sábado, 16 de outubro de 2021

Alterações climáticas: O TRIUNFO DA IGNORÂNCIA

Para quem se interessa um pouco por política ou pelos seus bastidores, a vida partidária fornece pretexto todos os dias para uma dose abundante de críticas, análises, comentários e maledicências, mas toda essa atenção ao enredo histórico presente e aos seus personagens impede-nos de ver um dos grandes cenários de fundo: a iminência de enormes e sucessivas catástrofes devidas às alterações climáticas em curso.

Mesmo uma larga maioria da humanidade culta ou instruída tem hoje apenas uma pálida ideia do que está para acontecer, se não formos já a tempo de o impedir. E quanto à humanidade subdesenvolvida ou pouco escolarizada, que ainda é sem dúvida a maior porção dela em todos os continentes, essa está tão a leste de todos os problemas globais que nem consegue imaginar que poderá ser ela, com toda a probabilidade, a que mais depressa e mais intensamente irá sofrer, por pobreza ou imprevidência, as consequências que se avizinham.

Nos países relativamente avançados, incluindo o nosso, as questões ambientais e climáticas têm sido muito badaladas e de tempos a tempos tornam-se uma questão de moda política ou intelectual, ou invadem até a agenda mediática, mas apesar disso têm sido largamente subestimadas.

Existe uma noção difusa de que as alterações climáticas irão sobretudo afetar lugares remotos, pelo menos no curto prazo, e de que as regiões desenvolvidas saberão encontrar os meios para se adaptarem gradualmente aos seus efeitos. Talvez os encontrem, mas não é certo; em todo o caso, não conseguirão impedir enormes devastações nos seus territórios e nas suas economias, porque falamos de acontecimentos que transcendem em muito a ordem de grandeza da política comum e dos seus efémeros eventos.

Não se trata apenas de combater a poluição atmosférica ou a acumulação de lixo nos oceanos, ou de retardar o ritmo de subida do nível dos mares, ou de moderar a extinção em massa de espécies que está a ocorrer.

O que está em causa é algo muito, muito maior e pior. Não há sequer uma escala adequada para traduzir as ameaças a que estamos expostos e as suas consequências biológicas e civilizacionais. O termo “catástrofe” pode nem ser suficiente e ilustrativo, se conseguirmos imaginar o estado de carência e caos generalizado a que poderemos ficar sujeitos por causa de grandes devastações naturais provocadas pelo clima. Apesar de tudo, estamos habituados a enfrentar catástrofes de algum tipo de vez em quando… Mas nada nos preparou para o que aí vem: alterações tão súbitas e profundas do nosso habitat que nem saberemos bem como as enfrentar, mesmo com toda a ciência e tecnologia de que dispomos.

Um dos erros que grassa na opinião pública e nos planos de muitos dirigentes é a crença de que a mudança climática é um processo lento e gradual. Infelizmente, não é.

A mudança climática começou por ser lenta, enquanto foram relativamente modestas as causas que a impulsionaram. Mas essas causas têm-se avolumado e várias outras entretanto se lhes juntaram, de modo que os seus efeitos se vão progressivamente agigantando e adquirindo um ritmo crescente. Ou seja: vão ocorrendo catástrofes de certos tipos (secas, incêndios florestais, tempestades, cheias, pragas, epidemias) com cada vez maior intensidade e com intervalos de tempo cada vez menores.

Esta intensidade e esta frequência crescentes são apenas dois dos aspetos que estão implícitos no conceito de “crescimento exponencial”, uma noção matemática que muita gente agora costuma utilizar (incluindo jornalistas) sem saber exatamente o que significa. Ora um fenómeno exponencial não é apenas um fenómeno cujos efeitos vão aumentando e se acumulam, é sobretudo um fenómeno cujos efeitos se multiplicam. Ou seja: que está em constante aceleração, como acontece atualmente com o aquecimento global e com a subida do nível dos mares.

