sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

O fraco entendimento da economia

Está a tornar-se demasiado evidente que o governo não tem, nem sequer aproximadamente, a noção da hecatombe que está prestes a provocar na economia. Os ministros responsáveis parecem comportar-se como se acreditassem que, debelada ou controlada a pandemia, uma rápida retoma acontecerá. Mas não vai acontecer. Nem em V, nem em U, nem em qualquer outra forma simétrica. 

Destruir é muito mais fácil e rápido do que reconstruir, como todas as guerras provam, e esta não será excepção. Muitas empresas irão desaparecer para sempre, muitos empresários ficarão insolventes ou descapitalizados e incapazes de retomar actividade, muitos outros já não terão confiança ou ânimo ou idade para o fazer, e muitas das cadeias de produção e abastecimento que existiam irão romper-se ou enfraquecer. Como em qualquer cadeia alimentar no mundo animal, passe a analogia, também no mundo económico as perturbações nas cadeias de transmissão de bens e serviços se repercutem a montante e a jusante.

De facto, é perigoso julgar que restrições prolongadas impostas a qualquer sector não irão provocar-lhe danos potencialmente irreversíveis ou que irão afectá-lo só a ele. E não é apenas por causa do risco de falências e despedimentos em massa. A descapitalização das empresas tem geralmente efeitos negativos duradouros no investimento e no emprego, e desse modo acaba por repercutir-se em várias direcções.

Quando um sector económico entra em declínio, ele põe também em xeque toda a sua cadeia de fornecedores, a não ser que isso seja compensado por outros sectores em expansão. E se não for? E se houver vários outros sectores em declínio mais ou menos simultâneo? Ao gerar menos rendimento (em lucros, dividendos e salários), esta conjunção negativa também irá induzir menos despesa, reduzindo outros fluxos económicos e pressionando no sentido da deflação (uma perigosa baixa generalizada de preços, por insuficiência da procura). Para além de certos limites, a forte contracção económica pode até desencadear um efeito “bola de neve”, provocando uma recessão ainda mais severa ou mesmo uma depressão.

Ora, com uma pandemia em curso, o cenário já era terrivelmente negativo à partida, apenas com a redução da mobilidade e do turismo e com o confinamento voluntário de muitas pessoas. Num tal pano de fundo, decisões políticas desastradas podem vir a ser fatais para muitos empregos, empresas e áreas de negócio, para já não falar da dramática perda de receitas fiscais pelo próprio Estado (outro pesadelo cujas consequências se irão também abater em breve sobre os contribuintes e os serviços públicos).

Poucos são os políticos que compreendem o “efeito multiplicador” das decisões que tomam sobre a economia. Quando são efectuadas despesas pelos agentes económicos, elas geram rendimentos que vão sustentar outras despesas por parte de quem os auferiu, e assim sucessivamente. Portanto, cada euro gasto gera muito mais do que isso em actividade económica. Mas quando as coisas sucedem ao contrário e os rendimentos se contraem, passando a sustentar menos despesas de investimento ou de consumo, o “efeito multiplicador” também actua, mas em sentido inverso (por isso, há economistas que preferem chamar-lhe “efeito desmultiplicador”, o que talvez seja mais apropriado). Em tais circunstâncias, cada euro gasto a menos reduz em muito mais do que isso a actividade económica, o que, em larga escala, pode ter graves consequências. Por conseguinte, quando as decisões políticas fazem contrair ainda mais os rendimentos e as despesas em ambiente de recessão, nunca se sabe ao certo onde e quando esta irá parar mas o prognóstico não é risonho.

Uma quase imediata recessão veio naturalmente em consequência da pandemia. Desde o início dela se percebeu que iria afectar gravemente a economia, mesmo sem quaisquer decisões do governo. Mas muitas das que têm sido tomadas, umas por necessidade, outras por improviso, outras por desnorte, tendem a reforçar bastante a tendência recessiva. Em breve saberemos aonde este declive acentuado nos irá levar, mas preparem-se para algo desagradável.

Entretanto, seria bom que alguém conseguisse explicar ao governo quão perigoso é continuar a pressionar tanto com o joelho o já debilitado pescoço da economia…

domingo, 13 de dezembro de 2020

(COVID-19:) Escolher entre o risco e o colapso

Estamos bem pior do que nos dizem. Não estamos literalmente entre a espada e a parede, mas é algo parecido: estamos condenados a escolher entre a saúde e a economia, ou pondo as coisas do avesso, entre a doença e o empobrecimento. Essa escolha nem sequer é em alternativa, é apenas uma questão de dosagem, porque nada nos salvará, colectivamente falando, de continuar por mais algum tempo a ter ambas em simultâneo. Podemos é precipitar mais os acontecimentos num sentido ou no outro.

Essa escolha tem como um dos seus principais efeitos dividir o país. A parte da população que tem rendimentos garantidos, com todo o pessoal político e o funcionalismo público à cabeça, tenderá naturalmente a dar prioridade à questão sanitária e será mais favorável a medidas severas de contenção ou confinamento. Todos os outros, que são mais vulneráveis nos seus rendimentos e que, para os manter em nível suficiente, dependem largamente do estado de saúde das empresas e negócios em que trabalham, tenderão a dar prioridade à questão económica, aceitando um nível maior de exposição e de risco. Para ambas as partes, são importantes a segurança e a subsistência, mas cada uma tenderá a querer proteger mais o flanco onde se sente mais vulnerável.

É portanto previsível que, à medida que a situação se arrasta, vá alastrando uma espécie de guerra civil na opinião pública e na opinião publicada, uns pugnando por restrições mais severas destinadas a conter a pandemia, outros defendendo que se está a tornar muito mais lesiva a cura do que a doença. Para aqueles que já vão tendo dificuldades em pôr comida na mesa e pagar as contas, não há grandes dúvidas: é preferível o risco ao colapso. E haverá cada vez menos tolerância para que alguém lhes imponha a escolha contrária. Esperemos que não haja demasiada gente a entrar em desespero, ou as coisas podem complicar-se nas ruas.

Não é nada fácil ser governante nos dias que correm. Mais difícil ainda se torna a tarefa se, por ignorância ou precipitação, se cometem erros sucessivos, indo ao sabor da corrente, ou desleixos graves, por manifesta imprevidência. Pior ainda se, por teimosia política, não se substituem os responsáveis que demonstraram incompetência. Mas onde se começa a desafiar o destino é quando se aceita que a demagogia se sobreponha à realidade e, principalmente, às necessidades que esta dita. E é isso que já está a acontecer.

Para começar, não nos dizem toda a verdade, nem sobre a evolução previsível da pandemia, nem sobre o inevitável afundanço da actividade económica num futuro próximo. E sempre que conveniente, mentem-nos despudoradamente. Na inconsistente tentativa de evitar o medo ou o descontentamento, não se preparam as pessoas para o pior nem se recomendam precauções financeiras. E chega-se até ao ponto de fazer publicidade enganosa nos anunciados apoios públicos às empresas em dificuldades.

Como se não bastasse, impõem-se a muitas actividades económicas restrições incomportáveis e onde por vezes falta racionalidade. De que serve encurtarem-se os horários do comércio, se depois os clientes vão aglomerar-se muito mais a fazer as suas compras nesses horários reduzidos? Por que se fecham parques e ginásios, se continuam abertas todas as escolas e universidades, onde a acumulação de gente é muito maior? Por que não deixam os restaurantes trabalhar mais livremente com as regras sanitárias estabelecidas, se afinal não há grandes alternativas para quem tem de andar quotidianamente em transportes públicos apinhados? Por que se restringe tanto a circulação na rua em certos períodos, mesmo usando máscara e viseira, se para muita gente pode ser maior o risco de contaminação em casa, onde quase ninguém usa viseira nem máscara? Qual a razão de confinamentos tão drásticos, se não tem sido possível evitar surtos alargados nem sequer onde as pessoas vivem mais confinadas, como nos lares de idosos e nas prisões? Muita gente não consegue perceber a lógica disto e, aliás, ainda ninguém conseguiu explicá-la bem.

Mais lamentável do que isso: os dirigentes políticos revelam um considerável desnorte, actuando com sucessivos avanços e recuos, ora dizendo e fazendo uma coisa, ora o seu contrário. Já se percebeu que não estão, de modo nenhum, capacitados para conduzir-nos nesta adversidade. Limitam-se, pois, a fazer o que está ao seu alcance: tentar apaziguar a população, limitar os danos políticos e salvar as carreiras.

Desde o início, a gestão desta crise tem sido desastrada. Se não houver mais bom senso nas decisões políticas, tornar-se-á desastrosa. E é para lá que caminhamos. O fraco entendimento dos mecanismos da economia, tão usual nos governos de esquerda ou de centro-esquerda, tem feito com que se decretem medidas excessivas, cujos efeitos já estão a ser tremendos e que se tornarão em breve devastadores.

Porém, de que servem os numerosos alertas para políticos impreparados que não são capazes de antecipar as prováveis consequências do que decidem? Como persuadi-los de que estão a ir longe demais nas restrições económicas que arbitrariamente impõem e que a fatura a pagar vai ser demasiado pesada para o país (ou, pelo menos, para metade dele)? Nada os demove, a não ser as sondagens e a pressão mediática. Como explicar-lhes, de maneira que eles entendam, que não se pode asfixiar a economia por causa da questão sanitária? Se nada se fizesse, esta pandemia poderia ser fatal para cerca de dois por cento da população; fazendo demais, o colapso económico poderá vir a ser fatal para muito mais gente e sob várias formas. Será assim tão difícil encontrar um meio-termo equilibrado, sem relaxamentos nem garrotes?

Pecar por excesso pode ser tão mau como pecar por defeito. Ou até pior. Entre as duas opções, venha o diabo e escolha. Mas quem começou por pecar por defeito e acaba a pecar por excesso, como este governo tem feito, peca duplamente. O castigo do inferno, no entanto, talvez venha a ficar apenas para os governados, ou mais exactamente, para aquela metade deles que não vive à sombra do Estado.

sábado, 12 de dezembro de 2020

COVID-19: Escolher entre o risco e o colapso

Estamos bem pior do que nos dizem. Não estamos literalmente entre a espada e a parede, mas é algo parecido: estamos condenados a escolher entre a saúde e a economia, ou pondo as coisas do avesso, entre a doença e o empobrecimento. Essa escolha nem sequer é em alternativa, é apenas uma questão de dosagem, porque nada nos salvará, colectivamente falando, de continuar por mais algum tempo a ter ambas em simultâneo. Podemos é precipitar mais os acontecimentos num sentido ou no outro.

