É confrangedora a curteza de vistas com que a União Europeia
está a tratar a questão do Brexit.
Talvez a saída do Reino Unido
seja um erro histórico, como alguns dizem. Lamentavelmente, a mim parece-me que
não. Mais do que outros motivos, a recusa das instituições europeias em refrear
a imigração descontrolada, perseverando numa política liberal de acolhimento e
de circulação quase irrestrita de migrantes e refugiados, ademais impedindo
obstinadamente o Reino Unido de lançar mão de algumas defesas necessárias contra
os excessos migratórios de que tem sido alvo, na prática não lhe deixou outra
opção. Não apenas por vontade da maioria do seu pessoal político, mas por
vontade referendada da sua população, cada vez mais farta de sentir o seu país
descaracterizado e cada vez menos seu, com o ónus adicional (e relativamente
traumático) de uma ex-potência imperial ver as suas leis cada vez mais feitas
fora de portas. Nestas coisas, os aspectos psicológicos e históricos contam
sobremaneira.
Depois de séculos de férrea
tradição diplomática e empenho militar em manter na Europa uma espécie de
“balança de poder”, destinada a evitar o advento de uma qualquer hegemonia
continental que lhe fosse hostil e que ameaçasse a sua independência, os seus
interesses comerciais ou as suas possessões coloniais, o Reino Unido tem sido
relativamente impotente para travar uma hegemonia partilhada franco-alemã, que
leva por arrastamento as respectivas zonas de influência e está a conseguir
moldar a seu modo as regras da convivência europeia. Estas regras têm vindo a
consolidar-se, não obstante o descontentamento que grassa nalguns países do sul
e do leste, por efeito natural do peso económico e demográfico da Alemanha e da
França, acrescentado pelos apoios dos outros países de expressão francesa ou
germânica. Na prática, estas duas potências estão paulatinamente a conseguir,
por via política e negocial, e graças também ao seu músculo financeiro e
diplomático, o que durante muitas gerações não conseguiram pela via militar:
impor a sua vontade na Europa. Fazem-no por enquanto de forma partilhada e mais
ou menos concertada, embora se vá tornando evidente que a própria França está a
ficar para trás nesta liderança, vulgarmente designada como o “motor europeu”.
E, de mansinho, um projecto ainda não assumidamente federal vai assim ganhando
corpo, à revelia das identidades e soberanias nacionais, cada vez mais
desgastadas, sem que nunca se tenha tirado a limpo, em escrutínio democrático
claro, se os europeus preferem “uma Europa das pessoas”, “uma Europa das
regiões” ou “uma Europa das nações”, para além de outras hipóteses possíveis.
Ou seja, vamos marchando em frente, com tropeções aqui e ali, conforme os
dirigentes alemães e franceses vão querendo, acolitados por outros países que
sempre se apressam a querer o mesmo que eles.
O Reino Unido, sendo uma das três
grandes potências desta nova Europa em vias de unificação, sempre guardou
reservas em relação ao casamento de conveniência das outras duas, não apenas
por uma questão de ter finalmente de enfrentar uma hegemonia relativamente
adversa, mas porque as tradições britânicas, bastante mais liberais do que as
do continente em diversas matérias políticas e económicas, se têm por vezes
chocado de frente com os excessos de regulamentação e burocracia impostos pelos
continentais, através das novas instituições europeias. Mas os grandes pomos de
discórdia têm sido as orientações encapotadamente federalistas dessa recente
supremacia franco-alemã e a torrencial invasão migratória que tem assolado as
Ilhas Britânicas, com inúmeros efeitos negativos, sem que estas possam
legitimamente travá-la no actual quadro jurídico da União.