É isto que importa, acima de tudo, perceber: um fenómeno exponencial deixa de ser lento e deixa de ser gradual. Ele não ocorre a um ritmo constante, mas progressivamente crescente. Tratando-se de fenómenos que originem catástrofes naturais, estas serão cada vez mais extensas, mais frequentes e mais destruidoras, depressa parecendo ultrapassar os limites de toda a previsibilidade humana e da nossa capacidade coletiva para os deter. E tudo se torna ainda pior quando os efeitos de um fenómeno se acrescentam às suas causas, gerando um círculo vicioso, aumentando assim os seus perigos e a sua complexidade. Ora é precisamente nessa situação que nos encontramos. Estamos hoje metidos numa espiral de acontecimentos climáticos cujo desfecho é incerto, mas certamente trágico. O que nos espera doravante talvez seja mais do que uma mera sucessão de catástrofes, poderá ser (pelo menos pela acumulação das suas consequências) um verdadeiro cataclismo global, dado que assistiremos a uma modificação drástica de grande parte da superfície terrestre, dos seus habitats naturais, das suas condições de habitabilidade e dos meios de subsistência das respetivas populações. E não sabemos quão depressa isso poderá acontecer, nem a que ritmo conseguiremos adaptar-nos.

Mas, dir-se-á, com todas as ferramentas científicas de que já dispomos, a nossa capacidade de previsão não está hoje à altura de traçar cenários de futuro mais ou menos realistas? Não, não está, longe disso.

Não é preciso procurar provas muito contundentes. Quando em 1997 políticos e cientistas de todo o mundo elaboraram e assinaram o já histórico Protocolo de Quioto, com vista a combater o aquecimento global, basearam‑se em fenómenos e tendências mensuráveis, ou seja, em análises compatíveis com os dados e instrumentos existentes nessa época. Havia algumas previsões mais otimistas, outras mais pessimistas, mas os acordos foram celebrados tendo como pressuposto um cenário médio, descartando as antecipações mais extremistas de ambos os lados do leque das hipóteses. Contudo, vinte anos depois, foi inevitável chegar-se à conclusão de que as previsões mais pessimistas de então foram estrondosamente ultrapassadas pelos factos – e por uma larguíssima margem. Ou seja: nem mesmo os especialistas mais alarmistas conseguiram antecipar o que veio realmente a acontecer. E isto é perigoso, muito perigoso. Revela, antes de mais, que os nossos conhecimentos de ponta não estavam (e provavelmente ainda não estão) à altura de avaliar toda a dimensão do sarilho climático em que estamos metidos. A subsistência ou mesmo a sobrevivência de uma grande parte da população humana poderá estar futuramente em risco – e nós nem sequer temos ainda plena consciência disso. Nem tão-pouco dos conflitos graves que a eventual escassez de recursos poderá vir a originar…

“Eeeeh, chega de alarmismos”, dirão alguns… “Vamos decerto continuar a fazer o que for necessário para evitar os piores cenários. Não vamos ficar de braços cruzados e tudo se resolverá, melhor ou pior.” Pois, esse voluntarismo otimista é um desejável estado de espírito, mas numa perspetiva de escala, talvez não seja muito mais do que isso. À escala do necessário, é pouco mais que nada. Corremos o risco de em poucas décadas tornar o planeta largamente inabitável e não haverá otimismo que o possa evitar. Precisaremos de muito mais do que isso. Tragicamente, já deixámos as coisas chegar a um ponto em que a prudência e a boa vontade deixaram de ser suficientes. O que é necessário agora é mesmo fazer soar os alarmes todos, ainda que nos meios académicos continue a imperar uma certa aversão ao “alarmismo climático” como condição de alguma credibilidade científica… Mas como diz um velho provérbio, é antes da casa roubada que se devem pôr trancas na porta; e receio que, neste caso, já nem isso vá bastar. Para fazer face aos potenciais problemas e às suas terríveis repercussões, precisaremos de mais do que empenho político e avultados meios financeiros: precisaremos de vários e substanciais avanços científicos e, além disso, de muita tecnologia que ainda não temos nem tão-pouco idealizámos…

As noções erróneas que se difundiram acerca do ritmo das alterações climáticas e dos seus efeitos, supostamente à razão de um tanto por ano ou por década, proporcionaram-nos uma tranquilidade artificial e enganadora sobre o tempo de que dispomos para corrigir as coisas e sobre a urgência com que precisamos fazê-lo. Talvez tudo pudesse ter sido diferente se os cientistas e os meios de comunicação tivessem tentado com mais insistência fazer-nos compreender aquilo que no fundo já todos sabemos: que os fenómenos naturais nem sempre ocorrem gradualmente e que por vezes estão sujeitos a grandes descontinuidades, a alterações súbitas de ritmo ou de intensidade, a interferências que podem atenuar ou agravar aquilo que julgamos previsível. Sim, nós sabemo-lo: aquilo que começa gradualmente (pelo menos, na aparência) pode vir a provocar alterações enormes e súbitas, algumas antecipáveis, outras inesperadas. Mas quando as julgamos apenas hipotéticas ou longínquas, preferimos geralmente não nos preocuparmos demasiado. É uma velha tendência autoprotectora do cérebro: não gerar stress desnecessário. Só que, neste caso, o tiro poderá sair-nos pela culatra.

