sábado, 16 de setembro de 2017

Política versus futebol

A fazer fé na imprensa, o Governo está decidido a impedir a realização de jogos de futebol nos dias de actos eleitorais. Mas será esta uma boa ideia?

Vejamos. Os jogos oficiais de futebol disputam-se geralmente à tarde ou à noite. Os que são à noite não atrapalham nada. E os que são de tarde não impedem as pessoas de votar de manhã. Fará sentido proibi-los? Se fizesse algum sentido, teríamos de proibir muito mais coisas.

Se as idas ao futebol impedissem realmente os cidadãos de votar de tarde, o que é um pressuposto bastante discutível, e se isso pudesse considerar‑se catastrófico para a democracia, poderíamos então alegar que as idas à missa impedem os crentes praticantes de votar de manhã. Deveremos também proibir a celebração da missa nos dias de eleições? Dependendo da religião que as pessoas professem com mais convicção (o cristianismo, o futebol ou a política), muitos devotos poderão não achar graça nenhuma a tais proibições. E em vez de levá-los a votar, a medida pode gerar ainda mais descontentamento com a democracia (ainda que seja só contra este género particular de democracia que temos).

Aliás, para a proibição poder surtir efeito, conviria proibir também todas as actividades de substituição que as pessoas podem encontrar para se entreterem, se forem privadas de ir ao estádio ou à igreja em dias eleitorais. Haverá que proibir a transmissão televisiva de jogos estrangeiros ou de ofícios religiosos, e mesmo a televisão em geral, as emissões dos canais por cabo e por satélite, os videojogos, a internet, o sexo diurno, os concertos, os cinemas, todos os outros eventos culturais ou desportivos que sobrem e, no limite, até mesmo levar os miúdos ao parque infantil ou convidar os familiares e amigos para almoçar. Tudo o que possa distrair-nos do nosso dever cívico de votar será um pecado democrático e, portanto, merecedor de interdição. Ou seja, para pressionar os cidadãos desinteressados a fazer uma peregrinação às urnas seria necessário proibir quase tudo e, já agora, acrescentar uma fatwa com ameaças de lapidação. E mesmo assim, sabe-se lá o resultado.

Este raciocínio que acabei de expor tem o seu análogo noutro que se faz em matemática quando se pretende pôr em evidência que uma certa ideia não é boa: chama-se demonstração por absurdo. E o absurdo de proibir os jogos de futebol em dias de eleições para levar as pessoas a votar é de tal ordem que nem precisa de ser transformado em teorema, porque salta logo aos olhos. A causa de tanta gente não votar não é nenhum de muitos impedimentos lúdicos imagináveis, mas sobretudo uma de duas: desinteresse de o fazer ou não querer mesmo fazê-lo. Contra isso não há proibições que valham.

Se o governo quer pressionar as pessoas a votar, mesmo sem terem motivação para isso, então seja coerente: torne o voto obrigatório e imponha uma multa a quem não cumprir. E aguente-se depois com a contestação. Como pretexto, aliás idêntico ao que já se usou noutros países, poderá alegar que é justo que quem não cumpra o seu dever cívico de votar (mesmo que nulo ou branco) tenha o ónus de contribuir para os custos do acto eleitoral, através da multa que lhe será imposta. Assim, quem não se der à maçada de ir à urna terá o incómodo relativamente menor de ir ao bolso e prescindir duns trocos.

Mas toda esta polémica é artificiosa e ridícula. Nada impede ninguém de, no mesmo dia, ir à missa, ir à urna e ir ao estádio, não necessariamente por esta ordem, e ainda sobra tempo para o sexo diurno e outros devaneios. O problema com a democracia, como toda a gente bem sabe, é outro. E não serão mais uns quantos milhares de votos que irão resolvê-lo.

No entanto, esta recente febre de proibições em prol da democracia levanta uma outra questão: o direito individual à liberdade de escolha. Se o voto for tornado obrigatório, o cidadão ainda pode escolher entre ir votar ou pagar a multa. Mas quando começam a proibir-lhe o que o motiva fazer, nunca se sabe qual será o limite das proibições. De qualquer modo, está-se a restringir a escolha. O melhor mesmo é não enveredar por aí, nem mesmo começando por simples jogos de futebol, porque a lógica das proibições tem o feio costume de tomar o freio nos dentes e não saber quando deve parar. Historicamente, não faltam exemplos disso. E apesar de a História nunca se repetir, por vezes deixa-se imitar muito bem.

sábado, 5 de agosto de 2017

Ideias para Lisboa

“Em lugar de falar dos candidatos, parece-me mais útil aproveitar esta época eleitoral para fazer sugestões para Lisboa.” (Sim, alguém já o disse antes, tal e qual, daí as aspas.)

Uma delas é a cobertura da Rua Garrett, da Rua do Carmo e da Rua Nova do Almada com uma grande clarabóia de vidro, à semelhança da galeria Victor Emanuel, em Milão, tornando o Chiado um grande centro comercial de lojas tradicionais.

[A sugestão do vidro não é vinculativa, claro. Poderia ser qualquer outro material com propriedades semelhantes, mas mais adequado para servir de antídoto ao calor diurno no Verão. O projecto não iria descaracterizar a zona, antes pelo contrário; iria valorizá-la e deixaria a actividade comercial desta protegida dos períodos de chuva.]

Outra poderia ser a transferência da Feira do Livro para a zona do Rossio, Praça da Figueira e Martim Moniz, ligando as três praças, e assim dando ao centro um ambiente de festa – ao mesmo tempo que a Feira beneficiaria da presença de esplanadas e lojas à volta (abertas à noite) que a tornariam mais atractiva. E o facto de aquela zona ser abrigada e plana, ao contrário do Parque Eduardo VII, que é inclinado e ventoso, seria um factor de comodidade para os visitantes.

[Esta ideia admite uma alternativa. Como a sua deslocação temporal para Maio tornou a feira do Livro uma feira de primavera, poderia naquela época do ano manter-se onde está. Mas por que não realizar uma outra Feira do Livro que seja uma feira de outono, realizada essa em pleno centro da cidade? Com a enorme movimentação de gente que Lisboa tem actualmente, duas feiras por ano não seriam demais.]

Uma terceira ideia tem a ver com a difícil ligação ao rio em algumas zonas da cidade. Há uma faixa até Algés que não tem praticamente contacto com ele, essencialmente porque a linha férrea funciona como uma barreira de arame farpado que corta o acesso à zona ribeirinha. É o que acontece, por exemplo, em Belém (onde se situa parte importante da oferta turística lisboeta) e zonas adjacentes.

Em tempos defendeu-se o desnivelamento da linha férrea no troço entre o Cais do Sodré e Algés, mas depois chegou-se à conclusão de que esse investimento não seria rentável para a companhia ferroviária.

Há, contudo, uma alternativa que parece ser economicamente mais viável: acabar com o comboio entre o Cais do Sodré e Algés e prolongar até aqui o Metropolitano, criando uma interface fácil e rápida entre as duas vias (isto, sublinhe-se, sem aumentar os custos do transporte misto para os utentes regulares). 

Feito isso, e com acesso facilitado ao rio, uma faixa considerável da cidade iria renascer para o lazer e o turismo, livrando-se do abandono e da degradação que a perseguem há décadas.

Ideias originais? De modo algum. Elas foram lançadas, há mais de dez anos, e quase pelas mesmíssimas palavras (excepto alguns acrescentos meus), por aquele que é um dos mais conhecidos e lúcidos jornalistas portugueses (conotações e controvérsias à parte) e que é também, embora nem todos o saibam, arquitecto de formação. Refiro-me a José António Saraiva, então director do semanário Sol. Trata-se de um homem com ideias notáveis e que durante muitos anos fez, à sua conta, uma boa parte da agenda política e mediática do país, com as suas crónicas semanais (primeiro no Expresso e depois no Sol). Curiosamente, vá-se lá saber porquê, a discussão em torno destas ideias para Lisboa nunca pegou de estaca.