Essa escolha tem como um dos seus principais efeitos dividir o país. A parte da população que tem rendimentos garantidos, com todo o pessoal político e o funcionalismo público à cabeça, tenderá naturalmente a dar prioridade à questão sanitária e será mais favorável a medidas severas de contenção ou confinamento. Todos os outros, que são mais vulneráveis nos seus rendimentos e que, para os manter em nível suficiente, dependem largamente do estado de saúde das empresas e negócios em que trabalham, tenderão a dar prioridade à questão económica, aceitando um nível maior de exposição e de risco. Para ambas as partes, são importantes a segurança e a subsistência, mas cada uma tenderá a querer proteger mais o flanco onde se sente mais vulnerável.

É portanto previsível que, à medida que a situação se arrasta, vá alastrando uma espécie de guerra civil na opinião pública e na opinião publicada, uns pugnando por restrições mais severas destinadas a conter a pandemia, outros defendendo que se está a tornar muito mais lesiva a cura do que a doença. Para aqueles que já vão tendo dificuldades em pôr comida na mesa e pagar as contas, não há grandes dúvidas: é preferível o risco ao colapso. E haverá cada vez menos tolerância para que alguém lhes imponha a escolha contrária. Esperemos que não haja demasiada gente a entrar em desespero, ou as coisas podem complicar-se nas ruas.

Não é nada fácil ser governante nos dias que correm. Mais difícil ainda se torna a tarefa se, por ignorância ou precipitação, se cometem erros sucessivos, indo ao sabor da corrente, ou desleixos graves, por manifesta imprevidência. Pior ainda se, por teimosia política, não se substituem os responsáveis que demonstraram incompetência. Mas onde se começa a desafiar o destino é quando se aceita que a demagogia se sobreponha à realidade e, principalmente, às necessidades que esta dita. E é isso que já está a acontecer.

Para começar, não nos dizem toda a verdade, nem sobre a evolução previsível da pandemia, nem sobre o inevitável afundanço da actividade económica num futuro próximo. E sempre que conveniente, mentem-nos despudoradamente. Na inconsistente tentativa de evitar o medo ou o descontentamento, não se preparam as pessoas para o pior nem se recomendam precauções financeiras. E chega-se até ao ponto de fazer publicidade enganosa nos anunciados apoios públicos às empresas em dificuldades.

Como se não bastasse, impõem-se a muitas actividades económicas restrições incomportáveis e onde por vezes falta racionalidade. De que serve encurtarem-se os horários do comércio, se depois os clientes vão aglomerar-se muito mais a fazer as suas compras nesses horários reduzidos? Por que se fecham parques e ginásios, se continuam abertas todas as escolas e universidades, onde a acumulação de gente é muito maior? Por que não deixam os restaurantes trabalhar mais livremente com as regras sanitárias estabelecidas, se afinal não há grandes alternativas para quem tem de andar quotidianamente em transportes públicos apinhados? Por que se restringe tanto a circulação na rua em certos períodos, mesmo usando máscara e viseira, se para muita gente pode ser maior o risco de contaminação em casa, onde quase ninguém usa viseira nem máscara? Qual a razão de confinamentos tão drásticos, se não tem sido possível evitar surtos alargados nem sequer onde as pessoas vivem mais confinadas, como nos lares de idosos e nas prisões? Muita gente não consegue perceber a lógica disto e, aliás, ainda ninguém conseguiu explicá-la bem.

Mais lamentável do que isso: os dirigentes políticos revelam um considerável desnorte, actuando com sucessivos avanços e recuos, ora dizendo e fazendo uma coisa, ora o seu contrário. Já se percebeu que não estão, de modo nenhum, capacitados para conduzir-nos nesta adversidade. Limitam-se, pois, a fazer o que está ao seu alcance: tentar apaziguar a população, limitar os danos políticos e salvar as carreiras.

Desde o início, a gestão desta crise tem sido desastrada. Se não houver mais bom senso nas decisões políticas, tornar-se-á desastrosa. E é para lá que caminhamos. O fraco entendimento dos mecanismos da economia, tão usual nos governos de esquerda ou de centro-esquerda, tem feito com que se decretem medidas excessivas, cujos efeitos já estão a ser tremendos e que se tornarão em breve devastadores.

Porém, de que servem os numerosos alertas para políticos impreparados que não são capazes de antecipar as prováveis consequências do que decidem? Como persuadi-los de que estão a ir longe demais nas restrições económicas que arbitrariamente impõem e que a fatura a pagar vai ser demasiado pesada para o país (ou, pelo menos, para metade dele)? Nada os demove, a não ser as sondagens e a pressão mediática. Como explicar-lhes, de maneira que eles entendam, que não se pode asfixiar a economia por causa da questão sanitária? Se nada se fizesse, esta pandemia poderia ser fatal para cerca de dois por cento da população; fazendo demais, o colapso económico poderá vir a ser fatal para muito mais gente e sob várias formas. Será assim tão difícil encontrar um meio-termo equilibrado, sem relaxamentos nem garrotes?

Pecar por excesso pode ser tão mau como pecar por defeito. Ou até pior. Entre as duas opções, venha o diabo e escolha. Mas quem começou por pecar por defeito e acaba a pecar por excesso, como este governo tem feito, peca duplamente. O castigo do inferno, no entanto, talvez venha a ficar apenas para os governados, ou mais exactamente, para aquela metade deles que não vive à sombra do Estado.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Como tem sido a gestão da pandemia? Boa ou má?

Não hesito em dizê-lo: péssima. E por que se pode dizer isto? Se formos capazes de examinar o assunto sem antolhos partidários, não é difícil descobrir a imprevidência, a falta de estratégia e planeamento, a escassa capacidade organizativa, a cegueira ideológica, o espírito tribal e até mesmo a insensibilidade social com que o combate à pandemia tem sido conduzido. Eu explico.

A imprevidência. Começou com a desvalorização inicial da pandemia antes de ela cá chegar, a insuficiente provisão de materiais sanitários e de protecção para enfrentá-la, a deficiente preparação da assistência clínica que viria a ser necessária quando chegasse. Ainda nos lembramos que, quando surgiram os primeiros casos suspeitos, quase ninguém (incluindo o INEM e a esmagadora maioria dos profissionais de saúde) tinha ainda recebido instruções sobre o que deveria fazer. Não se tomaram medidas especiais de protecção àqueles que já então se sabia serem os grupos de maior risco (os imunodeprimidos, certos doentes crónicos e os idosos). Não se apertou a fiscalização nos lares de terceira idade nem se montaram a tempo os procedimentos adequados. Não se reorganizaram as unidades hospitalares para poderem continuar a acolher todas as patologias. Durante várias semanas, nem sequer se fez qualquer controlo sanitário nas fronteiras e nos aeroportos. E mais recentemente, a mesma imprevidência voltou a dar nas vistas com o aparecimento da segunda vaga. Embora soubesse que ela viria, o governo pouco ou nada preveniu a tempo, nem sequer a necessária articulação com os hospitais privados para quando a capacidade de internamento do SNS se esgotasse. É nessa situação que estamos ainda hoje, agravada por uma deficiente provisão de vacinas para a gripe sazonal, pois que o ministério responsável não procurou sequer satisfazer as encomendas das farmácias e a maior procura previsível, e quando vier o frio a sério, esse desleixo irá congestionar ainda mais o atendimento nas unidades de saúde.

A falta de estratégia e de planeamento. Manifestou-se logo, por exemplo, com o primeiro estado de emergência, precipitado e excessivamente rigoroso, promovido por um Presidente confessadamente hipocondríaco quando ainda só havia umas escassas dezenas de casos, um único óbito e pouquíssimos concelhos afectados. Decretou-se de imediato um confinamento geral ainda então desnecessário, prematuro, sem qualquer segmentação etária ou geográfica e com exageradíssima limitação das actividades económicas. Resultado: em termos financeiros, com o suporte às políticas de lay-off postas em prática, o Estado gastou a maior parte das munições antes do tempo, quando o inimigo ainda mal acabara de surgir no horizonte e antes de a grande batalha começar. Agora que começou, tem poucos meios para a travar. A situação está indubitavelmente muito pior, mas há muito menos recursos orçamentais.

A escassa capacidade organizativa. Desde a pouca fiabilidade das estatísticas oficiais, resultante da deficiente recolha e tratamento de dados, até ao descalabro que tem sido a assistência a todas as doenças não-covid, provocando uma mortalidade colateral pior que a da própria pandemia, muita coisa revelou a lamentável incapacidade dos responsáveis políticos e dos organismos governamentais para organizar e estruturar soluções. Acrescente-se ainda o atraso na organização logística da distribuição e administração das vacinas, a falta de coordenação inter-hospitalar na distribuição e transferência de doentes, a má administração dos recursos humanos que se tem traduzido na escassez de médicos e enfermeiros e no seu esgotamento físico, a balbúrdia em que se tornou o atendimento em muitos centros de saúde, a ineficiência no funcionamento de inúmeros serviços públicos (incluindo a máquina fiscal e a segurança social), até mesmo a falta de fiscalização que se traduz no aproveitamento abusivo dos subsídios por muitos oportunistas consentidos (incluindo os que recorrem aos apoios sociais apesar de manterem actividades profissionais plenamente remuneradas, mas não declaradas).

A cegueira ideológica. Manifestou-se cedo na recusa obstinada em articular os recursos do SNS com os das clínicas e hospitais privados e, mais recentemente, na recusa persistente de articular com as farmácias a distribuição e administração das vacinas anti-covid, apenas (ou sobretudo) por causa da preocupação obsessiva de não dar dinheiro a ganhar aos privados, por muito que isso se traduza em perda de eficiência e de vidas. E havendo tantos milhões de pessoas a vacinar, ao longo de meses, sem a colaboração das farmácias será inevitável que a administração das vacinas seja muito mais lenta e penosa para os utentes, e demasiado tardia para muitos deles. Eis como o dogmatismo deita por terra o humanismo.

O espírito tribal. Podemos detectá-lo no modo como o governo, mesmo numa situação inusitada de emergência e de crise, mantém completamente protegidos e intocados os rendimentos das clientelas políticas de onde mais espera obter votos no futuro (pessoal político, funcionalismo público, professores, pensionistas, et cetera) e deixa tendencionalmente ao abandono ou em agonia, por insuficiência de recursos, profissões e sectores inteiros de actividade de cariz privado (gestores, empresários em nome individual, senhorios, trabalhadores por conta própria, profissões liberais, bem como os sectores da restauração, da hotelaria, da cultura e do entretenimento), como se estes devessem ficar por sua conta e risco, pagando desse modo o preço de serem independentes do Estado. Mas na verdade, a partir do momento em que o Estado se intrometeu na sua actividade com restrições e confinamentos arbitrários, deixaram de o ser. Não obstante, continuam a sofrer da discriminação entre o público e o privado. Apesar da escassez de recursos financeiros, só este último está a sofrer economicamente com a crise. E os apoios que lhe são disponibilizados, quando o são, vêm maioritariamente na forma de linhas de crédito, o que significa acumular às dívidas e aos prejuízos ainda mais dívida e mais risco de insolvência.

