domingo, 31 de outubro de 2021

Alterações climáticas: ANTES DO PREVISTO

Para todos os que se preocupam com as consequências das alterações climáticas, já não é segredo que as metas do Acordo de Paris de 2015 não serão cumpridas. É isso, aliás, que revela o último relatório das Nações Unidas sobre o assunto, expondo um ritmo de aquecimento global mais rápido que o previsto e em franco processo de aceleração. A situação é alarmante e tornou-se óbvio que vai piorar.

O mencionado Acordo de Paris tinha estabelecido como limite a não ultrapassar um acréscimo de temperatura média global de cerca de 1,5ºC em comparação com o período pré-industrial. Ora, pelos dados agora disponíveis, já se antevê que tal limite seja atingido, e talvez até ultrapassado, já no final da presente década ou pouco depois, isto é, bem mais cedo que em todas as previsões anteriores.

Embora os líderes mundiais se tenham comprometido a evitar a todo o custo ultrapassar esse limite, é agora evidente que foram promessas vãs e que não houve empenho suficiente. A maior parte das proclamações feitas foram ditadas pela conveniência política, alimentadas pela retórica de campanha e desproporcionais em relação às decisões tomadas, que ficaram muitíssimo aquém do necessário. Poucos terão verdadeiramente compreendido a importância e a urgência do problema.

Enquanto os especialistas se debatem com cenários futuros incertos, os governos hesitam nas medidas a tomar, receosos de afetar as respetivas economias e de enfraquecer a sua própria sustentação política. Climaticamente, estamos numa emergência grave e terrível, capaz de nos mergulhar muito em breve em desastres sem precedentes. Politicamente, estamos atolados em múltiplos jogos de interesses e lideranças débeis. É de recear o pior.

Os planos atuais para ir fazendo pequenas mudanças graduais e cautelosas, mesmo que passem todos das boas intenções e se tornem realidade, vão conduzir-nos à catástrofe. A razão disso é de natureza física e matemática: não se pode deter um fenómeno que está em aceleração crescente com medidas apenas moderadas e graduais. Já no curto prazo, são necessários cortes drásticos e rápidos da poluição global, e em especial das emissões de gases com efeito de estufa, mas nem isso será suficiente para deter o curso das alterações climáticas. Não é demais insistir que precisamos rapidamente de novas tecnologias capazes de capturar e armazenar carbono, tecnologias essas que é preciso financiar e desenvolver com a maior urgência possível. A elas, muito provavelmente, terão de se juntar em breve soluções de geoengenharia.

O rápido aquecimento do planeta já está a acelerar o aumento do nível dos mares, a provocar um degelo intenso em vastas extensões e a agravar fenómenos extremos com grande poder destruidor, como ondas de calor, secas, inundações, tempestades e furacões. As consequências económicas destes fenómenos são por vezes, nalguns locais, de molde a abalar economias e a empobrecer sociedades inteiras, deixando atrás de si um rasto de morte e devastação; e nos casos mais benignos, podem implicar uma redução severa do rendimento médio per capita. Até há pouco tempo, as regiões mais desenvolvidas do mundo julgavam-se a salvo das suas piores repercussões, exceto ocorrências excecionais. Os acontecimentos recentes têm demonstrado que não é assim e que a destruição continuada e em larga escala pode atingir também, de forma reiterada, os países prósperos. Nenhum estará a salvo de uma desordem climática generalizada.

Se nada de substancial se fizer, o aquecimento global continuará em aceleração crescente e é bem provável que se atinja, já na década de quarenta, um acréscimo de 2ºC em relação aos tempos pré-industriais. Parece pouco, mas meio grau de aquecimento importa e muito. Segundo algumas estimativas, a população global exposta a ondas de calor extremo mais do que duplicará; o degelo no Ártico, e provavelmente noutras regiões, poderá tornar-se cerca de dez vezes mais intenso e o nível dos mares subirá mais 6 a 10 centímetros; duplicará a extinção de vertebrados e de plantas e triplicará a extinção de insetos; a percentagem da área do planeta cujos ecossistemas se transformarão noutro bioma (envolvendo alterações no seu macroclima, na cobertura vegetal e nas características dos solos) quase duplicará também; a quantidade de “permafrost” (isto é, de gelo permanente e de solo congelado) que irá derreter agravar-se-á em mais de um terço; quase na mesma proporção se agravará o declínio dos recifes de corais e da vida marinha a eles associada; a produção agrícola de certas culturas, bem como as pescas, poderão decair para cerca de metade em muitos locais, sobretudo nas baixas latitudes. De facto, meio grau a mais de aquecimento global faz muita diferença, sobretudo se tivermos em conta que esse aquecimento não é homogéneo, nem do ponto de vista temporal nem do ponto de vista geográfico, e irá concentrar-se dramaticamente em certos períodos e regiões.