Agora que estamos de novo em ambiente de pré-autárquicas, vale a pena relançar o que ele sugeriu então. Sem ideias preconcebidas.

Para finalizar, resta-me esperar que o autor das ideias não me processe por plágio. Não foi essa a intenção, juro, embora em grande parte me tenha limitado a transcrever o que ele escreveu. O mérito é todo dele, portanto. O seu a seu dono. (E dito isto, espero obviamente ser perdoado, não obstante a minha enorme avareza nas aspas.)

Ah, já me esquecia: a citação logo no início também é dele. 

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

A política do ziguezague

O PSD e o CDS estão a aprender uma dura lição, que desde o início deveria ter sido óbvia: a de que num regime de alternância democrática, todas as medidas de um governo podem ser revertidas por outro. Basta que surjam circunstâncias favoráveis.

Não é certo, contudo, que o PS e a sua escolta parlamentar já a tenham aprendido também.

Enquanto estão em posição de força e dão largas a uma certa arrogância decisória, muitos governantes se esquecem dessa verdade fundamental. Empenham-se em usar quase discricionariamente o poder que detêm, dentro dos moldes institucionais em vigor e das balizas impostas pelas coligações que lideram, esquecendo que o próprio poder tem os seus limites temporais, por vezes mais curtos do que se imagina. E enquanto parecem ainda longínquas as próximas eleições, perseveram no erro de acreditar que o eleitorado tem memória curta e irá decerto relevar os vários desapontamentos e as revoltas entretanto acumuladas, graças ao encantamento hipnótico de algumas benesses concedidas pouco tempo antes do novo sufrágio. Por vezes, enganam‑se.

Que sonham agora os partidos empurrados para a oposição? Reverter muitas das medidas do actual governo. Enquanto isso, queixam-se das reversões que este vai fazendo. Ou seja, estão na fila de espera para a continuação de uma política de ziguezague, que só faz o país perder tempo e recursos.

Um certa doença crónica é comum a ambos os lados da barricada: a aversão aos consensos, a rejeição de soluções equilibradas que não dêem depois azo a reviravoltas bruscas.

O governo anterior, e o PSD em particular, nunca deveriam ter resvalado para um grau de insensibilidade social que permitiu conotá-los com uma impopular orientação neoliberal, que lhes vai ficar colada à pele por muito tempo. Deveria ter havido mais comedimento e bom senso em muitas das decisões drásticas que foram tomadas, desde “o enorme aumento de impostos” até ao “ir além da troika”…

Como se tem visto nos últimos tempos, a consolidação orçamental continuou, mesmo abdicando de algumas medidas draconianas que pareciam não ter alternativa. A austeridade de esquerda trocou os cortes em salários e pensões por cortes nos recursos atribuídos aos serviços públicos (e convém notar cinicamente que os assalariados e pensionistas votam, enquanto os serviços públicos não). A carga fiscal continua elevadíssima e a dívida pública continua a crescer, mas o actual governo teve a habilidade de trocar as voltas a uma boa parte do descontentamento popular, diminuindo ligeiramente os impostos directos e indo buscar mais receitas a taxas e impostos indirectos, repondo rendimentos às pessoas e fazendo novas contratações de pessoal enquanto cortava sem dó nem piedade na despesa de muitos departamentos estatais e no próprio investimento público. Está provavelmente a pecar em sentido contrário ao do governo anterior, distribuindo liberalidades por muitas clientelas do Estado.

Mas não nos iludamos: a dívida pública continua a crescer. O Estado continua a pedir dinheiro emprestado para poder distribuir uma parte dele por tantos bolsos ansiosos. E os excessos que estão a ser cometidos agora arriscam-se a ser a catapulta que um dia trará a oposição de novo ao poder.

Ora muito do que se fez antes, assim como muito do que se faz agora, resulta de meras bandeiras ideológicas e das cegueiras que lhes andam associadas. As rivalidades tribais da democracia sobrepõem-se ao bom senso.

Esquerda e direita são os dois conceitos mais tóxicos da nossa política. São eles que nos condenam a uma evolução económica e social em ziguezague. E o ziguezague, como nos ensina a geometria mais elementar, está longe de ser o caminho mais curto para o progresso.

Moral da história: este país precisa desesperadamente de um regresso ao centro político, que entretanto ficou quase despovoado, espécie de “terra de ninguém”. As ortodoxias de turno em ambos os hemisférios políticos renegam categoricamente o centro-esquerda e o centro-direita (talvez pensem que o Diabo afinal possa deambular por aí…). E apesar de haver até algum espaço político desocupado para uma nova formação ao centro, quando se ouve falar disso não passam de rumores pífios. Ninguém com crédito se chega à frente.

Infelizmente, há também muita gente que pensa que o centro político é apenas uma espécie de indecisão entre a esquerda e a direita. Mas não é. É uma outra forma de estar na política e de procurar soluções (em princípio, menos parciais e menos transitórias) para os problemas. 

sexta-feira, 28 de julho de 2017

Alguns equívocos por desfazer

Ser tolerante não implica permitir que se advogue publicamente a intolerância sectária e virar‑lhe as costas com indiferença, alegando o direito de cada um pensar como quiser.

Ser pacifista não implica condescender em que alguém defenda publicamente ou pratique discretamente alguma forma de violência e fique impune, sem que nenhuma força se lhe oponha.

Ser multicultural não implica consentir que os valores e os costumes dos outros atropelem os nossos com o maior à-vontade do mundo.

Ser defensor de uma imigração controlada e selectiva não significa ser xenófobo ou racista, pois quem o é não quer imigração nenhuma.

Ser laico não implica permanecer neutro perante as doutrinas, os credos, as intenções e as iniciativas dos fundamentalismos religiosos, pois esse tipo de neutralidade acaba por se traduzir sem querer em conivência tácita.

Ser democrata não implica atribuir levianamente a cidadania ou o direito de voto a qualquer estrangeiro que resolva assentar arraiais por cá.

Ser humanista não implica dar a imigrantes ou refugiados mais protecção e apoios do que damos aos nossos concidadãos pobres ou idosos.

Ser internacionalista não implica prezar tão pouco a nossa nacionalidade que a ofereçamos de bandeja a quem só a quer para poder melhorar de vida, de preferência noutro país europeu.

Ser progressista não implica pautar-se por dogmas ideológicos e desdenhar as recomendações do bom senso, pois o progresso é invariavelmente avesso a ortodoxias arrogantes.

Ser idealista não significa virar completamente as costas ao realismo (nem vice-versa).

Ser solidário não implica sentirmo-nos obrigados a fazer por desconhecidos ou estrangeiros o que percebemos que eles nunca estariam dispostos a fazer por nós.

Ser cosmopolita ou de espírito aberto não implica fingir que acreditamos que os nossos padrões culturais valem o mesmo que os de quaisquer outras pessoas vindas doutras paragens, sobretudo se oriundas de países subdesenvolvidos.

Ser actual não implica estar na crista da onda de todas as imbecilidades que se tornam moda.

Ser europeísta não implica acreditar que as nações e as nacionalidades perderam a sua razão de existir.

E talvez mais importante ainda do que o resto: ser inteligente ou solidário (ou julgar que se é) não justifica considerar que todos os que pensam de modo diferente são estúpidos ou mal‑intencionados. É verdade que a inteligência e o altruísmo andam muito mal distribuídos neste mundo, mas nem sempre estão do lado de quem mais deles faz alarde. Talvez até pelo contrário.