Já todos vimos imagens de blocos de gelo a despenhar-se em icebergues e glaciares, ou de avalanches em montanhas cobertas de neve. Antes de esse fenómeno acontecer, podem ter estado ativos lentos processos de erosão, mas o desfecho final é rápido. No caso do gelo, após o despenhamento ele irá provavelmente derreter num espaço de tempo relativamente curto, que podemos considerar insignificante quando comparado com o tempo de erosão que foi necessário para o quebrar. Há notícias de icebergues gigantescos que derreteram completamente em poucos dias ou semanas. De facto, não há como contornar as leis da física: em condições naturais, quando a temperatura envolvente atinge ou se aproxima dos zero graus, o gelo começa a derreter e derrete tanto mais rapidamente quando maior for a superfície exposta a uma temperatura superior. E quanto menos compacto ou quanto mais fissurado o gelo estiver, em consequência de erosão anterior, mais facilmente se quebra e mais depressa derrete. E quanto mais intensa uma vaga de calor, menos tempo resiste.

Significa isto que, se houver aumentos anormais de temperatura na atmosfera ou nas correntes oceânicas, grandes massas de gelo podem derreter num curto espaço de tempo, num ritmo bastante superior àquele de que temos conhecimento no último quarto de século. Desde 1992 até aos nossos dias, a Antártida e a Gronelândia, que têm os dois maiores mantos de gelo do planeta, perderam mais de sete triliões de toneladas de gelo e essa perda resultou numa elevação do nível global do mar superior a dois centímetros. Porém, esta escala aparentemente pequena dá-nos apenas uma modesta noção do que tal pode significar em termos de erosão e inundações costeiras, e não fornece de modo algum uma bitola segura para avaliar o que se possa vir a verificar nesta década em que estamos e nas seguintes, porque o derretimento das grandes massas geladas está em óbvia aceleração e expansão. Satélites da NASA detetaram em 2012 que a superfície em que se verificava o derretimento do manto de gelo da Gronelândia tinha passado dos habituais 40% durante os meses de verão para uns surpreendentes 97% em apenas alguns dias, devido a uma vaga de calor na atmosfera, e os cientistas foram forçados a concluir que a repetição de fenómenos deste género poderia levar a um rápido degelo total. Longe fique o agoiro: se todo o manto de gelo da Gronelândia, que cobre aproximadamente 80% do seu território, derretesse completamente, isso faria aumentar o nível dos mares em mais de sete metros. Mas não indo tão longe, se derretesse apenas um sétimo dessa enorme massa gelada, a subida das águas seria aproximadamente de um metro, inundando a maioria das cidades costeiras do mundo e implicando a perda de grandes quantidades de território litoral em todos os continentes, assim como o desaparecimento de inúmeras ilhas. Pensar que isso só possa acontecer gradualmente e ao longo de várias décadas é uma ingenuidade demasiado perigosa. E também o é imaginar o derretimento parcial da Gronelândia como um fenómeno isolado, esquecendo a contribuição do degelo simultâneo noutras massas geladas do planeta.

Alguns estudos climáticos indicam que o Ártico poderá ficar sem gelo até 2035, devido à subida das temperaturas na região. Uma das consequências mais temidas é o derretimento do chamado “permafrost”, uma vasta quantidade de solo que passa todo o ano congelado e que cobre 25% da superfície terrestre do Hemisfério Norte, sobretudo no Canadá, Gronelândia e Rússia, mas também na Noruega e no Alasca. Ele abriga no seu interior dióxido de carbono, metano e mercúrio tóxico, além de ser um reservatório de vírus e bactérias com os quais a humanidade recente nunca teve contacto e contra os quais muito provavelmente não tem imunidade.