Que consequências pode isso ter para as populações? A mortalidade e os problemas de saúde devidos a fenómenos climatéricos extremos aumentarão; as probabilidades de seca ou de escassez de água tornar-se-ão maiores; chuvadas fortes e enchentes serão mais frequentes; a menor quantidade de gelo no planeta reduzirá a reflexão dos raios solares e implicará maior absorção de calor, gerando impactos na circulação oceânica e nos climas regionais; a contínua elevação do nível do mar aumentará a erosão costeira, assim como a perda de praias e de território litoral, e trará um risco acrescido de enchentes e um maior potencial de estragos; o desaparecimento ou rarefação de espécies terrestres e marinhas prejudicará cadeias alimentares, atividades económicas e meios de subsistência; a alteração dos solos e da cobertura vegetal terá vasto impacto nas economias locais e na interação entre estas; a transformação dos macroclimas implicará a inadequação de muitas formas tradicionais de habitação, bem como a necessidade de adaptação de edifícios e infraestruturas, com custos bastante onerosos; e os riscos de escassez de alimentos serão maiores, bem como os riscos de epidemias, incêndios florestais e propagação de pragas. No somatório total, isto envolve transformações enormes que precisariam de muitas décadas para uma adaptação gradual e minimamente organizada. Mas se tais transformações se concentrarem num espaço de tempo relativamente curto, de apenas uma década ou duas, têm um considerável potencial de caos e sofrimento humano, para já não falar de um possível recuo civilizacional em muitas regiões menos apetrechadas para mudanças tão drásticas. O risco de guerras e conflitos violentos não é sequer de descartar.

Os comentadores e os analistas destas matérias têm muitas vezes uma visão parcial e atribuem reiteradamente o aquecimento na Terra às emissões de certos gases com efeito de estufa, como o dióxido de carbono e o metano. Mas há outros culpados. Os gases de refrigeração correntes (largamente utilizados em aparelhos de ar condicionado, arcas congeladoras e frigoríficos) têm um potencial de aquecimento global 23 mil vezes maior do que o dióxido de carbono e permanecem na atmosfera durante 50 mil anos. Atualmente a quase totalidade desses gases é libertada quando esses aparelhos atingem o seu fim de vida, o que põe em evidência a importância da reciclagem, ainda muito pouco utilizada devido à falta de incentivos. De facto, muitas pessoas e empresas retiram o cobre dos equipamentos em fase terminal e libertam todo o gás para a atmosfera. Embora tais emissões sejam em geral proibidas, a falta de fiscalização ou de multas leva a incumprir os regulamentos existentes. As consequências são trágicas e contraproducentes para os esforços em curso. De facto, se conseguirmos evitar a emissão de 23 mil toneladas de dióxido de carbono para a atmosfera, mas lançarmos nela apenas uma tonelada destes gases de refrigeração (chamados “gases fluorados”), ficamos mais ou menos na mesma. Não haverá progresso na redução de emissões, no que respeita às suas consequências térmicas. Ora estima-se que, devido ao aumento generalizado das temperaturas, a procura mundial de energia para aparelhos de refrigeração triplique até 2050 e a produção e substituição destes sofra um grande incremento, o que torna ainda mais dramático o problema da recuperação e reciclagem dos gases fluorados no fim do ciclo de vida dos equipamentos.