A insensibilidade social. Sim, manifesta-se também na desprotecção a que têm sido votadas as profissões e actividades que não sejam por conta de outrem. As hostes socialistas sempre abominaram a iniciativa privada e agora penalizam-na deliberadamente ou de modo negligente, indiferentes ao sofrimento que provoquem e ao estertor económico que daí resulte. Diversos sectores forçados a parar ou reduzir actividade não têm sido apoiados, algumas actividades são intencionalmente desprezadas ou desfavorecidas e, como prova maior da insensibilidade aos danos pessoais que a má gestão da pandemia tem provocado, tem-se feito vista grossa às muitas falências iminentes e nem sequer as pessoas desesperadas em greve de fome são facilmente recebidas para uma simples reunião pelo ministério da tutela. O governo, fiel à sua linha ideológica, tem procurado defender o emprego assalariado, mas não o auto-emprego, não os donos das pequenas e microempresas que compõem uma percentagem considerável da economia real. Dito de outro modo: tem procurado proteger o emprego assalariado, não os negócios que o geram, cujos custos estão muito longe de ser apenas os do trabalho.

Tudo somado, temos aqui a tradicional gestão socialista no seu melhor: irrealismo, improviso, descoordenação, enviesamento ideológico, remediar em vez de prevenir. No seu pior, já sabemos sobejamente quantas economias conduziu ao colapso por esse mundo fora, ao longo de várias gerações, na tentativa insana e inglória de construir utopias que não levam em conta a "natureza humana" (seja lá ela o que for).

sábado, 5 de dezembro de 2020

COVID-19: A péssima gestão da pandemia

Não hesito em dizê-lo: péssima. E por que se pode dizer isto? Se formos capazes de examinar o assunto sem antolhos partidários, não é difícil descobrir a imprevidência, a falta de estratégia e planeamento, a escassa capacidade organizativa, a cegueira ideológica, o espírito tribal e até mesmo a insensibilidade social com que o combate à pandemia tem sido conduzido. Eu explico.

A imprevidência. Começou com a desvalorização inicial da pandemia antes de ela cá chegar, a insuficiente provisão de materiais sanitários e de protecção para enfrentá-la, a deficiente preparação da assistência clínica que viria a ser necessária quando chegasse. Ainda nos lembramos que, quando surgiram os primeiros casos suspeitos, quase ninguém (incluindo o INEM e a esmagadora maioria dos profissionais de saúde) tinha ainda recebido instruções sobre o que deveria fazer. Não se tomaram medidas especiais de protecção àqueles que já então se sabia serem os grupos de maior risco (os imunodeprimidos, certos doentes crónicos e os idosos). Não se apertou a fiscalização nos lares de terceira idade nem se montaram a tempo os procedimentos adequados. Não se reorganizaram as unidades hospitalares para poderem continuar a acolher todas as patologias. Durante várias semanas, nem sequer se fez qualquer controlo sanitário nas fronteiras e nos aeroportos. E mais recentemente, a mesma imprevidência voltou a dar nas vistas com o aparecimento da segunda vaga. Embora soubesse que ela viria, o governo pouco ou nada preveniu a tempo, nem sequer a necessária articulação com os hospitais privados para quando a capacidade de internamento do SNS se esgotasse. É nessa situação que estamos ainda hoje, agravada por uma deficiente provisão de vacinas para a gripe sazonal, pois que o ministério responsável não procurou sequer satisfazer as encomendas das farmácias e a maior procura previsível, e quando vier o frio a sério, esse desleixo irá congestionar ainda mais o atendimento nas unidades de saúde.

A falta de estratégia e de planeamento. Manifestou-se logo, por exemplo, com o primeiro estado de emergência, precipitado e excessivamente rigoroso, promovido por um Presidente confessadamente hipocondríaco quando ainda só havia umas escassas dezenas de casos, um único óbito e pouquíssimos concelhos afectados. Decretou-se de imediato um confinamento geral ainda então desnecessário, prematuro, sem qualquer segmentação etária ou geográfica e com exageradíssima limitação das actividades económicas. Resultado: em termos financeiros, com o suporte às políticas de lay-off postas em prática, o Estado gastou a maior parte das munições antes do tempo, quando o inimigo ainda mal acabara de surgir no horizonte e antes de a grande batalha começar. Agora que começou, tem poucos meios para a travar. A situação está indubitavelmente muito pior, mas há muito menos recursos orçamentais.

A escassa capacidade organizativa. Desde a pouca fiabilidade das estatísticas oficiais, resultante da deficiente recolha e tratamento de dados, até ao descalabro que tem sido a assistência a todas as doenças não-covid, provocando uma mortalidade colateral pior que a da própria pandemia, muita coisa revelou a lamentável incapacidade dos responsáveis políticos e dos organismos governamentais para organizar e estruturar soluções. Acrescente-se ainda o atraso na organização logística da distribuição e administração das vacinas, a falta de coordenação inter-hospitalar na distribuição e transferência de doentes, a má administração dos recursos humanos que se tem traduzido na escassez de médicos e enfermeiros e no seu esgotamento físico, a balbúrdia em que se tornou o atendimento em muitos centros de saúde, a ineficiência no funcionamento de inúmeros serviços públicos (incluindo a máquina fiscal e a segurança social), até mesmo a falta de fiscalização que se traduz no aproveitamento abusivo dos subsídios por muitos oportunistas consentidos (incluindo os que recorrem aos apoios sociais apesar de manterem actividades profissionais plenamente remuneradas, mas não declaradas).

A cegueira ideológica. Manifestou-se cedo na recusa obstinada em articular os recursos do SNS com os das clínicas e hospitais privados e, mais recentemente, na recusa persistente de articular com as farmácias a distribuição e administração das vacinas anti-covid, apenas (ou sobretudo) por causa da preocupação obsessiva de não dar dinheiro a ganhar aos privados, por muito que isso se traduza em perda de eficiência e de vidas. E havendo tantos milhões de pessoas a vacinar, ao longo de meses, sem a colaboração das farmácias será inevitável que a administração das vacinas seja muito mais lenta e penosa para os utentes, e demasiado tardia para muitos deles. Eis como o dogmatismo deita por terra o humanismo.

O espírito tribal. Podemos detectá-lo no modo como o governo, mesmo numa situação inusitada de emergência e de crise, mantém completamente protegidos e intocados os rendimentos das clientelas políticas de onde mais espera obter votos no futuro (pessoal político, funcionalismo público, professores, pensionistas, et cetera) e deixa tendencionalmente ao abandono ou em agonia, por insuficiência de recursos, profissões e sectores inteiros de actividade de cariz privado (gestores, empresários em nome individual, senhorios, trabalhadores por conta própria, profissões liberais, bem como os sectores da restauração, da hotelaria, da cultura e do entretenimento), como se estes devessem ficar por sua conta e risco, pagando desse modo o preço de serem independentes do Estado. Mas na verdade, a partir do momento em que o Estado se intrometeu na sua actividade com restrições e confinamentos arbitrários, deixaram de o ser. Não obstante, continuam a sofrer da discriminação entre o público e o privado. Apesar da escassez de recursos financeiros, só este último está a sofrer economicamente com a crise. E os apoios que lhe são disponibilizados, quando o são, vêm maioritariamente na forma de linhas de crédito, o que significa acumular às dívidas e aos prejuízos ainda mais dívida e mais risco de insolvência.

A insensibilidade social. Sim, manifesta-se também na desprotecção a que têm sido votadas as profissões e actividades que não sejam por conta de outrem. As hostes socialistas sempre abominaram a iniciativa privada e agora penalizam-na deliberadamente ou de modo negligente, indiferentes ao sofrimento que provoquem e ao estertor económico que daí resulte. Diversos sectores forçados a parar ou reduzir actividade não têm sido apoiados, algumas actividades são intencionalmente desprezadas ou desfavorecidas e, como prova maior da insensibilidade aos danos pessoais que a má gestão da pandemia tem provocado, tem-se feito vista grossa às muitas falências iminentes e nem sequer as pessoas desesperadas em greve de fome são facilmente recebidas para uma simples reunião pelo ministério da tutela. O governo, fiel à sua linha ideológica, tem procurado defender o emprego assalariado, mas não o auto-emprego, não os donos das pequenas e microempresas que compõem uma percentagem considerável da economia real. Dito de outro modo: tem procurado proteger o emprego assalariado, não os negócios que o geram, cujos custos estão muito longe de ser apenas os do trabalho.

Tudo somado, temos aqui a tradicional gestão socialista no seu melhor: irrealismo, improviso, descoordenação, enviesamento ideológico, remediar em vez de prevenir. No seu pior, já sabemos sobejamente quantas economias conduziu ao colapso por esse mundo fora, ao longo de várias gerações, na tentativa insana e inglória de construir a “sociedade socialista”, a dos amanhãs que deveriam cantar, mas que, muito antes disso, ficaram afónicos ou com a voz rouca… E nem sequer foram necessárias pandemias para ajudar ao descalabro.

sábado, 21 de novembro de 2020

Prisão perpétua: sim ou não?

Comecemos pela geografia do assunto.

A prisão perpétua existe em todos os países da América do Norte (Canadá, Estados Unidos e México), mas em nenhum dos pequenos países da América Central. Nas Caraíbas, existe em Bonaire, Cuba, Guadalupe, Jamaica e Martinica. Na América do Sul, existe na Argentina, Chile e Peru, Guiana e Guiana Francesa.

Contudo, muitos dos países americanos que aboliram a prisão perpétua têm penas máximas de longuíssima duração: 75 anos em El Salvador, 60 anos na Colômbia, 50 anos na Costa Rica e Panamá, 40 anos nas Honduras e no Brasil. Apenas alguns poucos adoptam penas máximas de duração inferior: 30 anos na Bolívia, Nicarágua, Uruguai e Venezuela e 25 anos no Equador e Paraguai.

A prisão perpétua existe também em toda a Ásia, apenas com duas excepções: Mongólia e Timor-Leste (neste último caso, devido à influência cultural portuguesa).

Na Oceania, também a Austrália e a Nova Zelândia a têm.

E existe em toda a África, excepto nos países que foram colónias portuguesas.

Na Europa, existe em mais de trinta países, incluindo a esmagadora maioria dos que formam a União Europeia. Contam-se entre eles alguns dos mais desenvolvidos: Reino Unido, Alemanha, França, Itália, Dinamarca, Suécia, Holanda, Áustria, Luxemburgo, Bélgica, Irlanda e Suíça, por exemplo.

(Uma particularidade interessante: em alguns países europeus e asiáticos de influência russa, a prisão perpétua apenas pode ser imposta a condenados do sexo masculino. Para além da Federação Russa, é o caso da Bielorrússia, Azerbaijão, Cazaquistão e Uzbequistão. E existem também limitações de idade: pelo menos no caso da Federação Russa, os condenados não podem ter menos de 18 nem mais de 65 anos.)

