Para quem se interessa um pouco por política ou pelos seus bastidores, a vida partidária fornece pretexto todos os dias para uma dose abundante de críticas, análises, comentários e maledicências, mas toda essa atenção ao enredo histórico presente e aos seus personagens impede-nos de ver um dos grandes cenários de fundo: a iminência de enormes e sucessivas catástrofes devidas às alterações climáticas em curso.
Mesmo uma larga maioria da
humanidade culta ou instruída tem hoje apenas uma pálida ideia do que está para
acontecer, se não formos já a tempo de o impedir. E quanto à humanidade subdesenvolvida
ou pouco escolarizada, que ainda é sem dúvida a maior porção dela em todos os
continentes, essa está tão a leste de todos os problemas globais que nem
consegue imaginar que poderá ser ela, com toda a probabilidade, a que mais depressa e
mais intensamente irá sofrer, por pobreza ou imprevidência, as consequências
que se avizinham.
Nos
países relativamente avançados, incluindo o nosso, as questões ambientais e
climáticas têm sido muito badaladas e de tempos a tempos tornam-se uma questão
de moda política ou intelectual, ou invadem até a agenda mediática, mas apesar
disso têm sido largamente subestimadas.
Existe uma noção difusa de que as
alterações climáticas irão sobretudo afetar lugares remotos, pelo menos no
curto prazo, e de que as regiões desenvolvidas saberão encontrar os meios para
se adaptarem gradualmente aos seus efeitos. Talvez os encontrem, mas não é
certo; em todo o caso, não conseguirão impedir enormes devastações nos seus
territórios e nas suas economias, porque falamos de acontecimentos que
transcendem em muito a ordem de grandeza da política comum e dos seus efémeros
eventos.
Não se trata apenas de combater a
poluição atmosférica ou a acumulação de lixo nos oceanos, ou de retardar o ritmo
de subida do nível dos mares, ou de moderar a extinção em massa de espécies que
está a ocorrer.
O que está em causa é algo muito,
muito maior – e pior. Não há sequer uma escala
adequada para traduzir as ameaças a que estamos expostos e as suas
consequências biológicas e civilizacionais. O termo “catástrofe” pode nem ser
suficiente e ilustrativo, se conseguirmos imaginar o estado de carência e caos
generalizado a que poderemos ficar sujeitos por causa de grandes devastações
naturais provocadas pelo clima. Apesar de tudo, estamos habituados a enfrentar
catástrofes de algum tipo de vez em quando… Mas nada nos preparou para o que aí
vem: alterações tão súbitas e profundas do nosso habitat que nem
saberemos bem como as enfrentar, mesmo com toda a ciência e tecnologia de que
dispomos.
Um
dos erros que grassa na opinião pública e nos planos de muitos dirigentes é a
crença de que a mudança climática é um processo lento e gradual. Infelizmente,
não é.
A mudança climática começou por
ser lenta, enquanto foram relativamente modestas as causas que a impulsionaram.
Mas essas causas têm-se avolumado e várias outras entretanto se lhes juntaram,
de modo que os seus efeitos se vão progressivamente agigantando e adquirindo um
ritmo crescente. Ou seja: vão ocorrendo catástrofes de certos tipos (secas,
incêndios florestais, tempestades, cheias, pragas, epidemias) com cada vez
maior intensidade e com intervalos de tempo cada vez menores.
Esta intensidade e esta
frequência crescentes são apenas dois dos aspetos que estão implícitos no
conceito de “crescimento exponencial”, uma noção matemática que muita gente
agora costuma utilizar (incluindo jornalistas) sem saber exatamente o que
significa. Ora um fenómeno exponencial não é apenas um fenómeno cujos efeitos
vão aumentando e se acumulam, é sobretudo um fenómeno cujos efeitos se
multiplicam. Ou seja: que está em constante aceleração, como acontece atualmente
com o aquecimento global e com a subida do nível dos mares.
