sábado, 14 de novembro de 2020

Demagogia, populismo e parvoíce...

Há muito por estes tempos quem se incomode com as novas tendências que vão surgindo na política, quer as que parecem ser ameaças à democracia liberal, quer as que vêm disputar espaços ideológicos que alguns dos velhos partidos tomavam como coutadas suas. Esse incómodo, que amplamente oscila entre a confusa perplexidade e a mais extremada indignação, em muitos casos anda vizinho da mera hipocrisia; mas noutros casos, que merecem ser melhor ponderados, é sobretudo um sinal de incompreensão das mudanças que aí vêm.

Quem ande de olhos abertos neste mundo facilmente percebe que a litigância política e até a própria governação andam há muitas décadas a ser inquinadas pela demagogia institucionalizada. Deturpam-se os factos, viciam-se as interpretações, negam-se as evidências mais óbvias, difama-se sem pejo e insulta-se sem critério, travam-se diálogos de surdos, promete‑se ou anuncia‑se o que não se pode cumprir, violam-se descaradamente os programas eleitorais, a corrupção alastra sob as capas mais convenientes, o indefensável encontra sempre justificações plausíveis, os órgãos do Estado fingem cumprir zelosamente o seu papel e, no fundo, anda quase toda a gente a cuidar sobretudo da sua carreira e dos seus interesses. Até aqui, nada de novo. Já nos habituámos a encarar tudo isto como indissociável do jogo político.

O que constitui novidade é estarem a aparecer ou a medrar novas formas de demagogia que fogem um pouco do formato e da retórica habituais e que disputam votos aos partidos tradicionais. Para se estabelecer uma linha de demarcação, a estas não se chama demagogia, chama-se “populismo”. E na medida do possível, exacerbam-se as diferenças, que afinal não são assim tantas, nem na atitude mental nem nos expedientes. Mas pretende-se que elas nos conduzam à diferenciação subtil entre dois campos. Embora não se possa dizê-lo abertamente nestes termos, é como se tivéssemos uma “demagogia boa” e uma “demagogia má”… No imediato ou a prazo, ambas estão vocacionadas para dar prejuízo, mas infelizmente a percepção geral não é essa.

O extremismo, por exemplo, deveria preocupar-nos a todos, mas há quem só se preocupe consoante a proveniência dele. Como sabemos por muitos exemplos históricos, o extremismo é sempre péssimo. Mas não falta por aí quem rasgue as vestes por haver um deputado dito de extrema-direita e não se incomode nada por haver trinta e um de assumida extrema-esquerda (e mais alguns que disfarçam muito mal…). Há quem fique com os pelos eriçados à mínima afirmação vinda do lado oposto da barricada e dê todo o seu assentimento a qualquer alarvidade vinda do seu próprio lado. E como isto acontece mesmo dentro dos partidos ditos moderados, deveríamos andar todos preocupadíssimos com o extremismo que subrepticiamente se instalou neles também. Toda esta crispação não é um bom caldo de cultura nem pode dar bons resultados.

De resto, o extremismo em si é um fenómeno normal, embora contraproducente. Qualquer sociedade digna e estável tem de assentar em consensos amplos, tão amplos quanto possível, não obstante as clivagens partidárias. Mas haverá sempre alguém para ocupar os lugares menos centrais de qualquer hemiciclo parlamentar. Isso é inevitável e faz parte da democracia. O importante é definir quais são os limites constitucionais do próprio hemiciclo e é óbvio que ele só deveria albergar quem defende o pluralismo ideológico e partidário. É isso que realmente acontece? Sabemos que não.

Há quase cinquenta anos que temos no parlamento acérrimos defensores de regimes de partido único, mas que têm fingido aceitar as regras do jogo democrático, por razões tácticas. Paralelamente, os partidos verdadeiramente pluralistas fingiram todos que acreditavam que os partidos de cariz revolucionário as aceitavam, porque estes poderiam ser bem mais perigosos na clandestinidade e essa era uma forma de os assimilar ou “normalizar”. A realidade, por vezes, tem muita força e obriga-nos a contornar os princípios, mas tomá-la em conta é mais inteligente do que ser dogmático. A cegueira ideológica acaba por dar sempre asneira, mas abunda quem não perceba isso, e as perversões surgem.

Actualmente, à mínima suspeita de vagas simpatias por um Estado mais firme, recebe-se o epíteto de “fascista”, mesmo que não se ponha minimamente em causa o carácter pluralista e multipartidário do regime. Basta apelar a mais autoridade do Estado ou a uma defesa mais conservadora da lei e da ordem e logo fica o caldo entornado, não parecendo haver enxovalho que baste contra quem o defende. Mas aceitar cordatamente a existência de partidos que ainda anseiam por um regime totalitário de tipo soviético, que advogam veladamente a revolução ou a “ditadura do proletariado”, isso tornou-se normal. Faz sentido, isto? Racionalmente, não.

Se condenamos o autoritarismo dum lado, não podemos legitimar o totalitarismo do outro. E também não podemos confundir autoridade com autoritarismo, que consiste no excesso abusivo daquela. Além disso, se a nossa sociedade padece hoje de alguma coisa, não é de falta de liberdade, é de excesso de permissividade. Há demasiada gente a não cumprir as leis e a desafiar a autoridade do Estado e dos seus agentes, há demasiada delinquência à solta, há demasiada tolerância com o que não devia ser tolerado, desde o vandalismo à imigração ilegal, desde o parasitismo à violência física, desde a indisciplina nas escolas às atrocidades no trânsito.

A sociedade está em mutação acelerada, as mentalidades também. Mas os partidos tradicionais cristalizaram na sua retórica, no seu sectarismo ideológico, nos seus aparelhos, na sua obsessão por lugares e subvenções oficiais. Se não acompanharem os sinais dos tempos, se não introduzirem na sua linguagem e nos seus programas as novas preocupações sociais que estão a emergir, não têm de se queixar dos “populismos” que vão surgindo, mas apenas de si próprios.

Os eixos da política estão a mudar também. Se os partidos do velho espectro parlamentar continuarem a desvalorizar as tensões raciais e étnicas, se desprezarem a resistência crescente a mais imigração descontrolada, se persistirem em disfarçar os falhanços do multiculturalismo e os abusos do parasitismo organizado, se forem complacentes com a delinquência em expansão, se continuarem a legislar e a agir sobretudo em função das suas clientelas, se insistirem no esbulho fiscal, se mantiverem os olhos fechados a desigualdades absurdas e a injustiças geracionais, se não perceberem as novas tendências mentais em gestação, em breve serão apenas uma pálida imagem de um passado em extinção e terão de ceder o lugar a novos intervenientes.

Continuem pois a encher a boca com diatribes ao “populismo”, ignorem os problemas reais ou continuem a desvalorizá-los, continuem a soprar ou a cuspir contra o vento… e, eleição após eleição, vão ver o que lhes acontece.

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