Alguns dos países europeus que aboliram todas as formas de prisão indefinida (incluindo a Espanha) fixaram a pena máxima em 40 anos para cada condenação, o que na prática mantinha a possibilidade de prisão perpétua, por acumulação de condenações. Mais recentemente, em 2015, o Congresso dos Deputados espanhol aprovou um novo Código Penal que, pela primeira vez na história do país vizinho, incluiu a figura da prisão permanente passível de revisão. Embora os opositores falem acintosamente de “uma prisão perpétua disfarçada”, a verdade é que se trata de uma instituição comum em direito comparado. Todos os países da União Europeia, excepto Portugal e Croácia, punem alguns dos crimes mais graves com uma forma de prisão semelhante a esta, embora o tempo previsto até à primeira revisão possa variar (em Espanha, situava-se entre 25 e 35 anos após a sentença; em França, o condenado podia solicitar liberdade condicional a partir de 30 anos cumpridos de pena; na Itália e na Holanda, só após 26 anos e 25 anos, respectivamente).

Um caso de excepção é o da Noruega, que prevê uma modesta pena máxima de 21 anos de prisão (pena essa a que pôde ser condenado um jovem terrorista norueguês que matou 77 pessoas por motivações políticas, o que parece desproporcionado por defeito, pois equivale a apenas 100 dias de prisão por cada um dos homicídios). Contudo, o sistema norueguês permite que ao fim dos 21 anos o recluso veja a sua pena estendida de cinco em cinco anos, se a avaliação dos serviços prisionais sobre a sua reabilitação for negativa. Isto significa que, na prática, pode nunca vir a sair da prisão.

Nos EUA e noutros países de tradição anglo-saxónica, o sistema penal acolhe a prisão perpétua sem possibilidade de liberdade condicional. Na Europa, os únicos países em que a lei previa expressamente penas de prisão perpétua sem possibilidade de liberdade condicional eram a Inglaterra e o País de Gales (no Reino Unido), Holanda, Eslováquia, Bulgária, Itália, Hungria e República da Irlanda.

Chamado a pronunciar-se sobre o assunto em 2013, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos decidiu que a pena de prisão perpétua é válida e não viola nenhum direito fundamental do condenado, mas a punição deve ser revista de tempos a tempos e a necessidade de manter o preso encarcerado deve ser reavaliada depois de ele ter cumprido uma parte da pena. O tempo entre a condenação e a revisão da pena não pode ultrapassar os 25 anos. Isso não significa, no entanto, que o condenado não possa passar o resto da vida na cadeia. O Tribunal explicou, no seu entendimento da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que esta exige apenas a revisão da pena, mas a decisão de libertar ou não o condenado fica a cargo de cada país e depende, entre outras coisas, de se considerar que ele já não representa um risco apreciável para a sociedade.

Uma análise comparativa também revela que o catálogo de crimes em que se aplica a prisão permanente revisível (ou reexaminável) varia bastante: 4 na Holanda, 8 na Espanha, 14 na Áustria, 20 na Alemanha, 22 na Suécia, 26 em França, 30 no Luxemburgo, etc.

A prisão permanente revisível é projetada para casos muito específicos que são considerados extremamente graves e geram um profundo choque e alarme social (os chamados “crimes hediondos”): terrorismo letal, assassínios múltiplos ou cometidos por membros de uma organização criminosa, violações seguidas de assassínio, crimes de genocídio ou contra a humanidade, certos crimes de guerra ou cometidos contra figuras políticas de topo (regicídio, por exemplo) e aqueles em que as vítimas tenham menos de 16 anos ou sejam pessoas especialmente vulneráveis... Postula-se que em todos esses casos uma resposta extraordinária se justifica através da imposição de pena de prisão por tempo indeterminado (prisão permanente), embora sujeita a regime de revisão. Isso significa que após o cumprimento integral de uma parte relevante da sentença, cuja duração depende do número de crimes cometidos e sua natureza, e desde que a reintegração social do condenado tenha sido assegurada, ele pode obter a liberdade condicional, o que não significa necessariamente que venha a obtê-la.

Historicamente, Portugal foi o primeiro a abolir todas as formas de prisão perpétua, em 1884, com a reforma prisional de Sampaio e Melo. No Brasil, o decreto de 1890 que instituiu o Código Penal da  República também aboliu a previsão da prisão perpétua, seis anos depois de Portugal o ter feito. A mesma orientação acabou por ser seguida por todos os actuais países lusófonos. No caso das ex-colónias espanholas, as opções dividiram-se. Mas a possibilidade da prisão perpétua foi amplamente adoptada por quase todos os territórios onde foi predominante a influência cultural inglesa, francesa, alemã, holandesa e belga.

Posto isto, será admissível dizer-se que a readopção da pena perpétua em Portugal seria um retrocesso civilizacional? Claramente, não. As mentalidades e as doutrinas jurídicas evoluem com o tempo, as modas e as necessidades. Mas se há coisa que não podemos dizer é que sejamos culturalmente mais avançados do que países como os Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Alemanha, França, Holanda, Áustria, Suécia, Dinamarca, Luxemburgo, Coreia do Sul, Japão, Austrália ou Nova Zelândia. Ocupamos um modesto trigésimo lugar, mais coisa menos coisa, na escala de desenvolvimento dos países do mundo, o que não nos autoriza a pormo-nos em bicos de pés e alardearmos um avanço civilizacional que, obviamente, não temos. Não podemos pretender ensinar o padre-nosso ao vigário, quanto mais ao padre... Ainda estamos a aprender, a custo, as regras básicas do civismo, da democracia e do Estado de Direito.

A partir daqui, decida. Os indivíduos têm direito inato à vida e à liberdade, mas as comunidades têm direito à paz e à segurança. Quem atenta contra estas, deve pagar o preço devido, tanto mais elevado quanto mais grave a infracção (o chamado “princípio da proporcionalidade”). Mas a partir de certo patamar, esta deixa de ser possível. Como se gradua a pena entre dois homicídios múltiplos, entre um terrorista que mata 77 e outro que mata só metade ou o dobro? E se ela for de prisão perpétua, deverá ser cumprida até ao fim ou poderá ser revista, encurtada e convertida em liberdade condicional? Ou em caso algum deve condenar-se alguém para toda a vida?

Costuma dizer-se que toda a gente merece uma segunda oportunidade. Mas será mesmo razoável e sensato dar uma segunda oportunidade a um terrorista letal ou a um serial killer? Quem nos garante que ele não vai usá-la para fazer algo idêntico ou pior ainda? Eis a questão. A resposta pode depender daquilo que valorizamos mais: se a liberdade do assassino, se a segurança da comunidade. Mas a partir de um certo nível de perigosidade, é loucura deixar sociopatas à solta, como é sobejamente evidente. Que fazer? Esperamos que uma nova tragédia ocorra para julgar e encarcerar de novo o seu autor? Ou aceitamos que o direito à vida e à integridade física de múltiplas pessoas se sobrepõe ao direito à liberdade de um indivíduo comprovadamente perigoso e preocupamo-nos sobretudo com as potenciais vítimas?

A escolha é sua. Mas ao fazê-la, mesmo sem se dar conta, estará a usar uma certa hierarquia pessoal de valores. A liberdade individual e a segurança colectiva são valores. Quando é que um deve ceder ao outro? É um velho dilema. Pode enfrentá-lo dogmaticamente, com princípios rígidos e inflexíveis (imitando a inépcia de muitos políticos e jornalistas), ou adoptar uma atitude intelectualmente mais humilde e, com alguma ponderação casuística, embrenhar-se num misto de regras, variantes e excepções (imitando o trabalho criterioso dos juízes).

Mas se achar o assunto complicado, deixo-lhe um conselho: decida-se pelo bom senso. Em vez do traje de legislador ou de juiz, envergue as roupagens da vítima. Pode ser que isso desempate. Quase sempre, faz-se luz.

sábado, 14 de novembro de 2020

Demagogia, populismo e parvoíce...

Há muito por estes tempos quem se incomode com as novas tendências que vão surgindo na política, quer as que parecem ser ameaças à democracia liberal, quer as que vêm disputar espaços ideológicos que alguns dos velhos partidos tomavam como coutadas suas. Esse incómodo, que amplamente oscila entre a confusa perplexidade e a mais extremada indignação, em muitos casos anda vizinho da mera hipocrisia; mas noutros casos, que merecem ser melhor ponderados, é sobretudo um sinal de incompreensão das mudanças que aí vêm.

Quem ande de olhos abertos neste mundo facilmente percebe que a litigância política e até a própria governação andam há muitas décadas a ser inquinadas pela demagogia institucionalizada. Deturpam-se os factos, viciam-se as interpretações, negam-se as evidências mais óbvias, difama-se sem pejo e insulta-se sem critério, travam-se diálogos de surdos, promete‑se ou anuncia‑se o que não se pode cumprir, violam-se descaradamente os programas eleitorais, a corrupção alastra sob as capas mais convenientes, o indefensável encontra sempre justificações plausíveis, os órgãos do Estado fingem cumprir zelosamente o seu papel e, no fundo, anda quase toda a gente a cuidar sobretudo da sua carreira e dos seus interesses. Até aqui, nada de novo. Já nos habituámos a encarar tudo isto como indissociável do jogo político.

O que constitui novidade é estarem a aparecer ou a medrar novas formas de demagogia que fogem um pouco do formato e da retórica habituais e que disputam votos aos partidos tradicionais. Para se estabelecer uma linha de demarcação, a estas não se chama demagogia, chama-se “populismo”. E na medida do possível, exacerbam-se as diferenças, que afinal não são assim tantas, nem na atitude mental nem nos expedientes. Mas pretende-se que elas nos conduzam à diferenciação subtil entre dois campos. Embora não se possa dizê-lo abertamente nestes termos, é como se tivéssemos uma “demagogia boa” e uma “demagogia má”… No imediato ou a prazo, ambas estão vocacionadas para dar prejuízo, mas infelizmente a percepção geral não é essa.

O extremismo, por exemplo, deveria preocupar-nos a todos, mas há quem só se preocupe consoante a proveniência dele. Como sabemos por muitos exemplos históricos, o extremismo é sempre péssimo. Mas não falta por aí quem rasgue as vestes por haver um deputado dito de extrema-direita e não se incomode nada por haver trinta e um de assumida extrema-esquerda (e mais alguns que disfarçam muito mal…). Há quem fique com os pelos eriçados à mínima afirmação vinda do lado oposto da barricada e dê todo o seu assentimento a qualquer alarvidade vinda do seu próprio lado. E como isto acontece mesmo dentro dos partidos ditos moderados, deveríamos andar todos preocupadíssimos com o extremismo que subrepticiamente se instalou neles também. Toda esta crispação não é um bom caldo de cultura nem pode dar bons resultados.