É isto que importa, acima de tudo, perceber: um
fenómeno exponencial deixa de ser lento e deixa de ser gradual. Ele não
ocorre a um ritmo constante, mas progressivamente crescente. Tratando-se de
fenómenos que originem catástrofes naturais, estas serão cada vez mais
extensas, mais frequentes e mais destruidoras, depressa parecendo ultrapassar
os limites de toda a previsibilidade humana e da nossa capacidade coletiva para
os deter. E tudo se torna ainda pior quando os efeitos de um fenómeno se
acrescentam às suas causas, gerando um círculo vicioso, aumentando assim os
seus perigos e a sua complexidade. Ora é precisamente nessa situação que nos
encontramos. Estamos hoje metidos numa espiral de acontecimentos climáticos
cujo desfecho é incerto, mas certamente trágico. O que nos espera doravante talvez
seja mais do que uma mera sucessão de catástrofes, poderá ser (pelo menos pela
acumulação das suas consequências) um verdadeiro cataclismo global, dado
que assistiremos a uma modificação drástica de grande parte da superfície
terrestre, dos seus habitats naturais, das suas condições de
habitabilidade e dos meios de subsistência das respetivas populações. E não
sabemos quão depressa isso poderá acontecer, nem a que ritmo conseguiremos
adaptar-nos.
Mas, dir-se-á, com todas as
ferramentas científicas de que já dispomos, a nossa capacidade de previsão não
está hoje à altura de traçar cenários de futuro mais ou menos realistas? Não,
não está, longe disso.
Não é preciso procurar provas
muito contundentes. Quando em 1997 políticos e cientistas de todo o mundo
elaboraram e assinaram o já histórico Protocolo de Quioto, com vista a combater
o aquecimento global, basearam‑se em fenómenos e tendências mensuráveis, ou
seja, em análises compatíveis com os dados e instrumentos existentes nessa
época. Havia algumas previsões mais otimistas, outras mais pessimistas, mas os
acordos foram celebrados tendo como pressuposto um cenário médio, descartando
as antecipações mais extremistas de ambos os lados do leque das hipóteses.
Contudo, vinte anos depois, foi inevitável chegar-se à conclusão de que as
previsões mais pessimistas de então foram estrondosamente ultrapassadas pelos
factos – e por uma larguíssima margem. Ou seja: nem mesmo os especialistas
mais alarmistas conseguiram antecipar o que veio realmente a acontecer. E isto
é perigoso, muito perigoso. Revela, antes de mais, que os nossos conhecimentos
de ponta não estavam (e provavelmente ainda não estão) à altura de avaliar toda
a dimensão do sarilho climático em que estamos metidos. A subsistência ou mesmo
a sobrevivência de uma grande parte da população humana poderá estar futuramente
em risco – e nós nem sequer temos ainda plena consciência disso. Nem tão-pouco
dos conflitos graves que a eventual escassez de recursos poderá vir a originar…
“Eeeeh, chega de alarmismos”, dirão
alguns… “Vamos decerto continuar a fazer o que for necessário para evitar os
piores cenários. Não vamos ficar de braços cruzados e tudo se resolverá, melhor
ou pior.” Pois, esse voluntarismo otimista é um desejável estado de espírito,
mas numa perspetiva de escala, talvez não seja muito mais do que isso. À escala
do necessário, é pouco mais que nada. Corremos o risco de em poucas décadas
tornar o planeta largamente inabitável e não haverá otimismo que o possa
evitar. Precisaremos de muito mais do que isso. Tragicamente, já deixámos as
coisas chegar a um ponto em que a prudência e a boa vontade deixaram de ser
suficientes. O que é necessário agora é mesmo fazer soar os alarmes todos, ainda
que nos meios académicos continue a imperar uma certa aversão ao “alarmismo
climático” como condição de alguma credibilidade científica… Mas como diz um
velho provérbio, é antes da casa roubada que se devem pôr trancas na porta; e
receio que, neste caso, já nem isso vá bastar. Para fazer face aos
potenciais problemas e às suas terríveis repercussões, precisaremos de mais do
que empenho político e avultados meios financeiros: precisaremos de vários e
substanciais avanços científicos e, além disso, de muita tecnologia que ainda não
temos nem tão-pouco idealizámos…
As
noções erróneas que se difundiram acerca do ritmo das alterações climáticas e
dos seus efeitos, supostamente à razão de um tanto por ano ou por década,
proporcionaram-nos uma tranquilidade artificial e enganadora sobre o tempo de
que dispomos para corrigir as coisas e sobre a urgência com que precisamos
fazê-lo. Talvez tudo pudesse ter sido diferente se os cientistas e os
meios de comunicação tivessem tentado com mais insistência fazer-nos compreender
aquilo que no fundo já todos sabemos: que os fenómenos naturais nem sempre
ocorrem gradualmente e que por vezes estão sujeitos a grandes descontinuidades,
a alterações súbitas de ritmo ou de intensidade, a interferências que podem
atenuar ou agravar aquilo que julgamos previsível. Sim, nós sabemo-lo:
aquilo que começa gradualmente (pelo menos, na aparência) pode vir a provocar
alterações enormes e súbitas, algumas antecipáveis, outras inesperadas. Mas
quando as julgamos apenas hipotéticas ou longínquas, preferimos geralmente não
nos preocuparmos demasiado. É uma velha tendência autoprotectora do cérebro:
não gerar stress desnecessário. Só que, neste caso, o tiro poderá sair-nos pela
culatra.
