A vida é madrasta. O feitiço que o PS pregou à coligação vencedora nas eleições de 2015, apeando-a do poder com a invenção da “geringonça”, pode agora virar-se contra o próprio feiticeiro.
Nas recentes eleições açorianas, o PS só obteve uma maioria
relativa e, mesmo contando com os votos do BE e do PAN, não consegue formar com
eles uma maioria absoluta. A direita, pelo contrário, pode consegui-la, se for
capaz de se unir ou, pelo menos, de se entender.
À partida, presume-se que não será excessivamente difícil um
entendimento entre o PSD, o CDS e o PPM, tratando-se de uma aliança táctica que
já tem diversos antecedentes históricos. E por certo também a recém-chegada
Iniciativa Liberal sabe onde encontrar as suas afinidades electivas, tal como
as suas hostilidades naturais. O problema, paradoxalmente, poderá ser apenas o Chega,
não obstante o seu posicionamento inequívoco à direita, por se assumir como um
partido “anti‑sistema”. O eventual exagero desta vocação congénita pode
condená-lo ao isolacionismo. Um dos seus dirigentes já chegou mesmo a afirmar, algo
imprudentemente, que o Chega nunca governaria com partidos do “sistema”…
É uma posição legítima, atendendo ao ideário hoje
predominante neste partido. Mas uma coisa é participar numa coligação de
governo, outra é viabilizar a sua formação.
Se o Chega não viabilizasse uma “geringonça de direita”,
seria um erro crasso… Antes de mais, contra si próprio. Tornar-se a causa
principal da manutenção do PS no poder açoreano seria incompreensível para uma
boa parte do seu eleitorado natural e deixaria de pé atrás outra parte do seu
eleitorado potencial num futuro próximo. A razão é óbvia. Toda essa larga faixa
de eleitores deseja, acima de tudo, o regresso da direita ao poder, e não veria
com bons olhos que um partido claramente de direita, ainda por cima envergando
as vestes de “radical”, impedisse essa mudança.
Pior do que isso: a experiência açoriana seria assimilada no
continente, e teria aí consequências.
É bom recordarmos o que aconteceu ao BE de Francisco Louçã
quando este ajudou a chumbar o último Plano de Estabilidade e Crescimento (PEC
IV) do PS de José Sócrates, precipitando a queda deste e criando as condições
para a ascensão da direita ao poder. Foi fortemente penalizado nas eleições
seguintes, perdendo quase metade dos seus votantes (caíu de 9,82% para 5,17%),
metade dos seus deputados (caíu de 16 para 8) e desencadeando logo a seguir uma
grave crise de liderança… Muitos eleitores de esquerda tinham ficado tão profundamente
decepcionados com a atitude “irrealista” do BE que transferiram o seu “voto
útil” para outros partidos.
Há algumas analogias com o presente. O boicote do Chega a uma
coligação de direita para governar os Açores poderia ser visto pelo seu
eleitorado actual e potencial de várias formas inconvenientes: como uma
manifestação de fundamentalismo ideológico, com resultados práticos perversos;
como uma prova de imaturidade política; como evidência de que não se pode
contar com o Chega para uma reviravolta no “statu quo” a curto e médio prazo; como
um incentivo real a dar o “voto útil” a outro partido de direita; como a
demonstração cabal de que o Chega é o mais ousado desafiante ao actual regime político,
mas também o mais inepto para o jogo partidário dentro dele, em tudo aquilo que
requerer uma aliança de tendências, a começar pelos seus próprios projectos de
revisão constitucional; e talvez pior do que isso, como uma versão meramente simétrica
dos comportamentos da extrema-esquerda que diz abominar. Com razão ou sem ela,
muita gente tiraria alguma destas conclusões…
Fica portanto claro qual o erro a ser evitado. Se o Chega quiser
salvaguardar a pureza ideológica dos seus valores e princípios, se pretender
preservar a integridade dos seus dogmas fundadores, se quiser pôr em evidência
a sua especificidade programática, pois que o faça. Ninguém poderá levar a mal ou
menosprezar o que pretenda ser uma manifestação de coerência, se for esse o
caso. E terá alguma lógica que se abstenha de participar numa solução de
governo com a qual não se identifique. Mas a não viabilização parlamentar de
uma coligação de direita para levar a vias de facto a alternância de poder e
arredar dele o PS seria inevitavelmente vista como uma cumplicidade, ainda que
involuntária e não intencional, com o “statu quo”. E isso, aos olhos de muitos
eleitores, não teria desculpa.
Além de um erro táctico, seria também um erro estratégico. O
poder do PS nos Açores é, em larga medida, clientelar. Alimenta-se de uma vasta
teia de relações e cumplicidades locais para negociatas e nepotismos, à custa
do erário público. Privá-lo da possibilidade de, em tão larga escala, distribuir
prebendas e benesses a esmo seria, só por si, o equivalente a minar a sua influência
nos seus próprios fundamentos. E a erosão do poder socialista seria como um
virar de página para capítulos e episódios mais empolgantes.
Tal como no xadrez, de vez em quando é necessário sacrificar
um peão para comer um cavalo ou um bispo. Neste caso, poderia ser mais do que
isso: poderia desabar uma torre.
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