Comecemos pela geografia do assunto.
A prisão perpétua existe em todos os países da América do
Norte (Canadá, Estados Unidos e México), mas em nenhum dos pequenos países da
América Central. Nas Caraíbas, existe em Bonaire, Cuba, Guadalupe, Jamaica e Martinica.
Na América do Sul, existe na Argentina, Chile e Peru, Guiana e Guiana Francesa.
Contudo, muitos dos países americanos que aboliram a prisão
perpétua têm penas máximas de longuíssima duração: 75 anos em El
Salvador, 60 anos na Colômbia, 50 anos na Costa Rica e Panamá, 40
anos nas Honduras e no Brasil. Apenas alguns poucos adoptam penas máximas
de duração inferior: 30 anos na Bolívia, Nicarágua, Uruguai e Venezuela
e 25 anos no Equador e Paraguai.
A prisão perpétua existe também em toda a Ásia, apenas com
duas excepções: Mongólia e Timor-Leste (neste último caso, devido à influência
cultural portuguesa).
Na Oceania, também a Austrália e a Nova Zelândia a têm.
E existe em toda a África, excepto nos países que foram
colónias portuguesas.
Na Europa, existe em mais de trinta países, incluindo a esmagadora maioria dos que formam
a União Europeia. Contam-se
entre eles alguns dos mais desenvolvidos: Reino Unido, Alemanha, França, Itália,
Dinamarca, Suécia, Holanda, Áustria, Luxemburgo, Bélgica, Irlanda e Suíça, por
exemplo.
(Uma particularidade interessante: em alguns países europeus
e asiáticos de influência russa, a prisão perpétua apenas pode ser imposta a
condenados do sexo masculino. Para além da Federação Russa, é o caso da Bielorrússia,
Azerbaijão, Cazaquistão e Uzbequistão. E existem também limitações de idade:
pelo menos no caso da Federação Russa, os condenados não podem ter menos de 18
nem mais de 65 anos.)
Alguns dos
países europeus que aboliram todas as formas de prisão indefinida (incluindo a
Espanha) fixaram a pena máxima em 40 anos para cada condenação, o que na
prática mantinha a possibilidade de prisão perpétua, por acumulação de
condenações. Mais recentemente, em 2015, o Congresso dos Deputados espanhol aprovou um novo Código Penal que, pela primeira vez
na história do país vizinho, incluiu a figura da prisão permanente
passível de revisão. Embora os opositores falem acintosamente de “uma
prisão perpétua disfarçada”, a verdade é que se trata de uma instituição comum
em direito comparado. Todos os países da União Europeia, excepto Portugal e
Croácia, punem alguns dos crimes mais graves com uma forma de prisão semelhante
a esta, embora o tempo previsto até à primeira revisão possa variar (em Espanha,
situava-se entre 25 e 35 anos após a sentença; em França, o condenado podia solicitar liberdade condicional a partir de 30
anos cumpridos de pena; na Itália
e na Holanda, só após 26 anos e 25 anos, respectivamente).
Um caso de excepção é o da Noruega, que prevê uma modesta pena máxima de 21 anos
de prisão (pena essa a que pôde ser condenado um jovem terrorista norueguês que
matou 77 pessoas por motivações políticas, o que parece desproporcionado por
defeito, pois equivale a apenas 100 dias de prisão por cada um dos homicídios).
Contudo, o sistema norueguês permite que ao fim dos 21 anos o recluso veja a
sua pena estendida de cinco em cinco anos, se a avaliação dos serviços prisionais
sobre a sua reabilitação for negativa. Isto significa que, na prática, pode
nunca vir a sair da prisão.
Nos EUA e noutros países de tradição anglo-saxónica, o
sistema penal acolhe a prisão perpétua sem possibilidade de liberdade
condicional. Na Europa, os únicos países em que a lei previa expressamente
penas de prisão perpétua sem possibilidade de liberdade condicional eram a
Inglaterra e o País de Gales (no Reino Unido), Holanda, Eslováquia, Bulgária,
Itália, Hungria e República da Irlanda.
Chamado a
pronunciar-se sobre o assunto em 2013, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos decidiu que a
pena de prisão perpétua é válida e não viola nenhum direito fundamental do
condenado, mas a punição deve ser revista de tempos a tempos e a
necessidade de manter o preso encarcerado deve ser reavaliada depois de ele ter
cumprido uma parte da pena. O
tempo entre a condenação e a revisão da pena não pode ultrapassar os 25 anos. Isso
não significa, no entanto, que o condenado não possa passar o resto da vida na
cadeia. O Tribunal explicou, no seu entendimento da Convenção Europeia
dos Direitos Humanos, que esta exige apenas a revisão da pena, mas a decisão de libertar ou não o
condenado fica a cargo de cada país e depende, entre outras coisas, de se
considerar que ele já não representa um risco apreciável para a sociedade.
Uma análise comparativa também revela que o catálogo de
crimes em que se aplica a prisão permanente revisível (ou reexaminável) varia
bastante: 4 na Holanda, 8 na Espanha, 14 na Áustria, 20 na Alemanha, 22 na
Suécia, 26 em França, 30 no Luxemburgo, etc.