O “permafrost” é constituído por uma mistura de terra, gelo e rochas permanentemente congelados, constituindo uma camada que é recoberta por uma outra de gelo e neve que no inverno chega a atingir 300 metros de profundidade em alguns locais, mas que ao derreter-se no verão se reduz para uma espessura de 0,5 a 2 metros apenas (tornando a superfície do solo pantanosa, uma vez que as águas superficiais não são absorvidas pelo solo congelado, o que faz diminuir a sua capacidade de reflexão solar). Este solo congelado é rico em material orgânico que se decompõe lentamente; mas quando o “permafrost” derrete, bactérias e fungos decompõem o carbono contido na matéria orgânica muito mais rapidamente, libertando-o na atmosfera como dióxido de carbono ou metano, ambos gases com efeito de estufa. E os cientistas descrevem um círculo vicioso: os gases emitidos pelo “permafrost” aceleram o aquecimento global, que por sua vez acelera o derretimento do “permafrost”. Em linguagem comum, é um “efeito bola de neve”.

De acordo com um estudo recente, só o “permafrost” no Hemisfério Norte contém mais do dobro da quantidade de carbono já existente na atmosfera, e o seu rápido degelo pode torná-lo um contribuinte significativo para a mudança climática global. A quantidade de dióxido de carbono e metano que poderá adicionar à atmosfera depende da rapidez com que descongela, mas há evidências de que uma série de verões anormalmente quentes estão a acelerar bastante o seu degelo e a desbastar drasticamente as camadas superiores de gigantescos blocos de gelo subterrâneos que estiveram solidamente congelados durante milénios. Em vastas porções de território gelado, pode levar tempo até que em muitos locais seja atingido o ponto de descongelação, mas onde este for atingido, a descongelação em si mesma é um fenómeno rápido e, quase poderíamos dizer, abrupto, que não encaixa na nossa noção de algo progressivo ou gradual.

Imaginemos um bloco de gelo marinho à temperatura inicial de -25ºC. Se a temperatura envolvente subir ou oscilar, durante muito tempo aparentemente nada se passa até ser atingido o ponto de descongelação, que no caso do gelo marinho é de cerca de -2ºC (um pouco mais baixo do que para o gelo “puro”, devido à quantidade de sais dissolvidos, o que o torna ainda mais vulnerável). Mas ao ser atingido o ponto de descongelação, por mais tempo que tenha decorrido e por mais oscilações térmicas que tenham entretanto acontecido, o gelo descongela mesmo e tanto mais depressa quanto mais elevada for a temperatura envolvente. Aliás, sabemos por experiência e pelas leis da física que outras alterações de estado da matéria também acontecem de modo mais ou menos abrupto: quando pomos uma cafeteira de água a aquecer, temos de esperar algum tempo até a temperatura subir o suficiente, e esse aquecimento pode-nos parecer lento e gradual, mas quando são atingidos os 100ºC a água começa imediatamente a ferver e a evaporar-se e, por mais que façamos, já não conseguimos devolver o vapor à cafeteira… Isto pode ser simples de entender, mas em condições naturais as coisas são um pouco mais complexas e, por isso, menos previsíveis.

O facto de o “permafrost” ser composto por diversos materiais, com diferentes pontos de congelação e diferentes graus de coesão, pode torná-lo mais vulnerável a desagregação e fissuras do que as grandes massas homogéneas de gelo, aumentando muito o seu grau de exposição e o seu potencial de erosão, e fazendo com que o seu derretimento seja bastante mais acelerado do que o inicialmente previsto. De um modo geral, o aumento da irregularidade do relevo e o aumento do número de falhas nestes solos constitui um acréscimo de vulnerabilidade ao degelo – e isso está a acontecer a um ritmo alarmante, em grande parte da zona ártica. Paradoxalmente, em vez de se preocuparem com esse fenómeno e outros relacionados, muitos dirigentes políticos da região estão empenhadamente a analisar como retirar do degelo do Ártico vantagens para a navegação comercial e para a criação de novos portos, sem perceberem a extensão da ameaça ou o real alcance do problema.

Algo está a mudar rapidamente e a magnitude real das consequências é imprevisível. O afluxo aos oceanos de anormais quantidades de água resultantes do degelo estival cada vez mais intenso não só faz subir o nível das águas e o impacto das marés, como aumenta o potencial destruidor destas e das tempestades costeiras, para já não falar do de eventuais tsunamis, que fustigam com frequência irregular algumas regiões do planeta. Por outro lado, é bastante provável que esse considerável afluxo de água aos oceanos possa provocar alterações na temperatura ou no trajeto das correntes oceânicas, causando assim impactos acrescidos em diversos climas regionais, afetando a sua biodiversidade e a sua economia. Consequências verdadeiramente dramáticas poderão ocorrer em poucos anos. Acontecimentos e transformações que durante muito tempo pareceram que só iriam ocorrer gradualmente podem precipitar-se de repente e subverter por completo quaisquer cálculos e expectativas anteriores.