Algo idêntico se passa com outro gás que intensifica o efeito de estufa, o óxido nitroso, que tem ainda a particularidade de ser o que mais contribui para degradar a camada de ozono. Tem várias aplicações na indústria e é também um dos produtos resultantes da queima de combustíveis fósseis ou de biomassa, mas a agricultura intensiva é de longe a maior responsável pela emissão anual, em resultado da produção e aplicação de fertilizantes sintéticos em larga escala. A pecuária e a aquicultura contribuem para o problema devido à crescente procura de rações para animais e os esgotos e seu tratamento também são uma fonte de emissões, assim como a má gestão do estrume animal e dos lixos e desperdícios. Embora exista em menor quantidade na atmosfera que o dióxido de carbono, este gás tem uma capacidade de retenção de calor 300 vezes superior (ou seja, uma molécula de óxido nitroso é equivalente a 300 moléculas de CO2 nos seus efeitos térmicos) e permanece por mais de um século na atmosfera até ser degradado naturalmente pela radiação solar. Mas como as atividades humanas estão a emiti-lo muito mais depressa do que ele é destruído, está a acumular-se perigosamente há décadas. Apesar dos esforços mundiais para reduzir as emissões industriais deste gás, várias economias emergentes estão a aumentar rapidamente as suas emissões por outras vias — nomeadamente o Brasil, a China e a Índia, onde a produção agrícola e a criação de gado têm aumentado muito rapidamente desde finais do século passado.

O enorme perigo que espreita nestes factos é a crescente probabilidade de as medidas adotadas para reduzir as emissões mundiais de dióxido de carbono, que é a ameaça de que mais constantemente se fala, serem em larga medida contrabalançadas (ou até neutralizadas nos seus efeitos práticos) pelas crescentes emissões de outros gases com um efeito de estufa bastante superior, como é o caso do metano, dos gases fluorados e do óxido nitroso. Se quisermos desenvolver estratégias eficazes para mitigar a poluição, limitar o aquecimento global e cumprir as metas climáticas, teremos de desenvolver tecnologias eficazes que nos permitam recuperar e reciclar esses outros gases ou ajudar a degradá-los em substâncias inofensivas.

Mas o prognóstico é reservado: se nem mesmo as emissões globais de dióxido de carbono pararam ainda de crescer, é de esperar que a indústria e as atividades agropecuárias sejam mais bem sucedidas na limitação dos outros gases com maior efeito de estufa e onde as atenções incidem menos? Sem gigantescos incentivos financeiros e regulamentação rígida, só poderemos esperar um novo fracasso. E dado que todos os países são sensíveis a aumentos de custos ou perda de competitividade económica, apenas iniciativas internacionais abrangentes poderão liderar as transformações necessárias, na condição de previamente compreenderem a amplitude e a gravidade desta emergência. Sem isso, os efeitos conjugados e cumulativos dos diversos fatores de perturbação climatérica irão em breve expor-nos a catástrofes sem precedentes − e muito antes do previsto.

Não é demais frisar que muitas das projeções e cenários que têm sido construídos sobre a evolução das alterações climáticas e suas consequências pecam por várias limitações metodológicas ou por compreensível prudência académica. Nalguns casos, fazem-se projeções apenas lineares, isto é, previsões que se baseiam no cálculo do que acontecerá dentro de um certo tempo se se mantiverem a tendência e o ritmo atuais de progressão dos fenómenos estudados, método este que deixa de fora a crescente aceleração deles. Noutros casos, por maior facilidade de análise ou por especialização científica, as previsões tomam em conta apenas a evolução isolada de uma ou duas variáveis do processo, deixando de fora o resultado expectável da conjugação de todas as variáveis conhecidas, ou seja, capricham no rigor analítico e fraquejam na visão sistémica. Noutros casos ainda, despreza-se a influência de diversas causas mal estudadas que podem ter um efeito catalisador nos processos naturais que condicionam a mudança climática. Em suma: nos trabalhos científicos e nos relatórios de instâncias internacionais, negligencia-se ou subestima-se com frequência a aceleração crescente das alterações climáticas, o carácter exponencial dos seus efeitos, a ação catalisadora de certas ocorrências conjugadas e as circunstâncias agravantes que contribuem (ou podem vir a contribuir) para desencadear ciclos viciosos ou “efeitos bola de neve”. Até certo ponto, isto é normal: quando se estudam isoladamente os muitos ingredientes de uma mistura, é fácil perder de vista se ela é explosiva. Neste assunto, porém, já não podemos dar-nos a esse luxo.