Recusando-lhe um acordo que
pudesse acomodar melhor a permanência do Reino Unido na UE, nem que fosse ao
abrigo de um qualquer estatuto de excepcionalidade (que nem sequer seria caso
único, porque outros países o têm sob diversas formas), e fazendo vista grossa
aos níveis de descontentamento interno e eurocepticismo que por lá grassam, as
instâncias europeias acabaram por encurralar o Reino Unido numa alternativa
extrema, a de escolher entre a submissão ou a saída, confiando sempre que
prevaleceria eleitoralmente a primeira. Enganaram-se. E pior do que isso, não
estão agora dispostas a reconhecer o erro e emendar a mão, o que, bem vistas as
coisas, até nem seria demasiado difícil e problemático no cenário de uma Europa
a várias velocidades. Bem mais dramática, como já está sobejamente à vista, é a
avalanche de consequências que essa intransigência ameaça provocar, e ainda a
procissão vai no adro.
No fim de contas, e sem exagero, pode
dizer-se que foi a União Europeia, com a sua teimosa inflexibilidade, que
precipitou este desfecho, que aliás se arrisca a não ser um episódio isolado.
Mas os líderes e representantes dos outros países da União preferem não ver as
coisas assim, pelo menos até serem mais seriamente confrontados com a real
possibilidade de saída de algum outro país (e da próxima vez, quem sabe, talvez
um dos países fundadores). Não esqueçamos nunca que foi na França e na Holanda
que o Tratado Constitucional foi rejeitado em referendo.
Independentemente do que se pense
nesta matéria, a UE está agora a querer demonstrar a força dos fracos, isto é,
a querer fazer do Reino Unido um caso de punição exemplar para que o fenómeno
não se repita, mas no fundo consciente de que a sua coesão está mais fissurada
do que convém admitir e que enfrenta sérios riscos de novas brechas. Como se
tem visto, o descontentamento instalou-se em muitos países, vai em crescendo e
a União já não parece ter a mesma força atractiva que teve no passado. Nada que
não se possa remediar, mas por enquanto é esta a situação.
Ora talvez seja um erro histórico
bastante maior a demonstração de arrogância e espírito retaliatório que a União
Europeia está actualmente a fazer em relação ao Reino Unido. Algo de que talvez
venha a ter motivos bastante fortes para se arrepender, mais cedo do que tarde.
O bom senso aconselharia a que se
tentasse manter o Reino Unido politica e economicamente tão próximo quanto
possível da União Europeia, conservando-o numa zona de comércio livre, não
necessariamente pensando na eventual hipótese de um futuro regresso ou de uma
reversão do Brexit antes de ele estar definitivamente consumado, mas porque
seria bem melhor manter uma estreita parceria com o Reino Unido do que vê-lo
constituir ou integrar um bloco económico rival, ainda por cima bem aqui ao lado.
Algo que este país, pelas suas relações privilegiadas com a Commonwealth e com
todo o restante mundo de língua inglesa, muito especialmente os EUA, pode
conseguir sem excessiva dificuldade. E com uma agravante: é que pode vir a
funcionar como uma espécie de paraíso fiscal e polo de captação de
investimento, com algumas vantagens competitivas na atracção dos negócios,
mercê de um espírito económico mais liberal, mais pragmático e menos propenso a
regulamentações excessivas. Em suma: a cooperação seria bem melhor que o duelo,
que não deixará de infringir lesões a ambos os lados, seja qual for o lado que
se ressinta mais.
Por outro prisma, a UE tem bem
mais de quatro milhões dos seus cidadãos a viver e a trabalhar no Reino Unido,
enquanto este apenas tem perto de um milhão instalado na UE. Convenhamos que se
trata de um trunfo considerável: se as posições se extremarem em relação à
concessão de vistos e ao direito de permanência, a UE ficará largamente a
perder, tendo em conta não só a diferença dos números, mas também o facto de a
economia continental ser em média menos dinâmica do que a britânica e, portanto,
serem de esperar maiores dificuldades de reabsorção de um vasto contingente de
regressados. E o problema poderá nem se colocar tanto pelo lado do Reino Unido,
se as partes se encaminharem para um sistema de quotas iguais ou, em larga
medida, menos favoráveis para os migrantes continentais do que a situação
actual.