O derretimento acelerado do “permafrost”, por exemplo, representa um enorme risco sanitário. Muitos cientistas consideram que nesses solos congelados podem estar aprisionados vírus e bactérias associados a doenças do passado, algumas completamente desconhecidas, outras aparentemente extintas. A probabilidade de uma pandemia mortífera não é negligenciável, mesmo com os meios atuais da medicina. A humanidade está ainda a experienciar os efeitos disruptivos de uma pandemia relativamente benigna, cuja taxa média de mortalidade é de apenas 2% em relação ao total de infetados conhecidos não vacinados (se considerarmos o número real de infetados, incluindo os assintomáticos e os não diagnosticados, a taxa de mortalidade é ainda menor). Mas não muito distante no tempo, a peste negra do século XIV vitimou mais de metade da população europeia, que era então muitíssimo mais dispersa e rural do que agora. Imagine-se o que poderia acontecer atualmente com qualquer micro-organismo igualmente mortífero, ou até menos, com a concentração urbana, a densidade populacional, a facilidade e a rapidez dos transportes nos tempos de hoje.

A simples deslocação das zonas climáticas ou a alteração dos seus padrões habituais de temperatura e pluviosidade podem também ter repercussões para além do imaginável. Culturas tradicionais de subsistência podem tornar-se inviáveis, boa parte da fauna e flora de cada região afetada pode não conseguir sobreviver às alterações, ecossistemas inteiros podem ser destruídos, as atividades económicas podem sofrer abalos e estrangulamentos de grande magnitude, a escassez alimentar e de outros produtos essenciais pode vir a instalar-se com regularidade, certas fontes de rendimento podem desaparecer por completo, guerras civis e tumultos urbanos podem eclodir, doenças transmissíveis de outras latitudes podem encontrar novas zonas de implantação. Resta acrescentar que estes cenários são, todos eles, de elevada probabilidade e não um mero exercício de imaginação.

E com uma agravante: o aquecimento global não vai ser uniformemente distribuído por todo o planeta, ao contrário do que muitos tendem a acreditar. Assistiremos com frequência crescente a uma intensificação de fenómenos climatéricos extremos, com grandes vagas de calor ou de frio gélido, algumas delas em regiões onde não eram de todo habituais ou sequer expectáveis. O calor tórrido e o frio polar poderão no futuro surgir onde menos se espere, devido a drásticas alterações das correntes atmosféricas, e chuvas diluvianas poderão desabar em locais que eram de pluviosidade moderada. Estamos a habituar-nos a ondas de calor sufocante em países setentrionais, a grandes incêndios florestais nos EUA e até no Canadá, na Suécia e na Sibéria, e a zona mediterrânica está a tornar-se cronicamente um grande inferno estival. Inicialmente, pensou-se que regiões que já eram quentes tenderiam a tornar-se mais quentes e regiões habitualmente frias poderiam tornar-se ainda mais frias, mas essa previsão falhou parcialmente, pois fenómenos extremos de temperatura e pluviosidade parecem agora fugir a toda a lógica e a todos os modelos de previsão, surgindo quase em qualquer parte sem se fazer anunciar. Chuvas diluvianas caíram recentemente em locais tão díspares como a Alemanha e países limítrofes, Turquia, China, Japão, Nigéria, Filipinas, e nos últimos anos desabaram também sobre a Índia, Bangladesh, Irão, Indonésia, Moçambique e África do Sul, entre outros lugares. O clima parece descontrolado em quase toda a parte e, acompanhando esta tendência global, as zonas que eram de climas temperados parecem estar em vias de deixar de o ser. As próprias estações do ano estão a fugir aos padrões habituais, quer em sequência quer em duração, e nalgumas regiões estão a ficar irreconhecíveis. Escusado será frisar quanto tudo isto pode afetar inúmeras atividades económicas em cada país (incluindo a destruição de solos e culturas), causar danos em edifícios e infraestruturas ou dificultar a mobilidade geográfica, um dos componentes fundamentais da vida moderna.