Já todos vimos imagens de blocos de
gelo a despenhar-se em icebergues e glaciares, ou de avalanches em montanhas
cobertas de neve. Antes de esse fenómeno acontecer, podem ter estado ativos
lentos processos de erosão, mas o desfecho final é rápido. No caso do gelo,
após o despenhamento ele irá provavelmente derreter num espaço de tempo relativamente
curto, que podemos considerar insignificante quando comparado com o tempo de
erosão que foi necessário para o quebrar. Há notícias de icebergues gigantescos
que derreteram completamente em poucos dias ou semanas. De facto, não há como
contornar as leis da física: em condições naturais, quando a temperatura
envolvente atinge ou se aproxima dos zero graus, o gelo começa a derreter e
derrete tanto mais rapidamente quando maior for a superfície exposta a uma
temperatura superior. E quanto menos compacto ou quanto mais fissurado o gelo
estiver, em consequência de erosão anterior, mais facilmente se quebra e mais depressa
derrete. E quanto mais intensa uma vaga de calor, menos tempo resiste.
Significa isto que, se houver aumentos anormais de
temperatura na atmosfera ou nas correntes oceânicas, grandes massas de gelo
podem derreter num curto espaço de tempo, num ritmo bastante superior àquele de
que temos conhecimento no último quarto de século. Desde 1992 até aos
nossos dias, a Antártida e a Gronelândia, que têm os dois maiores mantos de
gelo do planeta, perderam mais de sete triliões de toneladas de gelo e essa
perda resultou numa elevação do nível global do mar superior a dois
centímetros. Porém, esta escala aparentemente pequena dá-nos apenas uma modesta
noção do que tal pode significar em termos de erosão e inundações costeiras, e
não fornece de modo algum uma bitola segura para avaliar o que se possa vir a
verificar nesta década em que estamos e nas seguintes, porque o derretimento
das grandes massas geladas está em óbvia aceleração e expansão. Satélites da
NASA detetaram em 2012 que a superfície em que se verificava o derretimento do
manto de gelo da Gronelândia tinha passado dos habituais 40% durante os meses
de verão para uns surpreendentes 97% em apenas alguns dias, devido a uma vaga
de calor na atmosfera, e os cientistas foram forçados a concluir que a
repetição de fenómenos deste género poderia levar a um rápido degelo total. Longe
fique o agoiro: se todo o
manto de gelo da Gronelândia, que cobre aproximadamente 80% do seu território,
derretesse completamente, isso faria aumentar o nível dos mares em mais de sete
metros. Mas não indo tão longe, se derretesse apenas um sétimo dessa enorme
massa gelada, a subida das águas seria aproximadamente de um metro, inundando a
maioria das cidades costeiras do mundo e implicando a perda de grandes
quantidades de território litoral em todos os continentes, assim como o
desaparecimento de inúmeras ilhas. Pensar que isso só possa acontecer
gradualmente e ao longo de várias décadas é uma ingenuidade demasiado perigosa.
E também o é imaginar o derretimento parcial da Gronelândia como um fenómeno
isolado, esquecendo a contribuição do degelo simultâneo noutras massas geladas
do planeta.
Alguns estudos climáticos indicam que
o Ártico poderá ficar sem gelo até 2035, devido à subida das temperaturas na
região. Uma das consequências mais temidas é o derretimento do chamado “permafrost”,
uma vasta quantidade de solo que passa todo o ano congelado e que cobre 25% da
superfície terrestre do Hemisfério Norte, sobretudo no Canadá, Gronelândia e
Rússia, mas também na Noruega e no Alasca. Ele abriga no seu interior dióxido
de carbono, metano e mercúrio tóxico, além de ser um reservatório de vírus e
bactérias com os quais a humanidade recente nunca teve contacto e contra os
quais muito provavelmente não tem imunidade.