Em matéria climática, a realidade ultrapassou os cenários mais pessimistas e pulverizou todos os otimismos. O Protocolo de Quioto de 1997 e o Acordo de Paris de 2015 são hoje meras relíquias. Deles se aproveitam o manancial de dados até então recolhido e a convergência internacional de preocupações, mas não a justeza das previsões efetuadas nem a eficácia dos compromissos assumidos. Para além de os avanços práticos terem sido escassos, ninguém previu um ritmo tão acelerado das mudanças climáticas nem a evolução real das causas subjacentes. O aparente consenso científico pecou por defeito, a prudência académica e política pecou por excesso. Isso não pode voltar a acontecer na Conferência de Glasgow nem nas outras que se lhe seguirem, senão pagaremos um preço muitíssimo elevado. Se não quisermos pagá-lo, não podemos remeter para 2050 a meta da neutralidade carbónica. Para muitos países ou regiões e para muitas centenas de milhões de pessoas, será tarde demais. Mas ninguém ficará imune às consequências. Algumas delas são imprevisíveis, outras acontecerão bem antes do inicialmente previsto.

Convém não esquecer que, segundo o histórico a que nos habituámos, as previsões pessimistas de hoje serão as previsões ultrapassadas de amanhã. Teremos certamente um aquecimento global de 1,5ºC acima dos níveis pré-industriais até 2030 e poderemos chegar aos 2ºC até 2040, décadas antes do inicialmente previsto. Os verões vão batendo sucessivamente recordes absolutos de temperatura desde que há registos e têm surgido mantos de calor em regiões absolutamente inesperadas. A agravar toda a situação, incêndios florestais de proporções gigantescas em várias partes do mundo, mesmo em latitudes setentrionais, estão a aquecer ainda mais a atmosfera e a lançar nela quantidades incalculáveis de dióxido de carbono e de outros gases com efeito de estufa. A frequência e intensidade destes grandes incêndios tende a aumentar a cada ano que passa. O aquecimento dos oceanos progride a bom ritmo e tende também a acelerar. A quantidade de superfície gelada em todo o planeta tem vindo a diminuir em todas as estações do ano, o que diminui também a reflexão dos raios solares e aumenta a absorção de calor. Juntando estes e outros fatores, temos a combinação perfeita para que a subida do nível dos mares dispare.

Entre 1900 e o ano 2000, o nível médio do mar subiu 14 centímetros. Só nos primeiros vinte anos do século XXI, subiu mais de 7 centímetros. Ou seja, o ritmo de subida quase triplicou. Isto foi previsto? Tanto, não. Antecipou-se que haveria alguma aceleração, mas o aumento real do nível do mar é agora quase o dobro do que foi calculado. A esta cadência, e sem qualquer aceleração do fenómeno, poderíamos contar seguramente com uma subida adicional de 10 cm até meados deste século, o que já de si prenuncia consequências arrasadoras para muitas zonas litorais. As marés altas serão mais invasivas, haverá maiores amplitudes de ondulação (sobretudo durante os temporais) e as inundações costeiras serão mais frequentes e mais destruidoras. Mas o problema maior é que o fenómeno está em franca aceleração e essa aceleração está a intensificar-se cada vez mais, pelo que não será descabido admitir que uma tal subida possa ser atingida já durante a próxima década e que cheguemos a meio do século com uma subida de quase meio metro em relação ao nível médio do princípio do século. Mais uma vez, portanto, muito antes do previsto. Entretanto, iremos assistir a muita destruição costeira, mas não só. Mais calor na atmosfera e nos oceanos significa muito maior evaporação e, em seguida, fenómenos de precipitação bem mais severos que o habitual, como chuvas torrenciais de grande envergadura, enormes e extensos nevões ou queda de granizo de grandes dimensões, por vezes concentrando em poucas horas ou dias o que antes se repartia por períodos mais longos e, nalgumas regiões, causando mesmo fenómenos extremos sem precedentes. Por outras palavras: a destruição resultante não atingirá apenas o flanco dos arquipélagos e dos continentes, mas chegará também vinda de cima em proporções colossais, mesmo em zonas bastante afastadas do litoral e dos cursos de água.