O que pudemos observar nos últimos anos aponta para duas conclusões inevitáveis: enquanto durante muito tempo andámos a temer sobretudo a gradual elevação do nível das águas do mar e as suas possíveis consequências nas zonas litorais, estamos agora confrontados com a perigosidade bem mais imediata e igualmente destruidora de chuvas diluvianas e cheias de proporções bíblicas, que podem ocorrer de súbito e quase em qualquer lugar, bem no interior dos continentes; e enquanto muitos analistas e dirigentes traçaram cenários que previam aumentos relativamente moderados da temperatura global ao longo das próximas décadas, estamos de facto perante grandes disparidades no agravamento das temperaturas médias, que nalgumas zonas do globo está a ser bem mais intenso e rápido do que se previra, e atónitos com o surgimento de vagas de calor infernais nas regiões mais improváveis, capazes de pôr em causa, pelas suas consequências, até a razoabilidade dos cenários mais pessimistas. O Ártico, por exemplo, está a aquecer três vezes mais depressa que o resto do planeta e os seus invernos são cada vez mais quentes, prejudicando a formação dos gelos, ao passo que no resto do ano os incêndios florestais são cada vez mais frequentes e intensos e a extensão do degelo cada vez maior.

Enquanto a temperatura média da Terra subiu cerca de 1ºC desde a era pré-industrial até ao virar do milénio, a partir deste e até ao final da presente década ter-se-á agravado em mais 0,5ºC, atingindo vinte anos antes do previsto o limite de 1,5º C que o Acordo de Paris de 2015 tinha proposto como meta aos países participantes. Isso significa, em termos aproximados, que o ritmo de agravamento do aquecimento triplicou desde o já obsoleto Protocolo de Quioto de 1997. Não obstante toda a retórica política e um manancial de boas intenções anunciadas, a verdade é que mais de metade do dióxido de carbono lançado para a atmosfera pela queima de combustíveis fósseis foi emitido apenas nas últimas três décadas. E em vez de ir diminuindo, como seria suposto pela aplicação de políticas restritivas, desde 1990 a 2020 as emissões globais anuais de gases com efeito de estufa cresceram 41% e ainda estão a aumentar a cada ano que passa. Isso mostra bem que as grandes ameaças iminentes continuam a não ser levadas suficientemente a sério, apesar de todo o alarido mediático e ideológico.

Entretanto, obediente apenas às leis da natureza e alheio aos esforços diplomáticos, o planeta vai aquecendo mais. E em consequência da distribuição desigual do aumento médio da temperatura, alguns locais do mundo estão a aquecer bem mais rapidamente do que outros. Em breve, muitos deles ficarão inabitáveis ou sofrerão golpes severos nos seus tradicionais meios de subsistência. As consequências são dificilmente previsíveis na sua magnitude, mas uma delas é certa: o surgimento de vagas crescentes de refugiados climáticos, em busca da sobrevivência ou de uma vida melhor, fugindo ao calor intenso, à desertificação, às inundações, à fome ou à violência gerada pela escassez de recursos. Até meados deste século, poderão ser centenas de milhões. Resta saber quem terá capacidade e disposição para os acolher, num mundo repleto de conflitos étnicos e identitários e onde as migrações são já um dos mais importantes fatores de conflitualidade civil (e mesmo, nalguns casos, diplomática ou militar). As misturas raciais e étnicas, os choques culturais e religiosos, as divisões linguísticas e os costumes quotidianos, bem como as notórias dificuldades de integração plena dos imigrantes (que, em muitos casos, não querem ser assimilados) estão a pôr em ebulição inúmeras sociedades por esse mundo fora. Um aumento considerável da pressão migratória, mesmo que desencadeado por situações de crise humanitária, não augura nada de bom. Além de termos de enfrentar a violência desmedida do clima, tudo faz prever que tenhamos também pela frente décadas de convulsão social e a proliferação de tumultos civis. Como diz a sabedoria popular, uma tragédia nunca vem só.

1 comentário:

  1. É preciso é mostrar como travar estes cenários.
    https://edition.cnn.com/interactive/2019/04/specials/climate-change-solutions-quiz/

    Project drawdown é o grupo que vejo abordar a questão com mais rigor e seriedade:
    https://www.drawdown.org/solutions-summary-by-rank

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