O “permafrost” é constituído por uma
mistura de terra, gelo e rochas permanentemente congelados, constituindo uma
camada que é recoberta por uma outra de gelo e neve que no inverno chega a
atingir 300 metros de profundidade em alguns locais, mas que ao derreter-se no
verão se reduz para uma espessura de 0,5 a 2 metros apenas (tornando a
superfície do solo pantanosa, uma vez que as águas superficiais não são
absorvidas pelo solo congelado, o que faz diminuir a sua capacidade de reflexão
solar). Este solo congelado é rico em material orgânico que se decompõe
lentamente; mas quando o “permafrost” derrete, bactérias e fungos decompõem o
carbono contido na matéria orgânica muito mais rapidamente, libertando-o na
atmosfera como dióxido de carbono ou metano, ambos gases com efeito de estufa. E
os cientistas descrevem um
círculo vicioso: os gases emitidos pelo “permafrost” aceleram o aquecimento
global, que por sua vez acelera o derretimento do “permafrost”. Em linguagem
comum, é um “efeito bola de neve”.
De acordo com um estudo recente, só o “permafrost” no Hemisfério
Norte contém mais do dobro da quantidade de carbono já existente na atmosfera,
e o seu rápido degelo pode torná-lo um contribuinte significativo para a
mudança climática global. A quantidade de dióxido de carbono e metano que
poderá adicionar à atmosfera depende da rapidez com que descongela, mas há
evidências de que uma série de verões anormalmente quentes estão a acelerar
bastante o seu degelo e a desbastar drasticamente as camadas superiores de
gigantescos blocos de gelo subterrâneos que estiveram solidamente congelados
durante milénios. Em vastas porções de território gelado, pode levar tempo até
que em muitos locais seja atingido o ponto de descongelação, mas onde este for
atingido, a descongelação em si mesma é um fenómeno rápido e, quase poderíamos
dizer, abrupto, que não encaixa na nossa noção de algo progressivo ou gradual.
Imaginemos um bloco de gelo marinho à
temperatura inicial de -25ºC. Se a temperatura envolvente subir ou oscilar, durante
muito tempo aparentemente nada se passa até ser atingido o ponto de descongelação,
que no caso do gelo marinho é de cerca de -2ºC (um pouco mais baixo do que para
o gelo “puro”, devido à quantidade de sais dissolvidos, o que o torna ainda
mais vulnerável). Mas ao ser atingido o ponto de descongelação, por mais tempo que
tenha decorrido e por mais oscilações térmicas que tenham entretanto
acontecido, o gelo descongela mesmo e tanto mais depressa quanto mais elevada
for a temperatura envolvente. Aliás, sabemos por experiência e pelas leis da física que outras alterações de estado da matéria também acontecem de modo mais ou
menos abrupto: quando pomos uma cafeteira de água a aquecer, temos de esperar
algum tempo até a temperatura subir o suficiente, e esse aquecimento pode-nos
parecer lento e gradual, mas quando são atingidos os 100ºC a água começa
imediatamente a ferver e a evaporar-se e, por mais que façamos, já não
conseguimos devolver o vapor à cafeteira… Isto pode ser simples de entender,
mas em condições naturais as coisas são um pouco mais complexas e, por isso,
menos previsíveis.
O facto de o “permafrost” ser composto por diversos materiais, com diferentes pontos de congelação e diferentes graus de coesão, pode torná-lo mais vulnerável a desagregação e fissuras do que as grandes massas homogéneas de gelo, aumentando muito o seu grau de exposição e o seu potencial de erosão, e fazendo com que o seu derretimento seja bastante mais acelerado do que o inicialmente previsto. De um modo geral, o aumento da irregularidade do relevo e o aumento do número de falhas nestes solos constitui um acréscimo de vulnerabilidade ao degelo – e isso está a acontecer a um ritmo alarmante, em grande parte da zona ártica. Paradoxalmente, em vez de se preocuparem com esse fenómeno e outros relacionados, muitos dirigentes políticos da região estão empenhadamente a analisar como retirar do degelo do Ártico vantagens para a navegação comercial e para a criação de novos portos, sem perceberem a extensão da ameaça ou o real alcance do problema.
Algo está a mudar rapidamente e a
magnitude real das consequências é imprevisível. O afluxo aos oceanos de anormais
quantidades de água resultantes do degelo estival cada vez mais intenso não só
faz subir o nível das águas e o impacto das marés, como aumenta o potencial
destruidor destas e das tempestades costeiras, para já não falar do de
eventuais tsunamis, que fustigam com frequência irregular algumas
regiões do planeta. Por outro lado, é bastante provável que esse considerável
afluxo de água aos oceanos possa provocar alterações na temperatura ou no trajeto
das correntes oceânicas, causando assim impactos acrescidos em diversos climas
regionais, afetando a sua biodiversidade e a sua economia. Consequências verdadeiramente
dramáticas poderão ocorrer em poucos anos. Acontecimentos e transformações que
durante muito tempo pareceram que só iriam ocorrer gradualmente podem
precipitar-se de repente e subverter por completo quaisquer cálculos e
expectativas anteriores.