De resto, o extremismo em si é um fenómeno normal, embora contraproducente. Qualquer sociedade digna e estável tem de assentar em consensos amplos, tão amplos quanto possível, não obstante as clivagens partidárias. Mas haverá sempre alguém para ocupar os lugares menos centrais de qualquer hemiciclo parlamentar. Isso é inevitável e faz parte da democracia. O importante é definir quais são os limites constitucionais do próprio hemiciclo e é óbvio que ele só deveria albergar quem defende o pluralismo ideológico e partidário. É isso que realmente acontece? Sabemos que não.

Há quase cinquenta anos que temos no parlamento acérrimos defensores de regimes de partido único, mas que têm fingido aceitar as regras do jogo democrático, por razões tácticas. Paralelamente, os partidos verdadeiramente pluralistas fingiram todos que acreditavam que os partidos de cariz revolucionário as aceitavam, porque estes poderiam ser bem mais perigosos na clandestinidade e essa era uma forma de os assimilar ou “normalizar”. A realidade, por vezes, tem muita força e obriga-nos a contornar os princípios, mas tomá-la em conta é mais inteligente do que ser dogmático. A cegueira ideológica acaba por dar sempre asneira, mas abunda quem não perceba isso, e as perversões surgem.

Actualmente, à mínima suspeita de vagas simpatias por um Estado mais firme, recebe-se o epíteto de “fascista”, mesmo que não se ponha minimamente em causa o carácter pluralista e multipartidário do regime. Basta apelar a mais autoridade do Estado ou a uma defesa mais conservadora da lei e da ordem e logo fica o caldo entornado, não parecendo haver enxovalho que baste contra quem o defende. Mas aceitar cordatamente a existência de partidos que ainda anseiam por um regime totalitário de tipo soviético, que advogam veladamente a revolução ou a “ditadura do proletariado”, isso tornou-se normal. Faz sentido, isto? Racionalmente, não.

Se condenamos o autoritarismo dum lado, não podemos legitimar o totalitarismo do outro. E também não podemos confundir autoridade com autoritarismo, que consiste no excesso abusivo daquela. Além disso, se a nossa sociedade padece hoje de alguma coisa, não é de falta de liberdade, é de excesso de permissividade. Há demasiada gente a não cumprir as leis e a desafiar a autoridade do Estado e dos seus agentes, há demasiada delinquência à solta, há demasiada tolerância com o que não devia ser tolerado, desde o vandalismo à imigração ilegal, desde o parasitismo à violência física, desde a indisciplina nas escolas às atrocidades no trânsito.

A sociedade está em mutação acelerada, as mentalidades também. Mas os partidos tradicionais cristalizaram na sua retórica, no seu sectarismo ideológico, nos seus aparelhos, na sua obsessão por lugares e subvenções oficiais. Se não acompanharem os sinais dos tempos, se não introduzirem na sua linguagem e nos seus programas as novas preocupações sociais que estão a emergir, não têm de se queixar dos “populismos” que vão surgindo, mas apenas de si próprios.

Os eixos da política estão a mudar também. Se os partidos do velho espectro parlamentar continuarem a desvalorizar as tensões raciais e étnicas, se desprezarem a resistência crescente a mais imigração descontrolada, se persistirem em disfarçar os falhanços do multiculturalismo e os abusos do parasitismo organizado, se forem complacentes com a delinquência em expansão, se continuarem a legislar e a agir sobretudo em função das suas clientelas, se insistirem no esbulho fiscal, se mantiverem os olhos fechados a desigualdades absurdas e a injustiças geracionais, se não perceberem as novas tendências mentais em gestação, em breve serão apenas uma pálida imagem de um passado em extinção e terão de ceder o lugar a novos intervenientes.

Continuem pois a encher a boca com diatribes ao “populismo”, ignorem os problemas reais ou continuem a desvalorizá-los, continuem a soprar ou a cuspir contra o vento… e, eleição após eleição, vão ver o que lhes acontece.

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Um erro crasso

A vida é madrasta. O feitiço que o PS pregou à coligação vencedora nas eleições de 2015, apeando-a do poder com a invenção da “geringonça”, pode agora virar-se contra o próprio feiticeiro.

Nas recentes eleições açorianas, o PS só obteve uma maioria relativa e, mesmo contando com os votos do BE e do PAN, não consegue formar com eles uma maioria absoluta. A direita, pelo contrário, pode consegui-la, se for capaz de se unir ou, pelo menos, de se entender.

À partida, presume-se que não será excessivamente difícil um entendimento entre o PSD, o CDS e o PPM, tratando-se de uma aliança táctica que já tem diversos antecedentes históricos. E por certo também a recém-chegada Iniciativa Liberal sabe onde encontrar as suas afinidades electivas, tal como as suas hostilidades naturais. O problema, paradoxalmente, poderá ser apenas o Chega, não obstante o seu posicionamento inequívoco à direita, por se assumir como um partido “anti‑sistema”. O eventual exagero desta vocação congénita pode condená-lo ao isolacionismo. Um dos seus dirigentes já chegou mesmo a afirmar, algo imprudentemente, que o Chega nunca governaria com partidos do “sistema”…

É uma posição legítima, atendendo ao ideário hoje predominante neste partido. Mas uma coisa é participar numa coligação de governo, outra é viabilizar a sua formação.

Se o Chega não viabilizasse uma “geringonça de direita”, seria um erro crasso… Antes de mais, contra si próprio. Tornar-se a causa principal da manutenção do PS no poder açoreano seria incompreensível para uma boa parte do seu eleitorado natural e deixaria de pé atrás outra parte do seu eleitorado potencial num futuro próximo. A razão é óbvia. Toda essa larga faixa de eleitores deseja, acima de tudo, o regresso da direita ao poder, e não veria com bons olhos que um partido claramente de direita, ainda por cima envergando as vestes de “radical”, impedisse essa mudança.

Pior do que isso: a experiência açoriana seria assimilada no continente, e teria aí consequências.

É bom recordarmos o que aconteceu ao BE de Francisco Louçã quando este ajudou a chumbar o último Plano de Estabilidade e Crescimento (PEC IV) do PS de José Sócrates, precipitando a queda deste e criando as condições para a ascensão da direita ao poder. Foi fortemente penalizado nas eleições seguintes, perdendo quase metade dos seus votantes (caíu de 9,82% para 5,17%), metade dos seus deputados (caíu de 16 para 8) e desencadeando logo a seguir uma grave crise de liderança… Muitos eleitores de esquerda tinham ficado tão profundamente decepcionados com a atitude “irrealista” do BE que transferiram o seu “voto útil” para outros partidos.

Há algumas analogias com o presente. O boicote do Chega a uma coligação de direita para governar os Açores poderia ser visto pelo seu eleitorado actual e potencial de várias formas inconvenientes: como uma manifestação de fundamentalismo ideológico, com resultados práticos perversos; como uma prova de imaturidade política; como evidência de que não se pode contar com o Chega para uma reviravolta no “statu quo” a curto e médio prazo; como um incentivo real a dar o “voto útil” a outro partido de direita; como a demonstração cabal de que o Chega é o mais ousado desafiante ao actual regime político, mas também o mais inepto para o jogo partidário dentro dele, em tudo aquilo que requerer uma aliança de tendências, a começar pelos seus próprios projectos de revisão constitucional; e talvez pior do que isso, como uma versão meramente simétrica dos comportamentos da extrema-esquerda que diz abominar. Com razão ou sem ela, muita gente tiraria alguma destas conclusões…

Fica portanto claro qual o erro a ser evitado. Se o Chega quiser salvaguardar a pureza ideológica dos seus valores e princípios, se pretender preservar a integridade dos seus dogmas fundadores, se quiser pôr em evidência a sua especificidade programática, pois que o faça. Ninguém poderá levar a mal ou menosprezar o que pretenda ser uma manifestação de coerência, se for esse o caso. E terá alguma lógica que se abstenha de participar numa solução de governo com a qual não se identifique. Mas a não viabilização parlamentar de uma coligação de direita para levar a vias de facto a alternância de poder e arredar dele o PS seria inevitavelmente vista como uma cumplicidade, ainda que involuntária e não intencional, com o “statu quo”. E isso, aos olhos de muitos eleitores, não teria desculpa.

Além de um erro táctico, seria também um erro estratégico. O poder do PS nos Açores é, em larga medida, clientelar. Alimenta-se de uma vasta teia de relações e cumplicidades locais para negociatas e nepotismos, à custa do erário público. Privá-lo da possibilidade de, em tão larga escala, distribuir prebendas e benesses a esmo seria, só por si, o equivalente a minar a sua influência nos seus próprios fundamentos. E a erosão do poder socialista seria como um virar de página para capítulos e episódios mais empolgantes.

Tal como no xadrez, de vez em quando é necessário sacrificar um peão para comer um cavalo ou um bispo. Neste caso, poderia ser mais do que isso: poderia desabar uma torre.

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

A eutanásia demográfica dos portugueses

Uma das coisas que mais tem disfarçado o número real de imigrantes já existentes em Portugal é o ritmo acelerado a que tem sido concedida a nacionalidade a muitos deles. Como é evidente, a partir daí deixam de ser contabilizados como imigrantes, passam a contar como portugueses nas estatísticas demográficas.

Só o ano passado, foram naturalizados mais de cento e oitenta mil estrangeiros. No ano anterior, foram mais de cento e setenta e quatro mil. E em 2017, cerca de cento e trinta mil. Portanto, contas feitas, quase meio milhão em apenas três anos.

E o pior é que o ritmo desta burocracia insana e suicidária acelerou fortemente desde que, em 2018, uma nova lei passou a exigir apenas dois anos de residência para se poder obter a nacionalidade portuguesa. No caso de judeus sefarditas com ascendentes que alegadamente tenham sido expulsos de Portugal nos séculos XV e XVI (ascendência essa que, de tão remota, não se percebe muito bem como pode ser comprovada ou refutada), nem sequer é preciso ter já residido em território português o que certamente estará a permitir muitos aproveitamentos e abusos, se não mesmo uma próspera área de negócio no apoio jurídico para candidatos a migrantes, para já não falar das máfias especializadas.

O número de naturalizações é actualmente mais do dobro dos nascimentos registados em cada ano, e destes apenas cerca de metade correspondem a filhos de parturientes portuguesas nativas. O que significa que apenas um sexto dos novos portugueses que surgem no país são de ascendência étnica portuguesa.