E quanto a saber como se distinguem conceitos e preconceitos, isso daria pano para mangas, colete e sobrecapa. Já todos vimos diversa gente muito preconceituosa a combater supostos preconceitos, o que nos deveria servir de vacina. Mas não deixa de ser curioso constatar que muitos dos que aceitam e propagam o relativismo cultural, que interdita qualquer hierarquia de culturas, não alinham pelo relativismo conceptual, no sentido de aceitar que as concepções alheias possam valer tanto como as próprias. O “progressista” típico, sempre tão tolerante em matéria de valores e costumes exógenos (sobretudo quando se trata de imigrantes, refugiados e minorias étnicas ou religiosas) tende a ser arrogante e insultuoso em relação aos seus próprios concidadãos que pensam de maneira diferente. Bastante incoerente, não? E também esclarecedor.

domingo, 9 de julho de 2017

Portugal, sociedade fechada

Uma certa filosofia política habituou-nos a chamar sociedades abertas àqueles regimes políticos em que as pessoas elegem os seus líderes, atribuindo-lhes o encargo de zelar pelos interesses gerais de todo o eleitorado e de equilibrar os interesses conflituantes das várias partes dele.

Em contraste, são sociedades fechadas aquelas em que os líderes, por usurpação do poder ou por abuso dele, se dedicam a manipular ou tiranizar a maior parte dos seus concidadãos, sejam eles tidos como eleitores livres ou súbditos, para proteger e favorecer os interesses de um círculo relativamente fechado.

Digo “relativamente fechado” porque ele não o é em absoluto: há, em geral, alguma porta que se abre para aqueles que se mostram diligentes na gestão desse favorecimento, ou hábeis no seu próprio enriquecimento pessoal, sendo-lhes assim permitido fazer também parte desse círculo.

Nas sociedades fechadas, mesmo quando há eleições fidedignas, o que o eleitorado verdadeiramente escolhe é quem o vai defraudar na governação dos interesses comuns e particulares.

Portugal, nesse sentido, é uma sociedade fechada. Não só os líderes eleitos não conseguem satisfazer as expectativas, como permitem intencionalmente que as várias elites capturem a democracia e a riqueza, num fenómeno perverso que tende para um gradual açambarcamento.

Na política portuguesa, o tal círculo relativamente fechado tem-se chamado “centrão” – o que, acreditem-me, é algo muito diferente do centro político.

Um e outro apenas se assemelham no nome. Enquanto o centro político genuíno procura criar e preservar equilíbrios sociais, protegendo os interesses gerais e doseando adequadamente os interesses particulares, o “centrão” tem sido (e abrindo bem os olhos, continua a ser) a grande mola impulsionadora dos desequilíbrios e do crescimento deles. E refiro-me aos desequilíbrios todos: de poder, de riqueza, de estatuto, de benefícios e de favorecimento legislativo.

Nas sociedades abertas, o principal obstáculo a contornar costuma ser a incompetência, venha ela da incapacidade técnica ou do enviesamento ideológico. Nas sociedades fechadas, como a nossa, o que prepondera é a corrupção. Mas nada impede que uma e outra andem de mãos dadas, porque até na corrupção se pode ser muito incompetente.

É esse, infelizmente, o nosso caso. Há muito tempo que somos vítimas de uma imponderável combinação de corrupção e incompetência.

Para vencer a primeira, teremos de mudar a justiça e as mentalidades. Para vencer a segunda, teremos de reformar profundamente o sistema político.

sábado, 6 de maio de 2017

A União Europeia, o Brexit e os demónios à solta

É confrangedora a curteza de vistas com que a União Europeia está a tratar a questão do Brexit.

Talvez a saída do Reino Unido seja um erro histórico, como alguns dizem. Lamentavelmente, a mim parece-me que não. Mais do que outros motivos, a recusa das instituições europeias em refrear a imigração descontrolada, perseverando numa política liberal de acolhimento e de circulação quase irrestrita de migrantes e refugiados, ademais impedindo obstinadamente o Reino Unido de lançar mão de algumas defesas necessárias contra os excessos migratórios de que tem sido alvo, na prática não lhe deixou outra opção. Não apenas por vontade da maioria do seu pessoal político, mas por vontade referendada da sua população, cada vez mais farta de sentir o seu país descaracterizado e cada vez menos seu, com o ónus adicional (e relativamente traumático) de uma ex-potência imperial ver as suas leis cada vez mais feitas fora de portas. Nestas coisas, os aspectos psicológicos e históricos contam sobremaneira.

Depois de séculos de férrea tradição diplomática e empenho militar em manter na Europa uma espécie de “balança de poder”, destinada a evitar o advento de uma qualquer hegemonia continental que lhe fosse hostil e que ameaçasse a sua independência, os seus interesses comerciais ou as suas possessões coloniais, o Reino Unido tem sido relativamente impotente para travar uma hegemonia partilhada franco-alemã, que leva por arrastamento as respectivas zonas de influência e está a conseguir moldar a seu modo as regras da convivência europeia. Estas regras têm vindo a consolidar-se, não obstante o descontentamento que grassa nalguns países do sul e do leste, por efeito natural do peso económico e demográfico da Alemanha e da França, acrescentado pelos apoios dos outros países de expressão francesa ou germânica. Na prática, estas duas potências estão paulatinamente a conseguir, por via política e negocial, e graças também ao seu músculo financeiro e diplomático, o que durante muitas gerações não conseguiram pela via militar: impor a sua vontade na Europa. Fazem-no por enquanto de forma partilhada e mais ou menos concertada, embora se vá tornando evidente que a própria França está a ficar para trás nesta liderança, vulgarmente designada como o “motor europeu”. E, de mansinho, um projecto ainda não assumidamente federal vai assim ganhando corpo, à revelia das identidades e soberanias nacionais, cada vez mais desgastadas, sem que nunca se tenha tirado a limpo, em escrutínio democrático claro, se os europeus preferem “uma Europa das pessoas”, “uma Europa das regiões” ou “uma Europa das nações”, para além de outras hipóteses possíveis. Ou seja, vamos marchando em frente, com tropeções aqui e ali, conforme os dirigentes alemães e franceses vão querendo, acolitados por outros países que sempre se apressam a querer o mesmo que eles.

O Reino Unido, sendo uma das três grandes potências desta nova Europa em vias de unificação, sempre guardou reservas em relação ao casamento de conveniência das outras duas, não apenas por uma questão de ter finalmente de enfrentar uma hegemonia relativamente adversa, mas porque as tradições britânicas, bastante mais liberais do que as do continente em diversas matérias políticas e económicas, se têm por vezes chocado de frente com os excessos de regulamentação e burocracia impostos pelos continentais, através das novas instituições europeias. Mas os grandes pomos de discórdia têm sido as orientações encapotadamente federalistas dessa recente supremacia franco-alemã e a torrencial invasão migratória que tem assolado as Ilhas Britânicas, com inúmeros efeitos negativos, sem que estas possam legitimamente travá-la no actual quadro jurídico da União.

Recusando-lhe um acordo que pudesse acomodar melhor a permanência do Reino Unido na UE, nem que fosse ao abrigo de um qualquer estatuto de excepcionalidade (que nem sequer seria caso único, porque outros países o têm sob diversas formas), e fazendo vista grossa aos níveis de descontentamento interno e eurocepticismo que por lá grassam, as instâncias europeias acabaram por encurralar o Reino Unido numa alternativa extrema, a de escolher entre a submissão ou a saída, confiando sempre que prevaleceria eleitoralmente a primeira. Enganaram-se. E pior do que isso, não estão agora dispostas a reconhecer o erro e emendar a mão, o que, bem vistas as coisas, até nem seria demasiado difícil e problemático no cenário de uma Europa a várias velocidades. Bem mais dramática, como já está sobejamente à vista, é a avalanche de consequências que essa intransigência ameaça provocar, e ainda a procissão vai no adro.

