Estamos bem pior do que nos
dizem. Não estamos literalmente entre a espada e a parede, mas é algo parecido:
estamos condenados a escolher entre a saúde e a economia, ou pondo as coisas do
avesso, entre a doença e o empobrecimento. Essa escolha nem sequer é em alternativa,
é apenas uma questão de dosagem, porque nada nos salvará, colectivamente
falando, de continuar por mais algum tempo a ter ambas em simultâneo. Podemos é
precipitar mais os acontecimentos num sentido ou no outro.
Essa escolha tem como um dos seus
principais efeitos dividir o país. A parte da população que tem rendimentos
garantidos, com todo o pessoal político e o funcionalismo público à cabeça,
tenderá naturalmente a dar prioridade à questão sanitária e será mais favorável
a medidas severas de contenção ou confinamento. Todos os outros, que são mais
vulneráveis nos seus rendimentos e que, para os manter em nível suficiente,
dependem largamente do estado de saúde das empresas e negócios em que trabalham,
tenderão a dar prioridade à questão económica, aceitando um nível maior de
exposição e de risco. Para ambas as partes, são importantes a segurança e a
subsistência, mas cada uma tenderá a querer proteger mais o flanco onde se
sente mais vulnerável.
É portanto previsível que, à
medida que a situação se arrasta, vá alastrando uma espécie de guerra civil na
opinião pública e na opinião publicada, uns pugnando por restrições mais
severas destinadas a conter a pandemia, outros defendendo que se está a tornar muito
mais lesiva a cura do que a doença. Para aqueles que já vão tendo dificuldades
em pôr comida na mesa e pagar as contas, não há grandes dúvidas: é preferível o
risco ao colapso. E haverá cada vez menos tolerância para que alguém lhes
imponha a escolha contrária. Esperemos que não haja demasiada gente a entrar em
desespero, ou as coisas podem complicar-se nas ruas.
Não é nada fácil ser governante
nos dias que correm. Mais difícil ainda se torna a tarefa se, por ignorância ou
precipitação, se cometem erros sucessivos, indo ao sabor da corrente, ou
desleixos graves, por manifesta imprevidência. Pior ainda se, por teimosia
política, não se substituem os responsáveis que demonstraram incompetência. Mas
onde se começa a desafiar o destino é quando se aceita que a demagogia se
sobreponha à realidade e, principalmente, às necessidades que esta dita. E é
isso que já está a acontecer.
Para começar, não nos dizem toda
a verdade, nem sobre a evolução previsível da pandemia, nem sobre o inevitável
afundanço da actividade económica num futuro próximo. E sempre que conveniente,
mentem-nos despudoradamente. Na inconsistente tentativa de evitar o medo ou o
descontentamento, não se preparam as pessoas para o pior nem se recomendam
precauções financeiras. E chega-se até ao ponto de fazer publicidade enganosa
nos anunciados apoios públicos às empresas em dificuldades.
Como se não bastasse, impõem-se a
muitas actividades económicas restrições incomportáveis e onde por vezes falta
racionalidade. De que serve encurtarem-se os horários do comércio, se depois os
clientes vão aglomerar-se muito mais a fazer as suas compras nesses horários
reduzidos? Por que se fecham parques e ginásios, se continuam abertas todas as
escolas e universidades, onde a acumulação de gente é muito maior? Por que não
deixam os restaurantes trabalhar mais livremente com as regras sanitárias
estabelecidas, se afinal não há grandes alternativas para quem tem de andar
quotidianamente em transportes públicos apinhados? Por que se restringe tanto a
circulação na rua em certos períodos, mesmo usando máscara e viseira, se para
muita gente pode ser maior o risco de contaminação em casa, onde quase ninguém
usa viseira nem máscara? Qual a razão de confinamentos tão drásticos, se não
tem sido possível evitar surtos alargados nem sequer onde as pessoas vivem mais
confinadas, como nos lares de idosos e nas prisões? Muita gente não consegue
perceber a lógica disto e, aliás, ainda ninguém conseguiu explicá-la bem.
Mais lamentável do que isso: os
dirigentes políticos revelam um considerável desnorte, actuando com sucessivos
avanços e recuos, ora dizendo e fazendo uma coisa, ora o seu contrário. Já se
percebeu que não estão, de modo nenhum, capacitados para conduzir-nos nesta
adversidade. Limitam-se, pois, a fazer o que está ao seu alcance: tentar
apaziguar a população, limitar os danos políticos e salvar as carreiras.
Desde o início, a gestão desta
crise tem sido desastrada. Se não houver mais bom senso nas decisões políticas,
tornar-se-á desastrosa. E é para lá que caminhamos. O fraco entendimento dos
mecanismos da economia, tão usual nos governos de esquerda ou de
centro-esquerda, tem feito com que se decretem medidas excessivas, cujos
efeitos já estão a ser tremendos e que se tornarão em breve devastadores.
Porém, de que servem os numerosos
alertas para políticos impreparados que não são capazes de antecipar as
prováveis consequências do que decidem? Como persuadi-los de que estão a ir
longe demais nas restrições económicas que arbitrariamente impõem e que a
fatura a pagar vai ser demasiado pesada para o país (ou, pelo menos, para
metade dele)? Nada os demove, a não ser as sondagens e a pressão mediática.
Como explicar-lhes, de maneira que eles entendam, que não se pode asfixiar a
economia por causa da questão sanitária? Se nada se fizesse, esta pandemia poderia
ser fatal para cerca de dois por cento da população; fazendo demais, o colapso
económico poderá vir a ser fatal para muito mais gente e sob várias formas.
Será assim tão difícil encontrar um meio-termo equilibrado, sem relaxamentos
nem garrotes?
Pecar por excesso pode ser tão
mau como pecar por defeito. Ou até pior. Entre as duas opções, venha o diabo e
escolha. Mas quem começou por pecar por defeito e acaba a pecar por excesso,
como este governo tem feito, peca duplamente. O castigo do inferno, no entanto,
talvez venha a ficar apenas para os governados, ou mais exactamente, para
aquela metade deles que não vive à sombra do Estado.
Sem comentários:
Enviar um comentário