Há muito por estes tempos quem se
incomode com as novas tendências que vão surgindo na política, quer as que
parecem ser ameaças à democracia liberal, quer as que vêm disputar espaços ideológicos
que alguns dos velhos partidos tomavam como coutadas suas. Esse incómodo, que
amplamente oscila entre a confusa perplexidade e a mais extremada indignação, em
muitos casos anda vizinho da mera hipocrisia; mas noutros casos, que merecem
ser melhor ponderados, é sobretudo um sinal de incompreensão das mudanças que
aí vêm.
Quem ande de olhos abertos neste
mundo facilmente percebe que a litigância política e até a própria governação
andam há muitas décadas a ser inquinadas pela demagogia institucionalizada.
Deturpam-se os factos, viciam-se as interpretações, negam-se as evidências mais
óbvias, difama-se sem pejo e insulta-se sem critério, travam-se diálogos de
surdos, promete‑se ou anuncia‑se o que não se pode cumprir, violam-se
descaradamente os programas eleitorais, a corrupção alastra sob as capas mais convenientes,
o indefensável encontra sempre justificações plausíveis, os órgãos do Estado fingem
cumprir zelosamente o seu papel e, no fundo, anda quase toda a gente a cuidar
sobretudo da sua carreira e dos seus interesses. Até aqui, nada de novo. Já nos
habituámos a encarar tudo isto como indissociável do jogo político.
O que constitui novidade é
estarem a aparecer ou a medrar novas formas de demagogia que fogem um pouco do
formato e da retórica habituais e que disputam votos aos partidos tradicionais.
Para se estabelecer uma linha de demarcação, a estas não se chama demagogia,
chama-se “populismo”. E na medida do possível, exacerbam-se as diferenças, que
afinal não são assim tantas, nem na atitude mental nem nos expedientes. Mas pretende-se
que elas nos conduzam à diferenciação subtil entre dois campos. Embora não se
possa dizê-lo abertamente nestes termos, é como se tivéssemos uma “demagogia
boa” e uma “demagogia má”… No imediato ou a prazo, ambas estão vocacionadas
para dar prejuízo, mas infelizmente a percepção geral não é essa.
O extremismo, por exemplo,
deveria preocupar-nos a todos, mas há quem só se preocupe consoante a
proveniência dele. Como sabemos por muitos exemplos históricos, o extremismo é
sempre péssimo. Mas não falta por aí quem rasgue as vestes por haver um
deputado dito de extrema-direita e não se incomode nada por haver trinta e um
de assumida extrema-esquerda (e mais alguns que disfarçam muito mal…). Há quem
fique com os pelos eriçados à mínima afirmação vinda do lado oposto da
barricada e dê todo o seu assentimento a qualquer alarvidade vinda do seu
próprio lado. E como isto acontece mesmo dentro dos partidos ditos moderados,
deveríamos andar todos preocupadíssimos com o extremismo que subrepticiamente se
instalou neles também. Toda esta crispação não é um bom caldo de cultura nem pode
dar bons resultados.
De resto, o extremismo em si é um
fenómeno normal, embora contraproducente. Qualquer sociedade digna e estável
tem de assentar em consensos amplos, tão amplos quanto possível, não obstante
as clivagens partidárias. Mas haverá sempre alguém para ocupar os lugares menos
centrais de qualquer hemiciclo parlamentar. Isso é inevitável e faz parte da
democracia. O importante é definir quais são os limites constitucionais do próprio
hemiciclo e é óbvio que ele só deveria albergar quem defende o pluralismo
ideológico e partidário. É isso que realmente acontece? Sabemos que não.
Há quase cinquenta anos que temos
no parlamento acérrimos defensores de regimes de partido único, mas que têm fingido
aceitar as regras do jogo democrático, por razões tácticas. Paralelamente, os
partidos verdadeiramente pluralistas fingiram todos que acreditavam que os
partidos de cariz revolucionário as aceitavam, porque estes poderiam ser bem
mais perigosos na clandestinidade e essa era uma forma de os assimilar ou “normalizar”.
A realidade, por vezes, tem muita força e obriga-nos a contornar os princípios,
mas tomá-la em conta é mais inteligente do que ser dogmático. A cegueira
ideológica acaba por dar sempre asneira, mas abunda quem não perceba isso, e as
perversões surgem.
Actualmente, à mínima suspeita de
vagas simpatias por um Estado mais firme, recebe-se o epíteto de “fascista”,
mesmo que não se ponha minimamente em causa o carácter pluralista e
multipartidário do regime. Basta apelar a mais autoridade do Estado ou a uma
defesa mais conservadora da lei e da ordem e logo fica o caldo entornado, não
parecendo haver enxovalho que baste contra quem o defende. Mas aceitar cordatamente
a existência de partidos que ainda anseiam por um regime totalitário de tipo
soviético, que advogam veladamente a revolução ou a “ditadura do proletariado”,
isso tornou-se normal. Faz sentido, isto? Racionalmente, não.
Se condenamos o autoritarismo dum
lado, não podemos legitimar o totalitarismo do outro. E também não podemos
confundir autoridade com autoritarismo, que consiste no excesso abusivo daquela.
Além disso, se a nossa sociedade padece hoje de alguma coisa, não é de falta de
liberdade, é de excesso de permissividade. Há demasiada gente a não cumprir as
leis e a desafiar a autoridade do Estado e dos seus agentes, há demasiada
delinquência à solta, há demasiada tolerância com o que não devia ser tolerado,
desde o vandalismo à imigração ilegal, desde o parasitismo à violência física,
desde a indisciplina nas escolas às atrocidades no trânsito.
A sociedade está em mutação
acelerada, as mentalidades também. Mas os partidos tradicionais cristalizaram
na sua retórica, no seu sectarismo ideológico, nos seus aparelhos, na sua
obsessão por lugares e subvenções oficiais. Se não acompanharem os sinais dos
tempos, se não introduzirem na sua linguagem e nos seus programas as novas
preocupações sociais que estão a emergir, não têm de se queixar dos “populismos”
que vão surgindo, mas apenas de si próprios.
Os eixos da política estão a
mudar também. Se os partidos do velho espectro parlamentar continuarem a desvalorizar
as tensões raciais e étnicas, se desprezarem a resistência crescente a mais
imigração descontrolada, se persistirem em disfarçar os falhanços do
multiculturalismo e os abusos do parasitismo organizado, se forem complacentes
com a delinquência em expansão, se continuarem a legislar e a agir sobretudo em
função das suas clientelas, se insistirem no esbulho fiscal, se mantiverem os
olhos fechados a desigualdades absurdas e a injustiças geracionais, se não
perceberem as novas tendências mentais em gestação, em breve serão apenas uma
pálida imagem de um passado em extinção e terão de ceder o lugar a novos
intervenientes.
Continuem pois a encher a boca
com diatribes ao “populismo”, ignorem os problemas reais ou continuem a
desvalorizá-los, continuem a soprar ou a cuspir contra o vento… e, eleição após
eleição, vão ver o que lhes acontece.
Sem comentários:
Enviar um comentário