No fim de contas, e sem exagero, pode dizer-se que foi a União Europeia, com a sua teimosa inflexibilidade, que precipitou este desfecho, que aliás se arrisca a não ser um episódio isolado. Mas os líderes e representantes dos outros países da União preferem não ver as coisas assim, pelo menos até serem mais seriamente confrontados com a real possibilidade de saída de algum outro país (e da próxima vez, quem sabe, talvez um dos países fundadores). Não esqueçamos nunca que foi na França e na Holanda que o Tratado Constitucional foi rejeitado em referendo.

Independentemente do que se pense nesta matéria, a UE está agora a querer demonstrar a força dos fracos, isto é, a querer fazer do Reino Unido um caso de punição exemplar para que o fenómeno não se repita, mas no fundo consciente de que a sua coesão está mais fissurada do que convém admitir e que enfrenta sérios riscos de novas brechas. Como se tem visto, o descontentamento instalou-se em muitos países, vai em crescendo e a União já não parece ter a mesma força atractiva que teve no passado. Nada que não se possa remediar, mas por enquanto é esta a situação.

Ora talvez seja um erro histórico bastante maior a demonstração de arrogância e espírito retaliatório que a União Europeia está actualmente a fazer em relação ao Reino Unido. Algo de que talvez venha a ter motivos bastante fortes para se arrepender, mais cedo do que tarde.

O bom senso aconselharia a que se tentasse manter o Reino Unido politica e economicamente tão próximo quanto possível da União Europeia, conservando-o numa zona de comércio livre, não necessariamente pensando na eventual hipótese de um futuro regresso ou de uma reversão do Brexit antes de ele estar definitivamente consumado, mas porque seria bem melhor manter uma estreita parceria com o Reino Unido do que vê-lo constituir ou integrar um bloco económico rival, ainda por cima bem aqui ao lado. Algo que este país, pelas suas relações privilegiadas com a Commonwealth e com todo o restante mundo de língua inglesa, muito especialmente os EUA, pode conseguir sem excessiva dificuldade. E com uma agravante: é que pode vir a funcionar como uma espécie de paraíso fiscal e polo de captação de investimento, com algumas vantagens competitivas na atracção dos negócios, mercê de um espírito económico mais liberal, mais pragmático e menos propenso a regulamentações excessivas. Em suma: a cooperação seria bem melhor que o duelo, que não deixará de infringir lesões a ambos os lados, seja qual for o lado que se ressinta mais.

Por outro prisma, a UE tem bem mais de quatro milhões dos seus cidadãos a viver e a trabalhar no Reino Unido, enquanto este apenas tem perto de um milhão instalado na UE. Convenhamos que se trata de um trunfo considerável: se as posições se extremarem em relação à concessão de vistos e ao direito de permanência, a UE ficará largamente a perder, tendo em conta não só a diferença dos números, mas também o facto de a economia continental ser em média menos dinâmica do que a britânica e, portanto, serem de esperar maiores dificuldades de reabsorção de um vasto contingente de regressados. E o problema poderá nem se colocar tanto pelo lado do Reino Unido, se as partes se encaminharem para um sistema de quotas iguais ou, em larga medida, menos favoráveis para os migrantes continentais do que a situação actual.

Há também a questão da defesa e segurança europeias. O Reino Unido tem sido, a uma considerável distância, a principal potência militar da União Europeia e aquela que possui os melhores serviços de informações. Passar a tê‑lo fora de um qualquer esquema europeu de defesa, já de si ainda débil e embrionário, não só fará as delícias dos potenciais inimigos da Europa como pode vir a revelar vulnerabilidades difíceis de colmatar a curto prazo. Mas quase passa sem dizer-se que, por enquanto, a UE não fareja perigos sérios ou iminentes nas suas fronteiras externas e por isso não parece muito preocupada, vivendo naquela típica descontração próxima da inconsciência. Ainda não percebeu que enfrenta outras ameaças além da Rússia e do terrorismo, que de resto também não são levadas tanto a sério como a retórica política e diplomática pode fazer crer. A UE continua a comportar-se, a começar pelos seus orçamentos de defesa, como se nenhum perigo sério andasse a rondar-lhe as fronteiras. Ainda não percebeu os riscos que corre a sul nem a ameaça potencial que pode vir a representar a Turquia, se as relações com este país azedarem mais ou se vierem a tornar-se necessárias medidas repressivas, restritivas, desfavoráveis ou consideradas discriminatórias contra os milhões de migrantes turcos que já assentaram arraiais na União. Ninguém pensa nisso, mas a diáspora turca pode vir a ser uma questão tão explosiva como o foi em tempos a diáspora alemã.

Os iluminados de Bruxelas também ainda não anteciparam as desvantagens colossais de o Reino Unido e seus parceiros comerciais mais próximos virem a estreitar mais os laços comerciais com os EUA do que com a Europa continental, ou de aquele poder agir mais autonomamente em relação à China e à Índia, no que respeita à celebração de tratados comerciais e financeiros. A táctica mais consagrada e sábia sempre foi a de o poder vigente manter os recalcitrantes próximos de si e debaixo da sua alçada, para poder controlá-los melhor, mas o que a UE está a fazer, ostentando poses de quase expulsão punitiva, é exactamente o contrário: é empurrar o Reino Unido para a opção que esta já teve de assumir em face da hostilidade manifesta que lhe têm votado, ou seja, o hard Brexit, que pelo menos o deixará de mãos livres para perseguir autonomamente os seus interesses, por mais antagónicos que sejam com os da UE. E ou muito me engano ou não passará muito tempo até que se torne evidente que tal opção acabará por ser uma bênção para o Reino Unido, tendo feito da sua deserção um caso de sucesso, com o impacto indesejável que tal facto poderá vir a ter noutros países da União já não muito felizes com a sua integração (ou, pelo menos, com o grau de integração já existente). Se assim for, a UE arrisca-se a que o feitiço se vire contra o feiticeiro, incentivando nas opiniões públicas de outros países-membros o desejo de sair, em vez de o desencorajarem. E quanto maiores as retaliações agora, maior parecerá depois o eventual sucesso britânico.

A ver vamos, como se costuma dizer. Entretanto, espera-se do governo português, até pela ancestral aliança que temos mantido com a Inglaterra, e que já tão útil nos foi por diversas vezes, que contribua para moderar os ânimos e contrariar o espírito retaliatório que ameaça vir a ensombrar as negociações do Brexit e o perfil político da Europa.

Quanto ao mais, futuramente se verá se é a UE que faz mais falta ao Reino Unido ou se é este que faz mais falta à União. Eu não aposto as fichas todas em nenhuma destas alternativas, mas acredito mais na segunda. E, se calhar, tal poderá suceder por motivos que hoje ainda mal suspeitamos. A História é fértil em pregar partidas dessas, contrariando as certezas e as probabilidades defendidas pelos arrogantes que só enxergam o dia imediato.

Entretanto, como não podia deixar de ser, não é estranha a toda esta crescente hostilidade ao Reino Unido a caça desenfreada aos lugares de influência que este ainda ocupa nas instituições europeias, às grandes sedes empresariais que ainda operam no seu território (mas que podem querer deslocalizar-se por causa do Brexit e que são alvo de cobiça) e a um naco substancial das transações financeiras intermediadas pela praça financeira de Londres. Há ainda a apetitosa questão da redistribuição dos assentos que vão ficar vagos no Parlamento Europeu e que terão de ser rateados pelos outros Estados membros. Na sequência deste cerrar de dentes contra o país “desertor”, ainda vamos provavelmente assistir a muitas brigas de bastidores, mesmo antes de o Reino Unido levantar de vez o acampamento, para ver quem fica com os despojos. Apesar disso, como convém ao lado público da política e da diplomacia, os discursos de união e consenso continuarão quase em uníssono.