A subida do nível do mar nunca foi tão rápida desde que há registos. Só o derretimento parcial do manto de gelo da Gronelândia, provocado pelo aumento das temperaturas médias locais nas últimas décadas, foi responsável por cerca de 25% do aumento do nível do mar globalmente. Este cenário de fundo foi agravado ocasionalmente pelo surgimento de grandes massas de ar quente e húmido transportadas para a zona e que cobriram temporariamente esta enorme ilha. Momentos houve em que o degelo ocorreu a uma média próxima de um milhão de toneladas por minuto, um valor demasiado alto mesmo para a nossa imaginação. E já este ano, os cientistas alertaram que uma parte significativa do gelo da Gronelândia estava a aproximar-se de um ponto de inflexão a partir do qual o degelo se tornaria inevitável. A observação das condições meteorológicas na região não deixa margens para dúvidas de que esse é um risco real. Em julho de 2021, ao longo de apenas um dia, derreteu gelo suficiente na Gronelândia para cobrir com cinco centímetros de água uma área equivalente ao estado norte-americano da Florida. No mês seguinte, com temperaturas acima de zero e nalguns locais 18ºC mais elevadas do que a média, choveu durante várias horas no cume da calota polar da Gronelândia, o que nunca antes tinha acontecido e conduziu ao derretimento de neve e gelo numa área cerca de quatro vezes superior ao tamanho do Reino Unido. Estes fenómenos não são fortuitos e estão indubitavelmente associados às diversas causas do aquecimento global, em particular às emissões de gases com efeito de estufa. Se as camadas de gelo na Gronelândia e na Antártida continuarem a derreter com o ritmo crescente dos últimos anos, estima-se que o nível do mar possa atingir já nas próximas décadas um patamar que anteriormente só era esperado para o final do século. Ora nenhum país estará preparado para enfrentar as possíveis consequências, e infelizmente pode dizer-se que quase nenhum está a preparar-se para elas. A imprevidência generalizada, tal como aconteceu com a mais recente pandemia, só poderá ampliar as calamidades que ocorrerem.

Importa também salientar que, tal como acontece com a subida das temperaturas, esta progressiva elevação do nível médio dos mares e dos oceanos não é uniformemente distribuída. Supô-lo é outro erro bastante comum. As grandes massas de água do planeta não são estáticas e por ação das marés, dos ventos e das correntes fustigam mais certas costas do que outras, o que significa que algumas zonas litorais sofrerão o impacto correspondente a uma subida maior que a média. Também as zonas de menor declive e com menos barreiras naturais ou artificiais tenderão a ser mais profundamente afetadas e enfrentarão um maior potencial destruidor.

Mas o maior fator de risco continua a ser a relativa imprevisibilidade dos piores cenários de curto e médio prazo. Causas súbitas e inesperadas poderão precipitar os acontecimentos muito para além do pessimismo considerado aceitável, gerando efeitos desastrosos, não para as gerações vindouras, mas para a humanidade atual. O que significa que mesmo os idosos de hoje não estão livres de vir a presenciar catástrofes que nunca imaginaram e de sofrer as eventuais consequências delas, diretas ou indiretas. O futuro imediato não é menos recheado de incerteza do que o futuro distante. O que está atualmente a acontecer não é apenas um conjunto de incidentes temporários num padrão climático errante. É uma vasta panóplia de sintomas climáticos que denunciam a iminência de algo em larga escala, algo que poderá eclodir em maiores proporções quase de um momento para o outro (como um extenso e rápido degelo, por exemplo, numa escala incomparavelmente superior ao registado até agora).