Há também a questão da defesa e
segurança europeias. O Reino Unido tem sido, a uma considerável distância, a principal
potência militar da União Europeia e aquela que possui os melhores serviços de
informações. Passar a tê‑lo fora de um qualquer esquema europeu de defesa, já
de si ainda débil e embrionário, não só fará as delícias dos potenciais
inimigos da Europa como pode vir a revelar vulnerabilidades difíceis de
colmatar a curto prazo. Mas quase passa sem dizer-se que, por enquanto, a UE
não fareja perigos sérios ou iminentes nas suas fronteiras externas e por isso
não parece muito preocupada, vivendo naquela típica descontração próxima da
inconsciência. Ainda não percebeu que enfrenta outras ameaças além da Rússia e
do terrorismo, que de resto também não são levadas tanto a sério como a
retórica política e diplomática pode fazer crer. A UE continua a comportar-se,
a começar pelos seus orçamentos de defesa, como se nenhum perigo sério andasse
a rondar-lhe as fronteiras. Ainda não percebeu os riscos que corre a sul nem a
ameaça potencial que pode vir a representar a Turquia, se as relações com este
país azedarem mais ou se vierem a tornar-se necessárias medidas repressivas, restritivas,
desfavoráveis ou consideradas discriminatórias contra os milhões de migrantes
turcos que já assentaram arraiais na União. Ninguém pensa nisso, mas a diáspora
turca pode vir a ser uma questão tão explosiva como o foi em tempos a diáspora
alemã.
Os iluminados de Bruxelas também
ainda não anteciparam as desvantagens colossais de o Reino Unido e seus
parceiros comerciais mais próximos virem a estreitar mais os laços comerciais
com os EUA do que com a Europa continental, ou de aquele poder agir mais autonomamente
em relação à China e à Índia, no que respeita à celebração de tratados
comerciais e financeiros. A táctica mais consagrada e sábia sempre foi a de o
poder vigente manter os recalcitrantes próximos de si e debaixo da sua alçada,
para poder controlá-los melhor, mas o que a UE está a fazer, ostentando poses
de quase expulsão punitiva, é exactamente o contrário: é empurrar o Reino Unido
para a opção que esta já teve de assumir em face da hostilidade manifesta que
lhe têm votado, ou seja, o hard Brexit,
que pelo menos o deixará de mãos livres para perseguir autonomamente os seus
interesses, por mais antagónicos que sejam com os da UE. E ou muito me engano
ou não passará muito tempo até que se torne evidente que tal opção acabará por
ser uma bênção para o Reino Unido, tendo feito da sua deserção um caso de
sucesso, com o impacto indesejável que tal facto poderá vir a ter noutros
países da União já não muito felizes com a sua integração (ou, pelo menos, com
o grau de integração já existente). Se assim for, a UE arrisca-se a que o
feitiço se vire contra o feiticeiro, incentivando nas opiniões públicas de
outros países-membros o desejo de sair, em vez de o desencorajarem. E quanto
maiores as retaliações agora, maior parecerá depois o eventual sucesso
britânico.
A ver vamos, como se costuma
dizer. Entretanto, espera-se do governo português, até pela ancestral aliança
que temos mantido com a Inglaterra, e que já tão útil nos foi por diversas
vezes, que contribua para moderar os ânimos e contrariar o espírito
retaliatório que ameaça vir a ensombrar as negociações do Brexit e o perfil
político da Europa.
Quanto ao mais, futuramente se
verá se é a UE que faz mais falta ao Reino Unido ou se é este que faz mais
falta à União. Eu não aposto as fichas todas em nenhuma destas alternativas,
mas acredito mais na segunda. E, se calhar, tal poderá suceder por motivos que
hoje ainda mal suspeitamos. A História é fértil em pregar partidas dessas,
contrariando as certezas e as probabilidades defendidas pelos arrogantes que só
enxergam o dia imediato.