Há quem insinue que, com o beneplácito dos vários partidos de esquerda e da actual governação socialista, está a ser prosseguida uma política deliberada de substituição progressiva da população originária, não só por uma questão ideológica de favorecimento e implantação dos afluxos migratórios, mas também para provocar uma maior diluição da identidade histórica e étnica através da miscigenação gradual, o que contribuiria em simultâneo para uma maior diversidade da população residente e dos respectivos substractos culturais (uma opção sempre cara aos adeptos da globalização e do “cosmopolitismo”). No dizer das más línguas, a persistência no poder de um primeiro-ministro de ascendência goesa e de uma ministra da Justiça de origem angolana não seria totalmente estranha à actual pujança desta tendência…

Intenções assumidas ou ocultas e insinuações à parte, há no entanto consequências incontestáveis.

A este ritmo, no espaço de apenas uma geração, ou pouco mais do que isso, os portugueses nativos passarão a estar em minoria, ou seja, serão menos de metade da população. Se isso não se verificar na generalidade do território, dada a assimetria do fenómeno, será pelo menos verdade em algumas grandes cidades e vilas, talvez mesmo na própria capital (não se espantem, é isso que já hoje acontece em Londres, por exemplo).

A isto acresce que a maior parte dos naturalizados são provenientes de países subdesenvolvidos, com os vários países de expressão oficial portuguesa logo à cabeça, mas cada vez mais seguidos de perto pelas novas vagas de imigrantes africanos e asiáticos. Ora o subdesenvolvimento acarreta um considerável atraso cultural e comportamentos pouco civilizados. E isso não poderá deixar de ter consequências em termos de criminalidade e insegurança, níveis de civismo, choques culturais e étnicos, degradação urbana, queda da qualidade de aprendizagem nas escolas públicas, e por aí adiante.

Mas as naturalizações são apenas uma das faces da moeda. A outra são as autorizações de residência, uma avalanche de idênticas proporções.

No ano passado, o número total de imigrantes com autorização de residência rondava já o meio milhão. Os outros, os ilegais, deveriam ser ainda mais, embora obviamente não se pudesse saber ao certo quantos, por falta de muitos registos de entrada e saída e devido à porosidade das fronteiras. Mas isso era antes da pandemia. Quando esta se instalou, logo o governo se apressou a considerar oficiosamente regularizada a permanência de todos eles, com o habilidoso e humanitário pretexto de lhes conceder o acesso a cuidados de saúde e a apoios económicos de emergência. De um momento para o outro, uma torrente de gente que nunca descontou para coisa nenhuma passou a beneficiar de uma generosa protecção social, num país que ainda nem sequer sabe muito bem se os fundos existentes e as contribuições futuras lhe permitirão pagar pensões de reforma por mais de uma década. (Haja dinheiro. Enquanto houver, a festa pode continuar. Quando acabar, logo se verá…)

Por fim, convém frisar que esta avalanche de naturalizações e de autorizações de residência não esgota a questão. De facto, estamos ainda só a abrir a caixa de Pandora… É que atrás desta avalanche virá outra ainda mais portentosa, pela porta escancarada do reagrupamento familiar. A nacionalidade concedida a uns vai propiciar, por parentesco ou afinidade, por laços familiares reais ou falsificados, a nacionalidade de muitos outros. A autorização de residência concedida a cada imigrante vai-lhe permitir trazer, a retalho ou por atacado, toda a sua família alargada, a que não faltarão sequer reconhecimentos de paternidade à pressa e adopções de última hora. E se há famílias numerosas… E aos que não conseguirem vir por meios legais não faltará, com o apoio logístico dos que já cá estão, a tradicional táctica de chegar de qualquer maneira, permanecer ilegalmente e depois resolver paulatinamente o problema, com o apoio ou complacência das próprias autoridades.

O governo, esse, continuará a entoar a ladainha de que, devido à quebra de natalidade, precisamos de mais imigração para preencher as necessidades de mão-de-obra. Eis um argumento muito difícil de compreender, num país cujas estatísticas têm repetidamente registado centenas de milhares de desempregados e subempregados, mesmo antes da pandemia, e que agora se prepara alegremente, sob os efeitos dela, para voltar a taxas de desemprego de dois dígitos…

O que se passa de facto é que está a ser propositadamente alterada, e com a azáfama de quem quer aproveitar ao máximo a legislatura, a própria composição da população nacional. Ideologias, opiniões, interesses, lóbis, oportunismos vários (profissionais, políticos, empresariais), tudo se conluia para o mesmo objectivo. E pelos vistos, com êxito. Em vão podem proclamar certos quadrantes partidários que Portugal é dos portugueses. Pelo andar da carruagem, não será por muito tempo.

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Um país em declínio

Ainda não repararam? Somos um país em declínio… e não, não é só de agora…          

Até há pouco tempo atrás poderíamos não pensar assim, por só prestarmos atenção aos indicadores errados ou por desvalorizarmos as verdades inconvenientes.

Olhando para a evolução titubeante do PIB desde o início do século, poderíamos dizer que crescia muito devagarinho, mas sempre era melhor do que nada. Havendo algum crescimento económico, apesar de ser a uma taxa modesta e nada empolgante, isso era sinal de algum progresso, lento mas gradual. Agora, com os efeitos da pandemia, até sem isso ficámos. Espera-nos um recuo sem precedentes desde o fim da última guerra mundial, do qual é arriscado tentar sequer prever quanto tempo será necessário para o anular e voltar ao ponto em que estávamos.

Anteriormente, víamos as coisas a parecer melhorar nalguns aspectos: pregava-se o fim da austeridade, havia crescimento das exportações e dinamismo imobiliário, acumulação de êxitos desportivos e de prémios turísticos. Havia até algum novo-riquismo despreocupado e ostentatório, gerado pelo afluxo súbito das receitas do turismo e outras conexas. Tudo isso, por agora, perdeu fôlego e foi parar à prateleira das memórias recentes. Não se sabe quando voltará.

Mas havia outros sinais para observar por quem tinha olhos bem atentos. E esses continuam.

O PIB per capita em 2019 foi menor do que em 2018 e ambos foram inferiores ao de 2008. Ou seja: o rendimento médio por habitante caiu desde então e, não obstante alguns altos e baixos, estamos de novo em tendência descendente. Já o estávamos antes da pandemia, isso que fique claro.

O salário mínimo duplicou desde o ano 2000, mas o salário médio cresceu pouco mais de metade. Isto significa que o salário médio está cada vez menos distante do salário mínimo e que a classe média está a encolher. As desigualdades acentuam-se, portanto, e a maioria está a empobrecer em termos relativos.

A evolução demográfica é negativa em muitos aspectos. O número total de residentes no país tem vindo a diminuir, o que só por si não é preocupante. Mas houve um declínio progressivo da população nativa na última década, com um saldo natural negativo (mais óbitos do que nascimentos) e um aumento acentuado da idade média dos portugueses (o tal “envelhecimento da população” de que tanto se fala, mas que não se consegue contrariar). Esse saldo natural negativo nem sequer tem sido compensado pela invasão massiva de imigrantes, na sua maioria terceiro-mundistas e trazendo consigo o correspondente nível de mentalidades e comportamentos, bem abaixo do nosso nível médio de civismo e de escolaridade. A tendência recente para uma maior percentagem de imigração qualificada ainda não tem expressão muito relevante, excepto pela pressão em baixa que já exerce sobre os salários de profissões que até há alguns anos ainda não se ressentiam dela. O número de jovens diminuiu drasticamente, assim como a população em idade activa (que diminuiu ainda mais). O número de idosos, esse, subiu imenso. A isto junte-se ainda a crescente assimetria do povoamento: a área metropolitana de Lisboa é a única zona do país onde a população residente aumentou, em todas as outras encolheu. E as assimetrias regionais de população activa poderão ser ainda maiores.

Graças ao descontrolo migratório e às políticas de incentivo, o número de imigrantes e de naturalizados não pára de crescer, ano após ano. Muitos devotos da imigração e do multiculturalismo vêem isto como um fenómeno positivo, mas os perigos são óbvios. A ritmo bastante acelerado, o país vai perdendo a sua homogeneidade étnica, religiosa e até linguística, e também a sua identidade histórica ou o que restava dela. A par das meras diferenças inócuas, passam a coexistir cada vez mais crenças, costumes e valores incompatíveis. A conflitualidade racial, antes inexistente, vai subindo em flecha. Em breve chegará a vez da conflitualidade religiosa. Paulatinamente, a tolerância recíproca que era habitual no país vai dando lugar ao ressentimento ou a múltiplos ódios, à medida que padrões de comportamento exógenos ou hostis se vão tornando invasivos.

As estatísticas revelam um rápido aumento generalizado das taxas de criminalidade e delinquência, embora até aqui tenha havido algum êxito em conter o número de homicídios e sequestros. Mas o prognóstico é reservado: com a falta de meios policiais e a legislação penal frouxa que temos, ninguém está optimista com o que virá a seguir. E a falta de confiança na justiça é tal que, em muitos casos e situações, as pessoas desistem de apresentar queixa ou têm medo de o fazer.

Qual justiça? É cada vez maior a inoperância dos tribunais, que se vão atolando num pântano de formalismos inúteis e de processos por resolver, aumentando estes muito mais rapidamente do que os meios atribuídos à máquina judiciária para lhes fazer face.

Neste caldo de cultura, não há como evitar a crescente impunidade dos incumprimentos contratuais de toda a espécie e em todas as áreas de negócio, incluindo o arrendamento, graças a uma legislação e a uma inércia que beneficiam quem prevarica e penaliza os credores.

O crescimento contínuo da corrupção parece um fenómeno imparável, não obstante alguns processos mediáticos que vão surgindo, atingindo aquela níveis que seriam impensáveis durante o Estado Novo, o que significa que neste aspecto passámos quase meio século a andar para trás. E por razões óbvias, nunca o nível de confiança interpessoal foi tão baixo nem a pressão moral tão ineficaz. A impunidade reina.

Pior do que isso é a quase perda de soberania do Estado nos bairros étnicos, onde a própria polícia já mal consegue entrar sem um grande aparato de homens e viaturas, como se estivesse a penetrar em território inimigo. Há pedaços de Portugal que já parecem enclaves estrangeiros e hostis.

Em não poucas cidades e vilas, enquanto certas zonas urbanas se vão aprimorando, é difícil não notar a existência de outras com sinais de evidente degradação. Em vão se queixam moradores e utentes da proliferação de lixos, imundícies, furtos e desacatos nos subúrbios, onde a falta de higiene progride ao mesmo tempo que a falta de segurança. Existem vários países dentro do mesmo país.

No trânsito, vão proliferando os condutores sem carta ou sem seguro, os drogados ou alcoolizados, os infractores crónicos de sinais e de limites, os que confundem as estradas com as pistas, os viciados em gincanas e adrenalina. Circular nas estradas ou atravessá-las é um risco diário para quem precisa de o fazer. A permissividade instalou-se.