A prisão permanente revisível é projetada
para casos muito específicos que são considerados
extremamente graves e geram um profundo choque e alarme social (os chamados “crimes
hediondos”): terrorismo letal, assassínios múltiplos ou cometidos por
membros de uma organização criminosa, violações seguidas de assassínio, crimes
de genocídio ou contra a humanidade, certos crimes de guerra ou cometidos
contra figuras políticas de topo (regicídio, por exemplo) e aqueles em que as vítimas
tenham menos de 16 anos ou sejam pessoas especialmente vulneráveis... Postula-se
que em todos esses casos uma resposta extraordinária se
justifica através da imposição de pena de prisão por tempo indeterminado (prisão permanente), embora
sujeita a regime de revisão. Isso
significa que após o cumprimento integral
de uma parte relevante da sentença, cuja duração depende do número de crimes
cometidos e sua natureza, e desde que a reintegração social do condenado tenha
sido assegurada, ele pode obter a liberdade condicional, o que não significa necessariamente
que venha a obtê-la.
Historicamente,
Portugal foi o primeiro a abolir todas as formas de prisão perpétua, em 1884, com a reforma prisional de
Sampaio e Melo. No Brasil, o decreto de 1890 que
instituiu o Código Penal da República também aboliu a previsão da prisão perpétua, seis
anos depois de Portugal o ter feito.
A mesma orientação acabou por
ser seguida por todos os actuais países lusófonos. No caso das
ex-colónias espanholas, as opções dividiram-se. Mas a possibilidade da prisão perpétua foi amplamente
adoptada por quase todos os territórios onde foi predominante a influência
cultural inglesa, francesa, alemã, holandesa e belga.
Posto
isto, será admissível dizer-se que a readopção da pena perpétua em Portugal seria
um retrocesso civilizacional? Claramente, não. As
mentalidades e as doutrinas jurídicas evoluem com o tempo, as modas e as
necessidades. Mas se há coisa que não podemos dizer é que sejamos
culturalmente mais avançados do que países como os Estados Unidos, Canadá,
Reino Unido, Alemanha, França, Holanda, Áustria, Suécia, Dinamarca, Luxemburgo,
Coreia do Sul, Japão, Austrália ou Nova Zelândia. Ocupamos um modesto
trigésimo lugar, mais coisa menos coisa, na escala de desenvolvimento dos
países do mundo, o que não nos autoriza a pormo-nos em bicos de pés e alardearmos
um avanço civilizacional que, obviamente, não temos. Não podemos pretender
ensinar o padre-nosso ao vigário, quanto mais ao padre... Ainda estamos a
aprender, a custo, as regras básicas do civismo, da democracia e do Estado de
Direito.
A partir
daqui, decida. Os
indivíduos têm direito inato à vida e à liberdade, mas as comunidades têm
direito à paz e à segurança. Quem atenta contra estas, deve pagar o preço
devido, tanto mais elevado quanto mais grave a infracção (o chamado “princípio
da proporcionalidade”). Mas a partir de certo patamar, esta deixa de ser
possível. Como se gradua a pena entre dois homicídios múltiplos, entre um
terrorista que mata 77 e outro que mata só metade ou o dobro? E se ela for de
prisão perpétua, deverá ser cumprida até ao fim ou poderá ser revista,
encurtada e convertida em liberdade condicional? Ou em caso algum deve
condenar-se alguém para toda a vida?
Costuma dizer-se que toda a gente merece uma
segunda oportunidade. Mas será mesmo razoável e sensato dar uma segunda
oportunidade a um terrorista letal ou a um serial killer? Quem nos
garante que ele não vai usá-la para fazer algo idêntico ou pior ainda? Eis a questão. A
resposta pode depender daquilo que valorizamos mais: se a liberdade do
assassino, se a segurança da comunidade. Mas a partir de um certo nível de
perigosidade, é loucura deixar sociopatas à solta, como é sobejamente evidente.
Que fazer? Esperamos que uma nova tragédia ocorra para julgar e encarcerar de
novo o seu autor? Ou aceitamos que o direito à vida e à integridade física de
múltiplas pessoas se sobrepõe ao direito à liberdade de um indivíduo
comprovadamente perigoso e preocupamo-nos sobretudo com as potenciais vítimas?
A escolha
é sua. Mas ao fazê-la, mesmo sem se dar conta, estará a usar uma certa
hierarquia pessoal de valores. A liberdade individual e a segurança colectiva são
valores. Quando é que um deve ceder ao outro? É um velho dilema. Pode
enfrentá-lo dogmaticamente, com princípios rígidos e inflexíveis (imitando a
inépcia de muitos políticos e jornalistas), ou adoptar uma atitude intelectualmente
mais humilde e, com alguma ponderação casuística, embrenhar-se num misto de
regras, variantes e excepções (imitando o trabalho criterioso dos juízes).
Mas se
achar o assunto complicado, deixo-lhe um conselho: decida-se pelo bom senso. Em
vez do traje de legislador ou de juiz, envergue as roupagens da vítima. Pode
ser que isso desempate. Quase sempre, faz-se luz.