Como já aconteceu por diversas vezes no passado, os europeus continentais estão de novo a menosprezar a determinação e a capacidade de resistência dos britânicos. Com o pragmatismo que os caracteriza, hão-de acabar por resolver os problemas que lhes criarem muito mais depressa e melhor do que a União Europeia tem conseguido resolver os seus. Terão, aliás, muito mais flexibilidade para isso, livres de muitos dos constrangimentos que embaraçam as restantes economias europeias. E têm vários outros trunfos para jogar, para além da possibilidade de adopção de práticas de “dumping” fiscal que lesariam as economias europeias da parte continental. Com a actual soberba proporcionada pela superioridade numérica e pela desproporção demográfica, a restante Europa a 27 não está a ponderar bem tudo o que tem a perder.

Em suma: seria mais proveitoso (e, sobretudo, menos perigoso) conceder um estatuto de excepcionalidade ao Reino Unido do que abrir esta tremenda brecha na coesão europeia. De qualquer modo, o descontentamento com o descontrolo migratório está a crescer a olhos vistos e vai confrontar a UE com novas crises graves. Mais cedo ou mais tarde, talvez mesmo antes de vir a perfilar-se no horizonte o risco iminente da saída de qualquer outro país membro, terão de ser adoptadas algumas restrições temporárias à livre circulação e residência de pessoas, para evitar males maiores. E quando tal acontecer, muitos se interrogarão tardiamente por que não se enveredou logo por essa opção no caso do Reino Unido, causadora de bem menos danos do que a saída deste. Para já, o que é previsível é que a retórica extremamente agressiva e os comportamentos retaliatórios vão tornar a União ainda mais odiosa, não só aos olhos da população das Ilhas Britânicas, como aos de todos os outros eurocépticos, quer se sintam ou não solidários com o descontentamento britânico.

Já que tal imagem pegou de estaca na retórica política em uso, pode agora dizer-se que é nas amargas circunstâncias de um divórcio litigioso que pode aferir-se melhor quão fiável era a afeição conjugal. Para começar, as instâncias europeias deveriam logo ter enveredado por um divórcio amigável, por mútuo consentimento e com equitativa partilha de interesses; mas pelas declarações já vindas a lume, há quem esteja obstinado em que sejam o ressentimento e a vingança a ditar os termos. Se as coisas tomarem esse rumo, o que vier a passar-se poderá ser muito educativo para o resto da Europa, mas talvez não do jeito que os líderes europeus agora imaginam.

A procissão ainda vai no adro, dizia eu. Mas ainda o andor mal começou a mover-se e, como sinal premonitório, já estamos a assistir ao regresso das rivalidades territoriais europeias. Isto dá que pensar. E o primeiro pensamento que se impõe é que ainda é tempo de arrepiar caminho. O Reino Unido deveria ser tratado com compreensão e afabilidade, até pelo muito que a Europa lhe deve. Mas é absurdo que aquele país esteja a exercer um direito legítimo, aliás previsto nos tratados, e se chegue ao ponto de lhe exigir uma espécie de reparação de guerra. A Europa enlouqueceu de novo?

sábado, 8 de abril de 2017

Sinal de intolerância

Quando alguém se atreve hoje a falar contra os excessos migratórios, logo outro alguém o acusa de racismo ou xenofobia. É como defender que se beba com moderação e ser imediatamente acusado de ser partidário da Lei Seca.

sábado, 25 de março de 2017

O que é o populismo, afinal? (3)

Em abstracto, podem distinguir-se três perspectivas básicas sobre a natureza do populismo. E se duas já bastariam para turvar um pouco as águas, imagine-se o resultado com mais.

Para uns, o populismo é uma ideologia que considera a sociedade dividida em dois campos antagónicos e inconciliáveis, o povo e a elite (ou, no plural, as elites), e que preconiza alguma espécie de reacção popular, seja ela uma insurreição ou uma revolta eleitoral, contra o “sistema vigente” (o famoso establishment) e aqueles que o controlam, isto é, contra a “casta dominante”, os ricos, os privilegiados, os poderes formais e os poderes fácticos instituídos, em suma, contra todos os que mandam ou se movimentam nos meandros do poder, supostamente apenas em proveito próprio ou em prol de um intrincado cartel de interesses.

A sua tónica geral seria a condenação multifacetada das elites, pela sua ganância ou egoísmo, pela sua corrupção ou incompetência, pela sua incapacidade ou negligência em promover o bem-estar geral. E daí derivaria a urgência de subverter ou reformar radicalmente o próprio sistema político e as orientações tradicionalmente seguidas nas políticas sectoriais pelos partidos predominantes, fazendo prevalecer a vontade popular e os interesses da “maioria silenciosa” (entendida aqui sem quaisquer conotações específicas, apenas como menção genérica ao vasto número de pessoas a quem apenas se pede o voto e que logo em seguida se ignora, por que não é para elas que se governa e se faz política).

Para outros, o populismo não corresponde a uma ideologia em concreto, mas a uma forma de fazer política, e é por isso que surgem populismos em todos os quadrantes (à esquerda, à direita e ao centro). O que mais a caracteriza é o aproveitamento meramente táctico dos descontentamentos existentes, com uma dose generosa de exaltação e oportunismo, extremando posições e radicalizando a linguagem, explorando as emoções e os sentimentos mais básicos das pessoas comuns, introduzindo uma conflitualidade artificial nas pequenas fricções sociais, criando cenários irreais ou fazendo promessas inviáveis, distorcendo os factos e o seu significado, geralmente com recurso a uma demagogia capciosa e a uma retórica simplista, tudo isto guarnecido com uma aparente ausência de visão estratégica e com um reduzido naipe de objectivos definidos, jogando na própria fluidez e relativa indefinição para poder concentrar em poucas questões controversas um escasso programa político, onde desaguem algumas das queixas e frustrações mais comuns entre a população.

Mas há uma espécie de “terceira via” das interpretações do populismo que é em parte uma combinação das duas anteriores e, noutra parte, um acrescento a ambas. Trata-se de admitir que o populismo é uma certa forma de fazer política que tem um núcleo duro de doutrina (ou, pelo menos, de ideologia) e que também acrescenta algo ao debate político, trazendo para a ribalta os interesses e as ideias das pessoas comuns (ou de uma boa parte delas) que são habitualmente menosprezados pelas elites, em geral mais vocacionadas para implantar a sua mundivisão do que para respeitar o senso comum e mais empenhadas em prosseguir os seus interesses e carreirismos do que em pugnar pelo interesse geral.

Nesta perspectiva das coisas, torna-se portanto quase natural enfatizar o princípio da soberania popular e dar voz a grupos que não se sentem adequadamente representados pelo poder político instituído ou pelos tradicionais partidos de oposição, acusados de abraçar, cada um a seu modo, causas e medidas “politicamente correctas” (ou seja, estereotipadas e de matriz ideológica) que não espelham o sentir ou as convicções de grande parte da população, nem as suas necessidades, nem as suas reais preferências.

Ora é preciso reconhecer que, se o populismo dá voz a grupos e tendências que não se sentem representados nos partidos e coligações que habitualmente alternam no poder político, então ele funciona como um correctivo democrático, ao promover a politização aberta de questões que tendem a ser ignoradas ou menosprezadas, mas que encontram eco em muitos votantes. No caso dos populismos de esquerda, costumam ser sobretudo as desigualdades económicas gritantes e a falta de protecção de direitos individuais. No caso dos populismos de direita, costumam ser sobretudo as consequências dos excessos migratórios e a preservação da identidade nacional. E no caso dos populismos de centro, pode ser alguma combinação de ambas estas tendências ou a mera afirmação das vozes moderadas ou híbridas que tendem a ser desdenhadas ou escarnecidas em sociedades crescentemente radicalizadas. Mas está sempre presente um certo denominador comum, que é a alegada incapacidade das elites instaladas para actuarem em sintonia com as necessidades, as preocupações, os anseios e as expectativas das pessoas comuns, assim esvaziando na prática o sentido do seu voto.

