sábado, 21 de novembro de 2020

Prisão perpétua: sim ou não?

Comecemos pela geografia do assunto.

A prisão perpétua existe em todos os países da América do Norte (Canadá, Estados Unidos e México), mas em nenhum dos pequenos países da América Central. Nas Caraíbas, existe em Bonaire, Cuba, Guadalupe, Jamaica e Martinica. Na América do Sul, existe na Argentina, Chile e Peru, Guiana e Guiana Francesa.

Contudo, muitos dos países americanos que aboliram a prisão perpétua têm penas máximas de longuíssima duração: 75 anos em El Salvador, 60 anos na Colômbia, 50 anos na Costa Rica e Panamá, 40 anos nas Honduras e no Brasil. Apenas alguns poucos adoptam penas máximas de duração inferior: 30 anos na Bolívia, Nicarágua, Uruguai e Venezuela e 25 anos no Equador e Paraguai.

A prisão perpétua existe também em toda a Ásia, apenas com duas excepções: Mongólia e Timor-Leste (neste último caso, devido à influência cultural portuguesa).

Na Oceania, também a Austrália e a Nova Zelândia a têm.

E existe em toda a África, excepto nos países que foram colónias portuguesas.

Na Europa, existe em mais de trinta países, incluindo a esmagadora maioria dos que formam a União Europeia. Contam-se entre eles alguns dos mais desenvolvidos: Reino Unido, Alemanha, França, Itália, Dinamarca, Suécia, Holanda, Áustria, Luxemburgo, Bélgica, Irlanda e Suíça, por exemplo.

(Uma particularidade interessante: em alguns países europeus e asiáticos de influência russa, a prisão perpétua apenas pode ser imposta a condenados do sexo masculino. Para além da Federação Russa, é o caso da Bielorrússia, Azerbaijão, Cazaquistão e Uzbequistão. E existem também limitações de idade: pelo menos no caso da Federação Russa, os condenados não podem ter menos de 18 nem mais de 65 anos.)

Alguns dos países europeus que aboliram todas as formas de prisão indefinida (incluindo a Espanha) fixaram a pena máxima em 40 anos para cada condenação, o que na prática mantinha a possibilidade de prisão perpétua, por acumulação de condenações. Mais recentemente, em 2015, o Congresso dos Deputados espanhol aprovou um novo Código Penal que, pela primeira vez na história do país vizinho, incluiu a figura da prisão permanente passível de revisão. Embora os opositores falem acintosamente de “uma prisão perpétua disfarçada”, a verdade é que se trata de uma instituição comum em direito comparado. Todos os países da União Europeia, excepto Portugal e Croácia, punem alguns dos crimes mais graves com uma forma de prisão semelhante a esta, embora o tempo previsto até à primeira revisão possa variar (em Espanha, situava-se entre 25 e 35 anos após a sentença; em França, o condenado podia solicitar liberdade condicional a partir de 30 anos cumpridos de pena; na Itália e na Holanda, só após 26 anos e 25 anos, respectivamente).

Um caso de excepção é o da Noruega, que prevê uma modesta pena máxima de 21 anos de prisão (pena essa a que pôde ser condenado um jovem terrorista norueguês que matou 77 pessoas por motivações políticas, o que parece desproporcionado por defeito, pois equivale a apenas 100 dias de prisão por cada um dos homicídios). Contudo, o sistema norueguês permite que ao fim dos 21 anos o recluso veja a sua pena estendida de cinco em cinco anos, se a avaliação dos serviços prisionais sobre a sua reabilitação for negativa. Isto significa que, na prática, pode nunca vir a sair da prisão.

Nos EUA e noutros países de tradição anglo-saxónica, o sistema penal acolhe a prisão perpétua sem possibilidade de liberdade condicional. Na Europa, os únicos países em que a lei previa expressamente penas de prisão perpétua sem possibilidade de liberdade condicional eram a Inglaterra e o País de Gales (no Reino Unido), Holanda, Eslováquia, Bulgária, Itália, Hungria e República da Irlanda.

Chamado a pronunciar-se sobre o assunto em 2013, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos decidiu que a pena de prisão perpétua é válida e não viola nenhum direito fundamental do condenado, mas a punição deve ser revista de tempos a tempos e a necessidade de manter o preso encarcerado deve ser reavaliada depois de ele ter cumprido uma parte da pena. O tempo entre a condenação e a revisão da pena não pode ultrapassar os 25 anos. Isso não significa, no entanto, que o condenado não possa passar o resto da vida na cadeia. O Tribunal explicou, no seu entendimento da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que esta exige apenas a revisão da pena, mas a decisão de libertar ou não o condenado fica a cargo de cada país e depende, entre outras coisas, de se considerar que ele já não representa um risco apreciável para a sociedade.

Uma análise comparativa também revela que o catálogo de crimes em que se aplica a prisão permanente revisível (ou reexaminável) varia bastante: 4 na Holanda, 8 na Espanha, 14 na Áustria, 20 na Alemanha, 22 na Suécia, 26 em França, 30 no Luxemburgo, etc.