Poderia estabelecer-se uma analogia com o que acontece amiúde nas erupções vulcânicas: pode demorar décadas ou séculos a acumulação de pressão no interior de um vulcão antes de ele explodir, pode até haver prenúncios prolongados do que irá acontecer, mas a explosão é geralmente abrupta e as consequências são em larga medida irreversíveis. A ciência contemporânea sabe ainda demasiado pouco sobre o vulcanismo para sequer arriscar previsões pormenorizadas e este é um tema que raramente surge ligado à questão das alterações climáticas. Mas pode haver uma relação. O aumento considerável do nível das águas nos oceanos por efeito dos sucessivos degelos não só representa uma gigantesca deslocação e redistribuição de massa na superfície terrestre como altera substancialmente o peso total suportado pelas placas tectónicas nas suas diferentes zonas. Pura e simplesmente, desconhece-se o efeito que isso poderá vir a ter na atividade vulcânica e nos fenómenos sísmicos, numa perspetiva de curto ou médio prazo. A própria ignorância faz com que não se fale muito nisso, para evitar a pura especulação. Mas basta raciocinar um pouco para compreender que um acréscimo de vulcanismo e de atividade sísmica é de esperar como consequência das vastas e profundas alterações na superfície do planeta. Regiões que pareciam geologicamente estabilizadas podem em breve deixar de o ser, com enormes repercussões nas zonas urbanizadas mais próximas. Tal como a célebre Hidra da mitologia grega, o aquecimento global aparenta-se cada vez mais com um monstro de sete cabeças, todas elas igualmente ameaçadoras.

Haverá ainda tempo para reverter alguma coisa?

Sejamos realistas. Nas próximas décadas, o mundo não vai refrear a sua voracidade energética, nem o desejo de mobilidade, nem o consumo de carne, nem a ânsia de consumismo, nem a apetência por casas maiores e melhores. Todas as atividades económicas geradoras de grandes emissões poluentes estarão sob a pressão de uma procura crescente de bens e serviços. Não há como refreá-la globalmente, e muito menos naquela maioria de países que historicamente tem vivido com padrões inferiores de alimentação, conforto, mobilidade e consumo, e que querem agora aproximar-se do nível de vida dos países abastados. Portanto, temos é de reconverter processos e produtos para que gerem menos desperdícios e menos poluição. E isso era necessário para ontem. Hoje já estamos atrasados. Resta-nos fazer quanto antes o inventário dos progressos necessários para combater e reverter as alterações climáticas e fazer com que os governos e organizações internacionais deitem mãos à obra, apoiando e financiando o que for necessário e alterando drasticamente as suas prioridades de investimento – o que, em larga medida, só poderá ser conseguido com vasta cooperação internacional, o enorme problema de sempre. Só que, desta vez, não se trata de jogos de estratégia no tabuleiro da geopolítica. Para alguns países, trata-se de pura sobrevivência; para muitos outros, trata-se de não perder território e infraestruturas; e para outros ainda, trata-se de evitar o caos generalizado; mas para vastas porções da humanidade, a grande ameaça comum pode ser a de decair dramaticamente nos respetivos níveis de civilização. Conquistámo-los, em muitos casos, contra a natureza. Agora teremos de nos harmonizar com ela, quer queiramos quer não. E quanto antes.

Não podem ser meras precauções de natureza económica ou política a justificar tibiezas e hesitações naquilo que é indispensável fazer. E será bom termos em mente que, quaisquer que sejam os custos de uma reconversão rápida e programada das economias nacionais e dos processos tecnológicos, serão incomensuravelmente maiores os custos resultantes da destruição ou da paralisia económica causadas por grandes catástrofes naturais totalmente fora do nosso controle e de dimensões sem precedentes, cujos contornos e impacto podemos apenas suspeitar. Se pouco ou nada for feito, as perdas humanas e materiais ultrapassarão as piores previsões de hoje e sofreremos, muito antes do previsto, as pesadas consequências do nosso desleixo colectivo.

Não sabemos que mundo vamos deixar aos nossos descendentes, em consequência do nosso egoísmo geracional, mas a questão fulcral já deixou de ser essa. É que a partir de agora já nem sequer sabemos, num futuro mais ou menos próximo, que mundo vamos deixar a nós próprios. E se já foi tempo de ponderação e de prudência, os dados de que dispomos hoje exigem clarividência e ação imediata. Estamos numa corrida contra o tempo, o que significa que não há muito tempo a perder. Nunca tanto como hoje foi necessária uma ação concertada de políticos, diplomatas, cientistas, empresários, pedagogos e comunicação social. E onde quer que existam líderes à altura das transformações necessárias, está na altura de saírem do armário. Chegámos a um ponto em que não podemos continuar a ignorar ou desvalorizar as ameaças climáticas e tudo o que elas podem implicar, ou espera-nos uma era de retrocesso económico, social, político e civilizacional. Basta de retórica política. É preciso agir.

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