Esta terceira interpretação do populismo parece ser a que oferece mais substância.
Se o populismo não tivesse uma ideologia estruturada, por mais rudimentar que fosse, seria difícil distingui-la da mera demagogia. Mas tem.
Se o populismo não tivesse uma estratégia, mesmo que só implicitamente assumida, seria difícil distingui-lo do mero oportunismo político. Mas tem.
Se o populismo não tivesse factos e razões a alimentar fartamente a sua capacidade de persuadir e expandir-se, não alastraria como fogo na palha. Mas tem.

Por estes três motivos, o que de mais sensato as “elites” podem fazer, enquanto é tempo, é trazer para o centro do debate político, na sua inteira verdade e crueza, tudo o que está a contribuir para a proliferação do populismo, assumindo honestamente que não há fumo sem fogo e que são necessárias soluções urgentes para vários problemas que há muito andam a ser negligenciados. Mas, ao dizê-lo, refiro-me aos problemas tal como os sentem e vêem as pessoas comuns e não os defensores de todas as ortodoxias em voga, sejam elas quais forem.

É que nisto de populismos é preciso ter muito cuidado: sabe-se como começam e como proliferam, mas não se sabe como acabam. No hipotético saldo final, podem trazer correcções à democracia ou constituir uma ameaça a ela. Tudo depende de diversos factores difíceis de controlar. Mas a púdica e hipócrita atitude agora mais em uso, do género “credo, cruzes, t’arrenego”, não vai contribuir para a pacificação social nem para a sanidade do funcionamento do sistema político. As pressões demasiado tempo comprimidas acabam por rebentar. E os danos são imprevisíveis.

quarta-feira, 15 de março de 2017

A grande ameaça

Se o actual descontrolo migratório continuar, não será a Europa a integrar os imigrantes, serão os imigrantes a desintegrar a Europa.

terça-feira, 14 de março de 2017

Feminilidade e feminismo

Ser feminista não impede ser feminina. Pelo contrário, é parte essencial.
Para uma mulher, adoptar comportamentos, preferências ou padrões tipicamente masculinos pode ser uma questão de escolha, de gosto ou de temperamento, mas não é necessariamente uma afirmação de si nem uma emulação de género. Pode ser apenas mimetismo, o que bem vistas as coisas, é a opção menos feminista que há, logo a seguir à humilhação e à subserviência.
O verdadeiro feminismo não esconde as semelhanças, mas assume as diferenças.

sábado, 11 de março de 2017

O que é o populismo, afinal? (2)

1. Há não muito tempo atrás, num semanário de grande tiragem, um jornalista descrevia o actual exercício da função presidencial por Marcelo Rebelo de Sousa como um populismo moderado e ao centro, chique e à portuguesa, somando apoios à esquerda e à direita, e distinguindo-se dos populismos radicais por não pretender crispar ou dividir, mas “fazer pontes, sarar feridas e somar energias”.

Logo à primeira impressão, deparamos aqui com três pequenas surpresas: primeira, numa era de populismos radicais e em que se constata a tendência para ver no próprio radicalismo um dos ingredientes fundamentais do fenómeno, é‑nos apresentada a noção de um populismo moderado; segunda, este é descrito como irradiando do centro e estabelecendo pontes, ou seja, mais ou menos equidistante dos extremos do espectro político; e terceira, trata-se de um populismo “chique”, isto é, popular mas não popularucho, com o seu quê de bom tom e bom gosto, não desagradando portanto às próprias elites e primando por um certo garbo interventivo, enfim, um populismo com estilo.

Para nosso aparente alívio, ficamos assim a saber que populismo não é necessariamente sinónimo de extremismo, conflitualidade ou grosseria. Valha-nos isso. Não obstante, embora esta descrição de um estilo político peculiar seja bastante ilustrativa, talvez não deva muito ao rigor dos termos. Há nela uma certa confusão entre populismo e a busca deliberada da popularidade. Pode haver pontos de contacto ou de intersecção entre as duas coisas, mas é bastante forçado falar de populismo quando a popularidade é obtida sem ser a qualquer preço, ou seja, com critério, com escrúpulo e com princípios. E sobretudo se não pretende minimamente subverter o establishment, mas apenas inundá-lo com a sua influência e condicioná-lo na sua actuação, sem qualquer desrespeito de normas constitucionais.


2. Mais recentemente, surgiu também na nossa imprensa um artigo traduzido de um prestigiado jornal inglês, no qual se falava dos riscos dos populismos centristas, convocando à parada exemplos tão heterogéneos como Berlusconi e Matteo Renzi, Beppe Grilo ou até o ex-chanceler alemão Gerard Schroeder, antecessor de Angela Merkel. O critério de uma tal mistura é bastante discutível. Mas, desta perspectiva, salta aos olhos que o centro político pode estar bem mais povoado de populismos do que desprevenidamente supúnhamos, se os tomarmos apenas como um exercício incaracterístico, inconsequente ou heterodoxo do poder, ou como a disputa dele por métodos irreverentes e retórica iconoclasta, desafiando a classificação estereotipada de esquerda ou direita e não encaixando nos padrões de actuação a que nos habituaram os partidos tradicionais.

No entanto, se adoptarmos este conceito simplista, chocamos com algumas dificuldades. Quando o critério principal da governação ou das várias oposições assenta na adopção das orientações que melhor sirvam o propósito de preservar ou disputar parcelas de poder, sem qualquer visão estratégica que contemple o interesse geral ou o avanço real do país, esgotando-se portanto no mero propósito de contentar ou aliciar eleitores e clientelas, pouco importa até o estilo utilizado, porque nesse caso o populismo infecta a própria substância da acção política. A maior ou menor sofisticação do aparato ideológico torna-se então um pormenor secundário, embora não de somenos. O poder é arvorado como um fim em sim mesmo, ou como algo gerador de recompensas, não como um meio para atingir objectivos definidos que se traduzam em progresso social, económico ou cultural. Trata-se, portanto, de uma apropriação indevida do poder democrático, que desvirtua a sua função e finalidade. E o que prevalece, nesse caso, não é a avaliação do mérito e realismo do que se faz ou pretende fazer, mas reunir sem grandes embaraços éticos todos os ingredientes de acção e de retórica que possam agradar a uma grande quantidade de eleitores, nem que para tal seja indispensável trapaceá-los. É a isso que assistimos correntemente, é esse o pathos actual de muitas escaramuças partidárias.

Ora deste tipo de populismo mais básico está o panorama político repleto. E nem era necessário que alguém salientasse que ele não é de forma alguma isento de riscos, embora não sendo extremista. As populações dos países mal governados que o digam. Mas torna-se difícil destrinçá‑lo da mera demagogia, senão por um único aspecto: é que à demagogia se concede ainda o benefício da dúvida de poder ser utilizada em prol de alguma visão estratégica, enquanto tal possibilidade se nega ao populismo. E é precisamente aí que reside o erro.

Não encontrar estratégia nos populismos em voga é cegueira voluntária. E assim como é deficiência de análise não distinguir entre populismo e demagogia, é-o também a utilização indiscriminada do termo para designar todos os movimentos políticos que medram à margem do espectro tradicional da representação política.


3. A demagogia não precisa de estratégia para prosperar. Basta-lhe o oportunismo de actuação e a habilidade táctica. No limite, pode até contentar-se com a mera fruição pessoal e clientelar do poder. Nem sequer precisa de uma ideologia consistente, basta-lhe saber manipular as opiniões e os humores de uma parte do eleitorado.

Mas alguns dos populismos que hoje singram não se limitam a acicatar ou aproveitar “estados de alma”, descontentamentos, irreverências ou “ideias fracturantes”. Podem ser uma insurgência contra o “politicamente correcto” ou contra qualquer tradicional “arco da governabilidade”, mas não é só disso que se alimentam nem é só por isso que engrossam. Apoiam-se num sentimento popular cada vez mais difundido, criam e alargam novos espaços de opinião pública, revelam uma sofisticação doutrinária e estratégica crescentes. E estão longe de visar o poder apenas como um fim em si mesmo.