O derretimento acelerado do “permafrost”, por exemplo, representa um enorme risco sanitário. Muitos cientistas consideram que nesses solos congelados podem estar aprisionados vírus e bactérias associados a doenças do passado, algumas completamente desconhecidas, outras aparentemente extintas. A probabilidade de uma pandemia mortífera não é negligenciável, mesmo com os meios atuais da medicina. A humanidade está ainda a experienciar os efeitos disruptivos de uma pandemia relativamente benigna, cuja taxa média de mortalidade é de apenas 2% em relação ao total de infetados conhecidos não vacinados (se considerarmos o número real de infetados, incluindo os assintomáticos e os não diagnosticados, a taxa de mortalidade é ainda menor). Mas não muito distante no tempo, a peste negra do século XIV vitimou mais de metade da população europeia, que era então muitíssimo mais dispersa e rural do que agora. Imagine-se o que poderia acontecer atualmente com qualquer micro-organismo igualmente mortífero, ou até menos, com a concentração urbana, a densidade populacional, a facilidade e a rapidez dos transportes nos tempos de hoje.
A
simples deslocação das zonas climáticas ou a alteração dos seus padrões
habituais de temperatura e pluviosidade podem também ter repercussões para além
do imaginável. Culturas tradicionais de subsistência podem tornar-se inviáveis,
boa parte da fauna e flora de cada região afetada pode não conseguir sobreviver
às alterações, ecossistemas inteiros podem ser destruídos, as atividades
económicas podem sofrer abalos e estrangulamentos de grande magnitude, a
escassez alimentar e de outros produtos essenciais pode vir a instalar-se com
regularidade, certas fontes de rendimento podem desaparecer por completo,
guerras civis e tumultos urbanos podem eclodir, doenças transmissíveis de
outras latitudes podem encontrar novas zonas de implantação. Resta
acrescentar que estes cenários são, todos eles, de elevada probabilidade e não
um mero exercício de imaginação.
E com uma agravante: o
aquecimento global não vai ser uniformemente distribuído por todo o planeta,
ao contrário do que muitos tendem a acreditar. Assistiremos com frequência
crescente a uma intensificação de fenómenos climatéricos extremos, com grandes
vagas de calor ou de frio gélido, algumas delas em regiões onde não eram de
todo habituais ou sequer expectáveis. O calor tórrido e o frio polar poderão no
futuro surgir onde menos se espere, devido a drásticas alterações das correntes
atmosféricas, e chuvas diluvianas poderão desabar em locais que eram de
pluviosidade moderada. Estamos a habituar-nos a ondas de calor sufocante em
países setentrionais, a grandes incêndios florestais nos EUA e até no Canadá,
na Suécia e na Sibéria, e a zona mediterrânica está a tornar-se cronicamente um
grande inferno estival. Inicialmente, pensou-se que regiões que já eram quentes
tenderiam a tornar-se mais quentes e regiões habitualmente frias poderiam
tornar-se ainda mais frias, mas essa previsão falhou parcialmente, pois
fenómenos extremos de temperatura e pluviosidade parecem agora fugir a toda a
lógica e a todos os modelos de previsão, surgindo quase em qualquer parte sem
se fazer anunciar. Chuvas diluvianas caíram recentemente em locais tão díspares
como a Alemanha e países limítrofes, Turquia, China, Japão, Nigéria, Filipinas,
e nos últimos anos desabaram também sobre a Índia, Bangladesh, Irão, Indonésia,
Moçambique e África do Sul, entre outros lugares. O clima parece descontrolado
em quase toda a parte e, acompanhando esta tendência global, as zonas que eram
de climas temperados parecem estar em vias de deixar de o ser. As próprias
estações do ano estão a fugir aos padrões habituais, quer em sequência quer em
duração, e nalgumas regiões estão a ficar irreconhecíveis. Escusado será frisar
quanto tudo isto pode afetar inúmeras atividades económicas em cada país
(incluindo a destruição de solos e culturas), causar danos em edifícios e infraestruturas
ou dificultar a mobilidade geográfica, um dos componentes fundamentais da vida
moderna.