Entretanto, como não podia deixar
de ser, não é estranha a toda esta crescente hostilidade ao Reino Unido a caça
desenfreada aos lugares de influência que este ainda ocupa nas instituições
europeias, às grandes sedes empresariais que ainda operam no seu território
(mas que podem querer deslocalizar-se por causa do Brexit e que são alvo de
cobiça) e a um naco substancial das transações financeiras intermediadas pela
praça financeira de Londres. Há ainda a apetitosa questão da redistribuição dos
assentos que vão ficar vagos no Parlamento Europeu e que terão de ser rateados
pelos outros Estados membros. Na sequência deste cerrar de dentes contra o país
“desertor”, ainda vamos provavelmente assistir a muitas brigas de bastidores,
mesmo antes de o Reino Unido levantar de vez o acampamento, para ver quem fica
com os despojos. Apesar disso, como convém ao lado público da política e da
diplomacia, os discursos de união e consenso continuarão quase em uníssono.
Como já aconteceu por diversas
vezes no passado, os europeus continentais estão de novo a menosprezar a
determinação e a capacidade de resistência dos britânicos. Com o pragmatismo
que os caracteriza, hão-de acabar por resolver os problemas que lhes criarem
muito mais depressa e melhor do que a União Europeia tem conseguido resolver os
seus. Terão, aliás, muito mais flexibilidade para isso, livres de muitos dos
constrangimentos que embaraçam as restantes economias europeias. E têm vários
outros trunfos para jogar, para além da possibilidade de adopção de práticas de
“dumping” fiscal que lesariam as economias europeias da parte continental. Com
a actual soberba proporcionada pela superioridade numérica e pela desproporção
demográfica, a restante Europa a 27 não está a ponderar bem tudo o que tem a
perder.
Em suma: seria mais proveitoso (e,
sobretudo, menos perigoso) conceder um estatuto de excepcionalidade ao Reino Unido
do que abrir esta tremenda brecha na coesão europeia. De qualquer modo, o
descontentamento com o descontrolo migratório está a crescer a olhos vistos e
vai confrontar a UE com novas crises graves. Mais cedo ou mais tarde, talvez
mesmo antes de vir a perfilar-se no horizonte o risco iminente da saída de
qualquer outro país membro, terão de ser adoptadas algumas restrições
temporárias à livre circulação e residência de pessoas, para evitar males
maiores. E quando tal acontecer, muitos se interrogarão tardiamente por que não
se enveredou logo por essa opção no caso do Reino Unido, causadora de bem menos
danos do que a saída deste. Para já, o que é previsível é que a retórica extremamente
agressiva e os comportamentos retaliatórios vão tornar a União ainda mais
odiosa, não só aos olhos da população das Ilhas Britânicas, como aos de todos
os outros eurocépticos, quer se sintam ou não solidários com o descontentamento
britânico.
Já que tal imagem pegou de estaca
na retórica política em uso, pode agora dizer-se que é nas amargas
circunstâncias de um divórcio litigioso que pode aferir-se melhor quão fiável
era a afeição conjugal. Para começar, as instâncias europeias deveriam logo ter
enveredado por um divórcio amigável, por mútuo consentimento e com equitativa
partilha de interesses; mas pelas declarações já vindas a lume, há quem esteja
obstinado em que sejam o ressentimento e a vingança a ditar os termos. Se as
coisas tomarem esse rumo, o que vier a passar-se poderá ser muito educativo
para o resto da Europa, mas talvez não do jeito que os líderes europeus agora imaginam.
A procissão ainda vai no adro,
dizia eu. Mas ainda o andor mal começou a mover-se e, como sinal premonitório,
já estamos a assistir ao regresso das rivalidades territoriais europeias. Isto
dá que pensar. E o primeiro pensamento que se impõe é que ainda é tempo de
arrepiar caminho. O Reino Unido deveria ser tratado com compreensão e
afabilidade, até pelo muito que a Europa lhe deve. Mas é absurdo que aquele
país esteja a exercer um direito legítimo, aliás previsto nos tratados, e se chegue
ao ponto de lhe exigir uma espécie de reparação de guerra. A Europa enlouqueceu
de novo?