Digamos mais: ao contrário do que muitos pretendem, estão longe de ser apenas um exercício de baixa política ou uma onda de irracionalidade que ameaça alastrar até conquistar maiorias ou tornar-se incontornável em futuras coligações de poder. Ao invés de muitos governos em funções, alguns dos chamados populismos sabem bem para onde querem ir e percebem minimamente o que é preciso reformar; e o seu ideário, pelo menos ao nível das lideranças, já não mostra menos consistência do que as cartilhas ideológicas professadas por directórios partidários de vários quadrantes.


4. Goste-se ou não, os populismos representam uma reacção cada vez mais enérgica a muitos erros e abusos que têm sido cometidos, não só na política interna dos países europeus, como na política europeia em geral (e com outros contornos, também na norte-americana). Erros e abusos esses que não falta quem queira perpetuar, apesar dos resultados que estão à vista, numa clara demonstração de prepotência da ideologia sobre o realismo. Mas a reacção gerada não consiste apenas em vago descontentamento que alguém se encarrega de tentar manipular ou encabeçar. Tem muito mais densidade do que isso.

Não é portanto assisado falar displicentemente de populismos sempre que surgem opiniões, movimentos ou lideranças que não encaixam no catálogo tradicional das opções ideológicas e partidárias. Não obstante a sua diversidade e diferentes graus de sofisticação intelectual, os populismos em ascensão têm mais consistência e fundamento do que se pretende atribuir-lhes. E apesar da atenção que lhes dedica, a imprensa em geral trata-os com desdém e revela em relação a eles uma certa ausência de espírito crítico que se traduz precisamente num claro excesso de criticismo. Não há, em geral, a preocupação de distinguir o trigo do joio e de perceber o que realmente se passa. O populismo parece um mal em si mesmo. Mas não. O mal em si mesmo é que fortalece cada um dos populismos. Contudo, estranhamente, poucos ousam nomeá‑lo com todas as letras. Porquê? Porque apesar de todas as muitas irreverências do nosso tempo, continuam a existir alguns tabus. Mesmo para a imprensa.


5. Entretanto, como pano de fundo, alastra um crescente mal-estar no mundo ocidental, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos da América, que tem causas idênticas, mas que é alvo das explicações maís díspares, muitas delas apenas estereotipadas, especulativas, impressionistas ou erráticas. Há uma resistência obstinada em apontar o dedo às verdadeiras causas dos populismos, dado que elas chocam de frente com o “politicamente correcto” dos nossos dias, em várias versões e quadrantes. E é também por isso que os chamados “populismos” (incluindo os que o são, os que apenas parecem sê-lo e os que arbitrariamente vêm sendo designados como tal) crescem simultaneamente à esquerda, à direita e ao centro.

Pode haver diferentes interpretações sobre a raiz dos problemas actuais. Mas uma coisa é certa: os rótulos superficiais e apressados sempre serviram para mascarar o pouco entendimento das coisas, umas vezes por mera incapacidade de entendê-las, outras vezes por falta de vontade. Os tabus políticos em vigor colaboram em ambos os casos.

Eis a questão fundamental que deveria preocupar-nos: que mal-estar geral é esse, tão intenso e omnipresente, que gera populismos em ascensão vertiginosa em tantos países quase em simultâneo? Não, não é a alegada disfuncionalidade do euro. Nem a globalização em abstracto. Nem a irracionalidade de certas políticas financeiras e monetárias. Nem tão-pouco o facto de o projecto europeu marcar passo e se acentuarem as divergências regionais. Tudo isso já existia antes de proliferarem os populismos. O fenómeno crucial é outro. Mas seja ele qual for, não encontra expressão nem resposta adequada nos partidos tradicionais. É por isso que emergem os outros, obviamente.

Esta impressionante vaga de fundo surge em contracorrente com alguns dos valores, códigos, catecismos, rituais, ilusões e hipocrisias que foram adoptados durante décadas pelos partidos e ideologias do costume. A opinião pública está a mudar na sua composição, a ritmo acelerado, sem que as instituições e os média consigam acompanhar o passo. E o facto de os jornalistas e comentadores estarem maioritariamente a errar o alvo nas suas análises contribui enormemente para que as opiniões e simpatias das pessoas inconformadas fiquem acantonadas em movimentos políticos alternativos, emergindo das várias brechas do sistema politico. Mas não se limitam a ocupar os espaços vazios, comprimem os espaços dos outros, ganhando progressivamente terreno. E já não é possível despachá-los a todos, como simples lixo, para o caixote dos extremismos. Como pode ver-se, a “peste” está a alastrar depressa e bem. Mas será mesmo de uma “peste” que se trata?


6. Que espera a imprensa para levar realmente a sério este novo fenómeno, compreendendo-o nos seus fundamentos e na sua amplitude, em vez de tanto se empenhar em demonizá-lo nas suas múltiplas manifestações, atitude essa que não nos levará a lado nenhum, excepto a um impasse duradouro e a um cisma social? Detectar nos populismos apenas a ameaça de um qualquer retrocesso histórico é superficial e enganoso. Repito: eles trazem em si algo de novo e é preciso perceber o quê. De outro modo, quem alimentar o tabu estará apenas a contribuir para um diálogo de surdos. Ora não é para isso que a imprensa serve.  

Se quisermos começar a levantar a ponta do véu, teremos de começar a falar desapaixonadamente sobre as reais dimensões, as consequências cada vez mais devastadoras e os riscos potenciais de várias migrações descontroladas: de pessoas, de capitais, de empresas, de empregos, de receitas fiscais, de poderes decisórios… e de culturas que literalmente invadem bastiões alheios.

Sob variados aspectos, andamos há muito tempo a brincar com o fogo, e agora vai ser difícil apagá-lo. Mas virar‑lhe sobranceiramente as costas não ajuda nada. Pelo contrário, podemos todos acabar queimados. Acautelemo-nos, portanto. Os populismos vieram para ficar e é ainda imprevisível como vão evoluir. Mas não lhes faltam razões para existir e crescer, e não é boa política ignorá-las nem continuar a tentar encostá-las desdenhosamente às cordas. Essas razões têm de ser seriamente consideradas e rapidamente trazidas para o debate político dito “normal”, sem preconceitos nem tabus. E os problemas a que elas se referem têm de ser rapidamente enfrentados, antes que seja tarde demais para a paz social.

Em suma: os chamados “populismos” estão muito longe de ser meras manifestações de irracionalidade colectiva. A pior irracionalidade poderá consistir em nem sequer tentar perceber as razões que lhes assistem.

sábado, 25 de fevereiro de 2017

Um diagnóstico invertido

Frequentemente se lê e ouve que um dos problemas essenciais da Europa de hoje é o afastamento dos cidadãos em relação às instituições europeias. Errado. Esse diagnóstico está feito ao contrário: um dos problemas essenciais da Europa de hoje é o afastamento das instituições europeias em relação aos cidadãos.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

O que é o populismo, afinal? (1)

Por estes dias, abundam as definições de populismo e outras tantas utilizações arbitrárias do termo não apoiadas em definição nenhuma. Reina uma certa confusão.

O populismo, tal como o racismo e a xenofobia, passou a querer significar tantas coisas diferentes, entendíveis e aplicáveis segundo as circunstâncias e os países, que já não se sabe ao certo o que significa. Ou melhor, sabe-se, mas o significado original é já talvez o que menos se utiliza. Esses três rótulos desvincularam-se dos respectivos conceitos, ou então (o que talvez seja mais verdadeiro) tornaram-se conceitos multiusos, versáteis, indefinidos, dos quais ressalta sobretudo a carga negativa e a condenação implícita que se quer atribuir a algo.