O que pudemos observar nos últimos
anos aponta para duas
conclusões inevitáveis: enquanto durante muito tempo andámos a temer sobretudo a gradual
elevação do nível das águas do mar e as suas possíveis consequências nas zonas
litorais, estamos agora confrontados com a perigosidade bem mais imediata e
igualmente destruidora de chuvas diluvianas e cheias de proporções bíblicas,
que podem ocorrer de súbito e quase em qualquer lugar, bem no interior dos
continentes; e enquanto muitos analistas e dirigentes traçaram cenários que
previam aumentos relativamente moderados da temperatura global ao longo das
próximas décadas, estamos de facto perante grandes disparidades no agravamento
das temperaturas médias, que nalgumas zonas do globo está a ser bem mais
intenso e rápido do que se previra, e atónitos com o surgimento de vagas de
calor infernais nas regiões mais improváveis, capazes de pôr em causa, pelas
suas consequências, até a razoabilidade dos cenários mais pessimistas. O
Ártico, por exemplo, está a aquecer três vezes mais depressa que o resto do
planeta e os seus invernos são cada vez mais quentes, prejudicando a formação
dos gelos, ao passo que no resto do ano os incêndios florestais são cada vez
mais frequentes e intensos e a extensão do degelo cada vez maior.
Enquanto a temperatura média da Terra
subiu cerca de 1ºC desde a era pré-industrial até ao virar do milénio, a partir
deste e até ao final da presente década ter-se-á agravado em mais 0,5ºC,
atingindo vinte anos antes do previsto o limite de 1,5º C que o Acordo de Paris
de 2015 tinha proposto como meta aos países participantes. Isso significa, em
termos aproximados, que o ritmo de agravamento do aquecimento triplicou
desde o já obsoleto Protocolo de Quioto de 1997. Não obstante toda a
retórica política e um manancial de boas intenções anunciadas, a verdade é que mais
de metade do dióxido de carbono lançado para a atmosfera pela queima de combustíveis
fósseis foi emitido apenas nas últimas três décadas. E em vez de ir diminuindo,
como seria suposto pela aplicação de políticas restritivas, desde 1990 a 2020 as
emissões globais anuais de gases com efeito de estufa cresceram 41% e ainda
estão a aumentar a cada ano que passa. Isso mostra bem que as grandes ameaças
iminentes continuam a não ser levadas suficientemente a sério, apesar de todo o
alarido mediático e ideológico.
Entretanto, obediente apenas às leis
da natureza e alheio aos esforços diplomáticos, o planeta vai aquecendo mais. E
em consequência da distribuição desigual do aumento médio da temperatura, alguns locais do mundo estão a aquecer bem mais
rapidamente do que outros. Em breve, muitos deles ficarão inabitáveis ou
sofrerão golpes severos nos seus tradicionais meios de subsistência. As
consequências são dificilmente previsíveis na sua magnitude, mas uma delas é
certa: o surgimento de vagas
crescentes de refugiados climáticos, em busca da sobrevivência ou de
uma vida melhor, fugindo ao calor intenso, à desertificação, às inundações, à
fome ou à violência gerada pela escassez de recursos. Até meados deste século, poderão ser centenas de
milhões. Resta saber quem terá capacidade e disposição para os acolher, num
mundo repleto de conflitos étnicos e identitários e onde as migrações são já um
dos mais importantes fatores de conflitualidade civil (e mesmo, nalguns casos,
diplomática ou militar). As misturas raciais e étnicas, os choques
culturais e religiosos, as divisões linguísticas e os costumes quotidianos, bem
como as notórias dificuldades de integração plena dos imigrantes (que, em
muitos casos, não querem ser assimilados) estão a pôr em ebulição inúmeras
sociedades por esse mundo fora. Um aumento considerável da pressão migratória,
mesmo que desencadeado por situações de crise humanitária, não augura nada de
bom. Além de termos de enfrentar a violência desmedida do clima, tudo faz
prever que tenhamos também pela frente décadas de convulsão social e a proliferação
de tumultos civis. Como diz a sabedoria popular, uma tragédia nunca vem só.
É preciso é mostrar como travar estes cenários.
ResponderEliminarhttps://edition.cnn.com/interactive/2019/04/specials/climate-change-solutions-quiz/
Project drawdown é o grupo que vejo abordar a questão com mais rigor e seriedade:
https://www.drawdown.org/solutions-summary-by-rank