A prisão permanente revisível é projetada para casos muito específicos que são considerados extremamente graves e geram um profundo choque e alarme social (os chamados “crimes hediondos”): terrorismo letal, assassínios múltiplos ou cometidos por membros de uma organização criminosa, violações seguidas de assassínio, crimes de genocídio ou contra a humanidade, certos crimes de guerra ou cometidos contra figuras políticas de topo (regicídio, por exemplo) e aqueles em que as vítimas tenham menos de 16 anos ou sejam pessoas especialmente vulneráveis... Postula-se que em todos esses casos uma resposta extraordinária se justifica através da imposição de pena de prisão por tempo indeterminado (prisão permanente), embora sujeita a regime de revisão. Isso significa que após o cumprimento integral de uma parte relevante da sentença, cuja duração depende do número de crimes cometidos e sua natureza, e desde que a reintegração social do condenado tenha sido assegurada, ele pode obter a liberdade condicional, o que não significa necessariamente que venha a obtê-la.

Historicamente, Portugal foi o primeiro a abolir todas as formas de prisão perpétua, em 1884, com a reforma prisional de Sampaio e Melo. No Brasil, o decreto de 1890 que instituiu o Código Penal da  República também aboliu a previsão da prisão perpétua, seis anos depois de Portugal o ter feito. A mesma orientação acabou por ser seguida por todos os actuais países lusófonos. No caso das ex-colónias espanholas, as opções dividiram-se. Mas a possibilidade da prisão perpétua foi amplamente adoptada por quase todos os territórios onde foi predominante a influência cultural inglesa, francesa, alemã, holandesa e belga.

Posto isto, será admissível dizer-se que a readopção da pena perpétua em Portugal seria um retrocesso civilizacional? Claramente, não. As mentalidades e as doutrinas jurídicas evoluem com o tempo, as modas e as necessidades. Mas se há coisa que não podemos dizer é que sejamos culturalmente mais avançados do que países como os Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Alemanha, França, Holanda, Áustria, Suécia, Dinamarca, Luxemburgo, Coreia do Sul, Japão, Austrália ou Nova Zelândia. Ocupamos um modesto trigésimo lugar, mais coisa menos coisa, na escala de desenvolvimento dos países do mundo, o que não nos autoriza a pormo-nos em bicos de pés e alardearmos um avanço civilizacional que, obviamente, não temos. Não podemos pretender ensinar o padre-nosso ao vigário, quanto mais ao padre... Ainda estamos a aprender, a custo, as regras básicas do civismo, da democracia e do Estado de Direito.

A partir daqui, decida. Os indivíduos têm direito inato à vida e à liberdade, mas as comunidades têm direito à paz e à segurança. Quem atenta contra estas, deve pagar o preço devido, tanto mais elevado quanto mais grave a infracção (o chamado “princípio da proporcionalidade”). Mas a partir de certo patamar, esta deixa de ser possível. Como se gradua a pena entre dois homicídios múltiplos, entre um terrorista que mata 77 e outro que mata só metade ou o dobro? E se ela for de prisão perpétua, deverá ser cumprida até ao fim ou poderá ser revista, encurtada e convertida em liberdade condicional? Ou em caso algum deve condenar-se alguém para toda a vida?

Costuma dizer-se que toda a gente merece uma segunda oportunidade. Mas será mesmo razoável e sensato dar uma segunda oportunidade a um terrorista letal ou a um serial killer? Quem nos garante que ele não vai usá-la para fazer algo idêntico ou pior ainda? Eis a questão. A resposta pode depender daquilo que valorizamos mais: se a liberdade do assassino, se a segurança da comunidade. Mas a partir de um certo nível de perigosidade, é loucura deixar sociopatas à solta, como é sobejamente evidente. Que fazer? Esperamos que uma nova tragédia ocorra para julgar e encarcerar de novo o seu autor? Ou aceitamos que o direito à vida e à integridade física de múltiplas pessoas se sobrepõe ao direito à liberdade de um indivíduo comprovadamente perigoso e preocupamo-nos sobretudo com as potenciais vítimas?

A escolha é sua. Mas ao fazê-la, mesmo sem se dar conta, estará a usar uma certa hierarquia pessoal de valores. A liberdade individual e a segurança colectiva são valores. Quando é que um deve ceder ao outro? É um velho dilema. Pode enfrentá-lo dogmaticamente, com princípios rígidos e inflexíveis (imitando a inépcia de muitos políticos e jornalistas), ou adoptar uma atitude intelectualmente mais humilde e, com alguma ponderação casuística, embrenhar-se num misto de regras, variantes e excepções (imitando o trabalho criterioso dos juízes).

Mas se achar o assunto complicado, deixo-lhe um conselho: decida-se pelo bom senso. Em vez do traje de legislador ou de juiz, envergue as roupagens da vítima. Pode ser que isso desempate. Quase sempre, faz-se luz.

1 comentário:

  1. Belíssimo texto.
    Obrigada pela explicação dada, e pelas questões colocadas.
    Para quem nada sabe de Direito, como é o meu caso, é quase como que uma luz ao fundo do túnel, para compreendermos o que se passa nalguns Países, incluindo o nosso.

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