Na educação, devido ao facilitismo reinante e à cada vez maior heterogeneidade das turmas, assiste-se a um abaixamento progressivo dos níveis de exigência e a uma degradação da disciplina. Ser professor sem autonomia nem autoridade é cada vez mais uma profissão de risco e uma fonte de frustração, o que explica a crescente dificuldade de recrutamento de docentes e os elevados níveis de absentismo.

Aos adultos jovens que não emigram e não dispõem de bons apoios familiares, o que há para oferecer? Habitação escassa com rendas proibitivas e emprego com precariedade e salários baixos. Enfim, o necessário para que tenham de adiar para as calendas a sua autonomia pessoal ou a possibilidade de começarem o seu próprio núcleo familiar. Não admira que a natalidade dos nativos seja baixa, enquanto prospera a dos imigrantes que encontram na procriação irresponsável e oportunista a via rápida para obterem autorizações de residência, subsídios de subsistência ou a nacionalidade.

Nos apoios da segurança social, grassam sem freio o parasitismo e a subsidiodependência.

O ordenamento do território e a gestão racionalizada dos recursos são conceitos lustrosos com vagas consequências. Na prática, geram muita burocracia, abundantes subsídios e poucos resultados. Mas um deles conhecemo-lo bem: a desertificação do interior vai-se acentuando a olhos vistos, com todas as consequências que isso implica. Porque faltam estratégias, investimentos, empregos, serviços, iniciativas, apoios. A maior parte do país é negligenciada, porque rende menos votos.

Admira, por tudo isto, que vá alastrando o descrédito da democracia e das elites políticas, que se traduz em percentagens crescentes de abstenção eleitoral e de aversão à política, como consequência do descontentamento generalizado e do profundo cepticismo dos eleitores? Há muito que se instalou uma descarada perversão das instituições democráticas, ou assim chamadas, que o público em geral percepciona (e bem) como estando mais ao serviço de interesses partidários ou sectoriais do que vocacionadas para o bem-estar geral da população. Contudo, o regime serve muito bem àqueles que dele se aproveitam, muitos dos quais não singrariam fora dele. Sejamos lúcidos. Não é uma verdadeira democracia o que temos, é uma oligarquia predatória em fase de expansão.

Mas é este o “progresso” que nos vêm prometendo há décadas?  É nisto que se traduz o estafadíssimo chavão de “defender o futuro”? Então resguarde-se quem puder, porque a evolução natural do presente só pode ser para algo ainda pior, se não houver entretanto uma reviravolta política e cultural no país.

Abreviando, precisamos desesperadamente de uma pedrada. O charco já nós temos.

sábado, 5 de setembro de 2020

COVID-19: Factos, factos, factos... e conclusões surpreendentes!

 

A serem verdadeiros, os números oficiais da pandemia são desconcertantes! Mas mais desconcertados ficamos quando, em função deles, tentamos confirmar a racionalidade das medidas tomadas…

Recordemos os factos. (Mas quem não gosta de datas e números pode saltar para as conclusões.)

 

A Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou, em 30 de janeiro de 2020, que o surto da doença causada pelo novo coronavírus (Covid-19) constituía uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional – o mais alto nível de alerta da Organização, conforme previsto no Regulamento Sanitário Internacional. E em 11 de março de 2020, a Covid-19 foi caracterizada pela OMS como uma pandemia.

Em Fevereiro, já a OMS tinha difundido indicações de que os grupos de maior risco eram as pessoas de idade avançada (65 anos ou mais), as que tivessem comorbilidades (outras doenças em simultâneo, em especial doenças crónicas) e as que tivessem o sistema imunitário enfraquecido (em resultado de doenças ou tratamentos específicos que provocassem tal efeito).

Em função deste aviso, ficava claro que as medidas de protecção prioritárias deveriam incidir sobre os mais idosos e quem tivesse certas debilidades clínicas ou imunitárias que gerassem maior vulnerabilidade.

 

Em Portugal, o primeiro caso de infecção só foi detectado em 2 de Março.

O estado de emergência foi decretado em 18 de Março pelo Presidente da República. No dia seguinte, o primeiro-ministro anunciou ao país as medidas restritivas que iriam ser impostas. E em 20 de Março saíu o decreto do Governo que regulamentava o estado de emergência e que continha tais medidas.

 

Em 18 de Março, quando foi decretado o estado de emergência, tinham sido registados até à véspera 642 casos de infecção, dos quais 89 estavam em internamento e 20 em cuidados intensivos, mas havia apenas um único óbito! O número de novos casos diários tinha na antevéspera ultrapassado, pela primeira vez, uma centena (fora 117). A taxa de mortalidade era de 0,16% (número de óbitos atribuídos ao coronavírus, a dividir pelo número de infectados conhecidos).

 

Após o início das medidas do estado de emergência, a taxa de mortalidade (relativamente aos casos confirmados de infecção) foi subindo quase dia após dia. Quando o estado de emergência terminou, em 2 de Maio, já estava em 4,06% e continuou a subir até dia 1 de Junho (4,37%), precisamente a data em que entrou em vigor a terceira fase do desconfinamento. Mas a partir daí nunca mais parou de descer, até se cifrar actualmente abaixo de 3,1% (o valor mais baixo desde 12 de Abril).

Conclusão: como o ciclo de vida da doença, desde a infecção até à cura ou ao óbito, é inferior a um mês na maioria das pessoas, daqui se extrai que a taxa de mortalidade só começou a descer nas infecções contraídas no período posterior ao fim do estado de emergência, o que significa que, no seu todo, as medidas restritivas impostas durante o estado de emergência não contribuíram para tal descida, que está a ser sustentada por quaisquer outros factores.

 

O número de casos internados atingiu o seu máximo (1302) em 15 de Abril e desde aí tem vindo a descer. Em 2 de Maio (fim do estado de emergência) já era de 856 apenas. Até ao final da primeira fase de desconfinamento (18 de Maio) baixou para 629, e até ao final da segunda fase (1 de Junho) baixou para 432, permanecendo depois com esse valor médio ao longo do mês de Junho. Desde então tem oscilado entre um mínimo de 311 (25 de Agosto) e um máximo de 513 (5 de Julho), mantendo-se consistentemente em torno de pouco mais de quatro centenas de casos, em média, com uma oscilação máxima de 26% (a média neste período foi de 407 internamentos e o valor de ontem é de apenas 345, o que revela uma tendência de baixa mesmo durante o período alto das férias de verão: a média de internamentos foi de 452 em Julho e de 346 em Agosto).

Conclusões: o fim do estado de emergência não aumentou o número de casos internados e, melhor do que isso, não o impediu de continuar a descer sustentadamente; e desde que entrámos na terceira fase de desconfinamento, houve primeiro uma relativa estabilização do número de casos, apesar de algumas oscilações, e regressou depois uma tendência de queda (ou seja, um maior desconfinamento não agravou o número médio de hospitalizações, antes pelo contrário).

 

Na semana que antecedeu o anúncio das medidas do estado de emergência (ou seja, na semana anterior a 19 de Março), a média das pessoas internadas devido à covid-19 foi de 126 casos em simultâneo, o que correspondia a 16% do total de infectados já conhecidos na véspera do anúncio (785). Mas esta percentagem correspondia a uma descida brutal desde uma semana antes, que começara com 107 internamentos em 112 casos de infecção detectados (95,54%). Esta elevadíssima percentagem inicial e a sua queda abrupta subsequente revelam que houve uma abordagem inicial à doença que consistiu em medidas quase imediatas de internamento hospitalar, mas que foi rapidamente abandonada perante a rápida multiplicação de infectados, que a tornava inviável.

Durante a vigência do estado de emergência, e com a evolução de casos já descrita, a média diária de internamentos em simultâneo foi de 886 pessoas. Durante a primeira fase de desconfinamento, essa média baixou para 763, e na segunda fase de desconfinamento baixou ainda mais para 540 casos. Desde o início da terceira fase de desconfinamento (ou seja, desde 1 de Junho), a média geral tem-se mantido persistentemente entre as quatro e as quatro centenas e meia de internamentos, sendo actualmente de 407.

Conclusão: a cada nova fase de desconfinamento correspondeu uma redução significativa do número médio de doentes internados em simultâneo, sendo actualmente menos de metade do que foi durante o estado de emergência.

 

A percentagem de internamentos hospitalares em relação ao número total de infectados activos conhecidos registou uma evolução idêntica. Essa percentagem, que já era só de 13,93% no dia 17 de Março, na véspera de ser decretado o estado de emergência (e de 12,24% em 20 de Março, quando foram decretadas as medidas de confinamento) baixou drasticamente para 3,80% até ao dia 2 de Maio, quando terminou o estado de emergência. Mas continuou a descer depois, embora com algumas oscilações estatísticas, sendo actualmente de 2,25% (o valor mais baixo desde o início da epidemia em Portugal).

O número de infectados activos estima-se subtraindo ao número total de infectados já detectados o número de óbitos ocorridos mais o número de pessoas já consideradas recuperadas pelas autoridades sanitárias. Não sendo exacto, trata-se de um número razoavelmente confiável, visto que as demoras nas análises, a margem de erro destas e a dos processos de apuramento estatístico tanto se aplicam à detecção de novos casos como à verificação dos recuperados. Mas como o número de infectados reais é muito superior ao número de infectados conhecidos, as percentagens apuradas tendem a sugerir, nesta óptica, um grau de perigosidade da doença bastante acima da realidade (o que não equivale a desvalorizá‑la nas suas consequências clínicas e sociais).

Conclusões: a percentagem de internamentos hospitalares iniciou uma trajectória prolongada de descida no final da primeira quinzena da epidemia, ainda antes do estado de emergência; o desconfinamento progressivo não prejudicou essa tendência decrescente dos internamentos, que ainda subsiste e atingiu recentemente os valores mínimos já registados. As percentagens verificadas durante o estado de emergência foram sempre superiores, e durante várias semanas por larga margem, às que se têm verificado desde o início do desconfinamento.

A percentagem real de internamentos, desde 17 de Março, tem estado sempre muitíssimo abaixo da estimativa oficial de 20% de casos graves que se perspectivava inicialmente para a doença (na realidade, é cerca de nove vezes inferior).

 

A percentagem de doentes de covid-19 necessitando de cuidados intensivos também tem registado uma prolongada trajectória descendente desde antes do estado de emergência até agora. Os primeiros números disponíveis fixavam-na em 5,95% (13 de Março). Quando foi decretado o estado de emergência (18 de Março) já tinha descido para 2,56%, quando este terminou (2 de Maio) já ia em 0,61%, e desde então desceu para menos de metade disso, sendo de 0,28% em 31 de Julho e 0,24% em 5 de Setembro).

Conclusões: a percentagem de internados em cuidados intensivos teve a sua queda mais acentuada durante o período do estado de emergência, mas está em descida contínua desde antes dele. O desconfinamento progressivo não suspendeu nem inverteu essa tendência decrescente, que ainda subsiste e atingiu recentemente os valores mínimos já registados.

