa parte delas) que são habitualmente menosprezados pelas elites, em geral mais vocacionadas para implantar a sua mundivisão do que para respeitar o senso comum e mais empenhadas em prosseguir os seus interesses e carreirismos do que em pugnar pelo interesse geral.

Nesta perspectiva das coisas, torna-se portanto quase natural enfatizar o princípio da soberania popular e dar voz a grupos que não se sentem adequadamente representados pelo poder político instituído ou pelos tradicionais partidos de oposição, acusados de abraçar, cada um a seu modo, causas e medidas “politicamente correctas” (ou seja, estereotipadas e de matriz ideológica) que não espelham o sentir ou as convicções de grande parte da população, nem as suas necessidades, nem as suas reais preferências.

Ora é preciso reconhecer que, se o populismo dá voz a grupos e tendências que não se sentem representados nos partidos e coligações que habitualmente alternam no poder político, então ele funciona como um correctivo democrático, ao promover a politização aberta de questões que tendem a ser ignoradas ou menosprezadas, mas que encontram eco em muitos votantes. No caso dos populismos de esquerda, costumam ser sobretudo as desigualdades económicas gritantes e a falta de protecção de direitos individuais. No caso dos populismos de direita, costumam ser sobretudo as consequências dos excessos migratórios e a preservação da identidade nacional. E no caso dos populismos de centro, pode ser alguma combinação de ambas estas tendências ou a mera afirmação das vozes moderadas ou híbridas que tendem a ser desdenhadas ou escarnecidas em sociedades crescentemente radicalizadas. Mas está sempre presente um certo denominador comum, que é a alegada incapacidade das elites instaladas para actuarem em sintonia com as necessidades, as preocupações, os anseios e as expectativas das pessoas comuns, assim esvaziando na prática o sentido do seu voto.

Esta terceira interpretação do populismo parece ser a que oferece mais substância.
Se o populismo não tivesse uma ideologia estruturada, por mais rudimentar que fosse, seria difícil distingui-la da mera demagogia. Mas tem.
Se o populismo não tivesse uma estratégia, mesmo que só implicitamente assumida, seria difícil distingui-lo do mero oportunismo político. Mas tem.
Se o populismo não tivesse factos e razões a alimentar fartamente a sua capacidade de persuadir e expandir-se, não alastraria como fogo na palha. Mas tem.

Por estes três motivos, o que de mais sensato as “elites” podem fazer, enquanto é tempo, é trazer para o centro do debate político, na sua inteira verdade e crueza, tudo o que está a contribuir para a proliferação do populismo, assumindo honestamente que não há fumo sem fogo e que são necessárias soluções urgentes para vários problemas que há muito andam a ser negligenciados. Mas, ao dizê-lo, refiro-me aos problemas tal como os sentem e vêem as pessoas comuns e não os defensores de todas as ortodoxias em voga, sejam elas quais forem.

É que nisto de populismos é preciso ter muito cuidado: sabe-se como começam e como proliferam, mas não se sabe como acabam. No hipotético saldo final, podem trazer correcções à democracia ou constituir uma ameaça a ela. Tudo depende de diversos factores difíceis de controlar. Mas a púdica e hipócrita atitude agora mais em uso, do género “credo, cruzes, t’arrenego”, não vai contribuir para a pacificação social nem para a sanidade do funcionamento do sistema político. As pressões demasiado tempo comprimidas acabam por rebentar. E os danos são imprevisíveis.

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