A percentagem de internamentos em cuidados intensivos, desde antes da entrada em vigor das restrições impostas pelo estado de emergência, tem estado sempre muito abaixo da estimativa oficial de 5% de casos muito graves que se previa inicialmente para a doença, sendo que o valor real actual, passados três meses desde o início do desconfinamento, é cerca de 20 vezes inferior, se calculado em relação ao número de casos de infecção confirmados (e cerca de 120 vezes inferior, se calculado em relação aos resultados obtidos nos testes serológicos feitos a amostras da população).

 

Nos últimos três meses, desde que se iniciou a 3ª fase de desconfinamento até ao final de Agosto, aumentou em 79% o número de casos confirmados (de 32500 para 58243). Desde o fim do estado de emergência, há quatro meses, mais do que duplicou (de 25282 em 2/5 para 59943 em 4/9). Mas em apenas mês e meio, enquanto o estado de emergência durou, o número de infectados foi multiplicado por mais de 32 (evoluiu de 785 para 25282 casos), o que faz duvidar bastante da sua eficácia.

No entanto, as medidas de confinamento decretadas em 20 de Março pelo Governo parecem ter produzido efeitos, reduzindo a taxa de propagação diária de cerca de 25% para valores próximos ou abaixo de 1%.

A média de novos casos diários registados foi a seguinte: 633 na 1ª quinzena do estado de emergência, 643 na 2ª quinzena, 355 na 3ª quinzena. Ou seja, só na fase final do estado de emergência se registou uma evolução positiva, o que sugere que poderá não ter sido o próprio confinamento generalizado a produzi-la, mas sim algum outro factor relevante que surgiu durante a vigência daquele; poderá ter sido, com enorme probabilidade, a disponibilidade crescente de máscaras, luvas, viseiras e materiais desinfectantes que se registou nesse período terminal do estado de emergência.

Conclusões: foi durante o estado de emergência que a epidemia teve um crescimento mais rápido no número de casos verificados, mas foi também nesse período que registou o maior decréscimo da taxa de propagação diária, sobretudo concentrado na fase terminal (em simultâneo com o maior acesso a materiais sanitários e de protecção).

 

Segundo foi anunciado em 23 de Julho, um estudo serológico feito pelo Instituto Ricardo Jorge revelou que o número total de pessoas que já estiveram infectadas com o novo coronavírus (com ou sem manifestações visíveis da doença) é afinal seis vezes superior ao número de casos confirmados, atingindo até então cerca de 3% da população (aliás, em linha com o já constatado noutros países europeus).

A má notícia daí resultante é que ainda resta muita gente por infectar e sem imunidade: quase 97% da população. Mas há boas notícias também: isso significa que a letalidade da doença é seis vezes inferior ao que se obtinha das estatísticas de casos confirmados (sendo afinal inferior a 0,6%), o mesmo acontecendo com as percentagens dos casos que requerem internamento e cuidados intensivos (que descem para cerca de 0,4% e 0,04%, respectivamente).

Conclusão: confirma-se assim que a perigosidade da doença é afinal bastante menor do que se temeu inicialmente e que ela começou por gerar um pânico excessivo. Um dos possíveis corolários disso é que as medidas excepcionais de natureza social e económica destinadas a combatê-la, baseadas nessas expectativas iniciais, podem ter sido desproporcionais, precipitadas e contraproducentes, inclusive em termos de saúde pública, atendendo aos efeitos colaterais que são indiciados pelas estatísticas da mortalidade excedentária em relação à média de períodos homólogos em anos anteriores.

 

E quanto ao número de óbitos ocorridos?

Durante o mês e meio em que vigoraram as medidas do estado de emergência, a média diária foi superior a 23; mas durante as primeiras duas fases de desconfinamento, a média diária andou por cerca de 13; e desde que se iniciou a terceira fase de desconfinamento, baixou para 5 durante os meses de Junho e Julho (155 óbitos em cada) e para menos de 3 durante o mês de Agosto (87 óbitos apenas). Se tomarmos em consideração todo o período decorrido desde o fim do estado de emergência até agora, a média diária de óbitos foi pouco superior a 4.

Conclusões: a mortalidade desceu consideravelmente com a entrada em vigor do desconfinamento e, desde que este começou, o número médio de óbitos diários atribuídos ao novo coronavírus foi cerca de um sexto do que se registou durante o estado de emergência!

 

E quanto ao número de novos casos diários?

Enquanto vigoraram as medidas do estado de emergência, até 2 de Maio, a média de novos casos foi 545. Durante a primeira fase de desconfinamento, baixou para 280, e durante a segunda fase voltou a baixar para cerca de 250. A média das duas fases foi inferior a metade da média durante o estado de emergência. Durante a terceira fase de desconfinamento a média subiu para 284 casos diários, mas mantém-se em cerca de 52% do valor médio registado durante o estado de emergência.

Conclusões: o desconfinamento foi acompanhado por uma redução drástica de novos casos diários durante as primeiras duas fases; a terceira fase, embora tenha registado uma subida de quase 14% dos casos em relação às anteriores, mantém-se muitíssimo abaixo do valor médio registado durante o estado de emergência (pouco mais de metade).

 

E quanto à distribuição etária dos óbitos “atribuídos” ao coronavírus?

Em 17/8 (e sem que se perceba porquê) a DGS deixou de fornecer números exactos acerca dos óbitos por faixa etária, limitando-se a divulgar os respectivos gráficos. Mas o apuramento da situação existente no dia anterior a essa data é suficientemente esclarecedor.

Abaixo dos 40 anos, havia 6 óbitos (0,34%) (contra 0 em 2/5, quando terminou o estado de emergência).

Entre os 40 e os 49 anos, 21 óbitos (1,18%) (contra 10 em 2/5: 0,96%)

Entre os 50 e os 59 anos, 57 óbitos (3,21%) (contra 32 em 2/5): 3,06%)

Entre os 60 e os 69 anos, 159 óbitos (8,94%) (contra 91 em 2/5: 8,72%)

Entre os 70 e os 79 anos, 347 óbitos (19,52%) (contra 207 em 2/5: 19,85%)

Acima dos 80 anos, 1188 óbitos (66,82%), ou seja, mais de 2/3 (contra 703 em 2/5: 67,40%)

Em suma: 95,3% dos óbitos “atribuídos” ao coronavírus ocorrem acima dos 60 anos (ou seja, 19 em cada 20) e 86,4% ocorrem acima dos 70 anos (ou seja, mais de 17 em cada 20). Em 2/5 eram 96% e 87,2%, respectivamente (isto é, percentagens semelhantes).

Conclusão: estes valores estão plenamente de acordo com o que a OMS tinha avisado logo em Fevereiro, e que portanto deveria ter desde então orientado as grandes prioridades nas medidas de prevenção e protecção, mediante estratégias de discriminação positiva em relação aos mais idosos. A hecatombe entretanto ocorrida em lares e residências para a terceira idade revelou à saciedade que isso não foi tomado em consideração na altura certa. Fica por saber quanta dessa mortandade poderia ter sido evitada.

 

Como entender estes dados em face da esperança média de vida?

Segundo dados divulgados pela própria DGS, a mediana dos óbitos atribuídos ao coronavírus situa-se em 80 anos para os homens e 85 anos para as mulheres. Ora a esperança média de vida situa-se em 78 anos para os homens e 83 anos para as mulheres. Isso significa que a esmagadora maioria das pessoas que têm falecido "por causa deste vírus" (repito, como se as restantes doenças e a morte natural para nada contassem) sucumbiram após terem ultrapassado a esperança média de vida ou já muito perto dela.

Ora "esperança média de vida", como se percebe, não significa que toda a gente tem de lá chegar, senão não seria média. Muitas das pessoas falecidas estavam já, em termos estatísticos, na fase terminal da sua vida mesmo sem a ocorrência da pandemia; a maioria delas tinha várias doenças graves, de tipo crónico ou degenerativo; e o seu sistema imunitário não estava em condições de resistir a mais uma infecção grave, fosse ela de que tipo fosse. Portanto (e perdoem-me a rudeza da expressão) muitos dos falecidos estavam já nesse “corredor da morte” que é, afinal, o desfecho natural da própria vida. Para muitos deles, o coronavírus só despoletou ou acelerou o que estava iminente.

Mas o mesmo não poderá talvez dizer-se de todos os outros pacientes que faleceram por falta de tratamento médico ou de intervenções cirúrgicas, devido ao pânico e à afectação desproporcional de recursos que o coronavírus provocou, paralisando muitos centros de saúde e departamentos hospitalares ou inibindo a procura de tratamento urgente por quem dele necessitava. As estatísticas demonstram excedentes de mortalidade que não podem ser explicados de outra forma.

Conclusão: a ameaça representada pela pandemia foi parcialmente mal gerida desde o início. Começou-se por descurar a prioridade absoluta que devia ter sido dada aos segmentos populacionais de maior risco (em particular, aos mais idosos e aos clinicamente mais vulneráveis, conforme as indicações precoces da Organização Mundial de Saúde) e optou-se por um confinamento generalizado da população, sem qualquer segmentação etária ou geográfica, gerando de imediato uma crise económica e financeira de proporções desnecessárias e desperdiçando recursos exagerados logo numa fase inicial da primeira vaga da epidemia. Por acréscimo, criou-se uma situação de crise igualmente grave em praticamente todos os sectores de saúde não relacionados com o surto de coronavírus, gerando consequências clínicas ainda por avaliar globalmente e uma mortalidade excedentária muito superior à provocada pela própria epidemia até à presente data.

Além disso, como quase todos os indicadores melhoraram substancialmente à medida que foi progredindo o desconfinamento, daí se conclui que o confinamento generalizado e o recolhimento domicilíário não são os factores críticos para a contenção da epidemia, mas sim outros, muito provavelmente a disponibilidade generalizada de materiais de protecção e de produtos sanitários  que só começou a verificar-se já na fase final do estado de emergência, bem como o cuidado de distanciamento social que tem sido praticado por grande parte da população. O estado de emergência e as suas medidas drásticas, por si sós, não impediram o crescimento rápido do número de casos de infecção durante o mês inicial de vigência, quando o país inteiro estava praticamente desprotegido, devido à imprevidência grave de não existir uma reserva estratégica de materiais sanitários e de protecção, apesar de os especialistas saberem que, mais ano menos ano, uma nova epidemia acabaria por surgir e o país não estava preparado (e, pelos vistos, nem o governo actual nem nenhum dos anteriores se preocupou com isso, à semelhança do que aconteceu por esse mundo fora).

É caso para perguntar: estaremos agora melhor preparados para enfrentar outras emergências, incertas mas previsíveis, de saúde pública? O nosso velho hábito nacional de só trancar as portas depois da casa roubada leva a pensar que não.