Como eu prefiro dizer, estes são “conceitos-panaceia”: servem para muitas e diversas ocasiões em que se quer anatematizar comportamentos ou opções alheias, e que, à falta de melhor, se podem aplicar a esmo e sem mais justificações. Precauções, então, também não são necessárias. Parte-se logo do princípio de que com eles se designa alguma maleita política ou moral que nos assola, ou às sociedades em geral, e que, por suposto, só afecta a saúde mental dos outros. Lançar mão de tais conceitos, independentemente do contexto e do bem-fundado do uso, parece já servir para começar a exorcizar o mal.

Digamo-lo por outras palavras: nos dias que correm, ser acusado ou suspeito de populismo, racismo ou xenofobia, seja lá o que for que alguém queira dizer com isso, significa que se merece ser excomungado, ostracizado ou retirado do rol das pessoas decentes. Nada menos. E é quanto basta para gerar de imediato um clima de hostilidade.

Na forma mais benigna deste desvario, houve quem tentasse assimilar o populismo à pura demagogia. Mas nesse caso, se o tentássemos combater a preceito, acabaríamos pior. Ficaríamos sem democracia, porque ficaríamos sem partidos. Haverá algum deles que, salvaguardadas as diferenças de intensidade e de estilo, não seja profundamente demagógico? Não andam todos eles a prometer muito mais do que podem (ou pretendem) cumprir? Até os militantes mais convictos, quando usam os cinco minutos anuais de consciência e bom senso que se permitem a si próprios, ficam a saber isso. Os mais intuitivos e os mais hipócritas sabem-no logo de imediato ou mesmo de antemão, mas também não levam a mal. Consideram que a demagogia faz parte do jogo político. E, infelizmente, faz. Pode-se confrontá-la, mas não se sabe a maneira de a evitar.

Portanto, o que distingue o populismo não é a demagogia, nem sequer alguma espécie particular de demagogia. Ela está em todo o espectro político, em doses e roupagens variáveis. Não será demagogia uma certa banda do nosso hemisfério parlamentar defender um determinado naipe de medidas e proclamar que “não há alternativa”? Há sempre alternativas. Não será também demagogia um outro quadrante celebrar os remedeios habilidosos ou os pequenos sucessos transitórios e artificiais como se fossem a verdadeira resolução dos problemas de fundo, ou o caminho adequado para ela? Navegar à bolina não é a melhor maneira de chegar ao destino pretendido. E não será ainda demagogia, como fazem outros sectores, prometer e afiançar ao eleitorado tudo e mais alguma coisa, indiferentes a constrangimentos externos e orçamentais, como se a realidade não existisse ou fosse simplesmente aquilo que em cada momento se quiser? Essa é a melhor receita para o desastre.

Se fosse possível reduzir o populismo à demagogia exacerbada, ou a uma certa variante dela, ou à mera conjugação de alguns dos ingredientes dela, ainda assim teríamos pano para mangas. Mas não se trata disso. Estamos perante um fenómeno diferente. E com a agravante de que não há um só populismo, mas vários, e alguns deles são de sinal oposto.

Para nos entendermos, vai ser preciso desembaraçar a meada. Até porque já não falta por aí quem chame populismo à simples tentativa de chamar a atenção para os factos incómodos ou para as verdades inconvenientes.

Em todo o Ocidente, no que respeita à terminologia política, estamos prestes a construir uma nova torre de Babel. E um dos efeitos disso pode vir a ser uma pandemia pior do que a rápida expansão da demagogia.

Por que digo isto? Porque, face aos fenómenos sociais que grassam nesta nossa parte do mundo, e atendendo à velocidade com que alastram, fazer diagnósticos errados não é apenas péssimo, é mortífero. Nem sequer acertar no nome das coisas, mais do que não perceber os sintomas, significa não perceber as causas. E quem não percebe as causas dificilmente poderá acertar nos antídotos. O prognóstico, portanto, é assustador.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Um novo conceito de democracia?

Comecemos pela contagiosa histeria anti-Trump que tem apimentado as eleições americanas. É o assunto que está mais na berra.

As televisões mostraram-nos hordas de manifestantes que vieram para as ruas partir montras, incendiar veículos e arremessar objectos contundentes à polícia, tudo isso, ao que parece, como uma saudável manifestação do chamado “direito à indignação”. Que tal direito exista nestes precisos termos é o que pode inferir-se dos comentários implicitamente aprovadores de quase todos os analistas e comentadores, também eles fortemente indignados com o resultado eleitoral, numa aliás rara sintonia de estados de alma opinativos e argumentativos.

O povo americano, é o que se conclui, enganou-se. Ou pior do que isso, foi enganado. Não votou em quem devia. Escolheu o candidato errado. Não faltou quem dissesse que as eleições deveriam ser impugnadas, repetidas, rectificadas, ou quem não lhes atribuísse valor algum. Como é óbvio, se a imprensa quase em peso está contra o vencedor, e já estava antes de ele o ser, foi um atrevimento descabido o povo americano ter votado nele. Mais inaceitável se torna o facto, se até a esmagadora maioria da classe política está também indignada. Pelos vistos e contados, o candidato em questão só ganhou porque a maioria mais alarve de todas, a dos eleitores, votou nele.

Ah, mas isso não é verdade, dizem logo alguns iluminados céleres. O candidato que ganhou teve menos três milhões de votos do que a sua grande rival. É certo que ninguém se atreveu ainda a falar de fraude eleitoral, porque tudo funcionou segundo as peculiares regras do sistema americano, em prática há mais de duzentos anos. Mas foi pelo menos uma distorção do próprio sistema, em si próprio questionável, que já mais de uma vez permitiu que perdesse o candidato que mais votos individuais recolheu (tal como às vezes acontece, por exemplo, na execrável democracia inglesa, com o seu sistema de círculos uninominais, agora tão estranhamente ambicionado pelas gentes lusas e outras).

Já havia antes quem tivesse criticado o sistema eleitoral em vigor, mas pouca. Na América, as tradições políticas têm muito peso e ajudam a sustentar a estrutura federal do país, resultante da sua singular história e geografia. Mas parece que desta vez esse sistema eleitoral, que até aqui tinha servido muito bem, produziu uma aberração. Ainda assim, são menos os que criticam o próprio sistema em si do que os que vituperam quem ousou ganhar à custa dele. E essa é a peculiaridade maior de todas.

Julgava eu, na minha imaturidade política, que quando é eleito um presidente ele passava a ser o presidente para todos os nacionais e residentes do país que o elegeu. Mas não, isso era dantes. Muitos dos manifestantes que vieram para as ruas exibir o seu descontentamento e indignação empunhavam cartazes dizendo “Este não é o meu presidente”. Pelos vistos, esses manifestantes (e todos os que, não se tendo manifestado, pensam como eles) passaram a ter como presidente a candidata vencida (ou talvez, quem sabe, algum dos candidatos a candidatos que não passaram sequer das primárias). Por mim, nada a opor. Acho que assim os resultados eleitorais poderão acabar por ficar mais ao contento de todos. A cada um, seu presidente, consoante as suas convicções. Ou seja: o candidato que venceu passa a ser o presidente só dos que votaram nele. Os outros eleitores escolhem a gosto de entre os candidatos eliminados ou vencidos. Por que não? É um novo conceito de democracia. Podemos chamar-lhe “democracia personalizada”. Trata-se de uma inovação importante. Por alguma razão, afinal, a América costuma andar um pouco à frente do resto do mundo, em geral pouco lesto a imitá-la e só perdendo com isso.

Todas as exuberantes manifestações de desrespeito pelos resultados eleitorais passam a ser legítimas, portanto, se resultarem do novo e importantíssimo “direito à indignação”. E se pensarmos bem, para as coisas baterem certo, quaisquer eleições ou referendos deveriam ser repetidos tantas vezes quantas as necessárias até vencer o candidato com a melhor imprensa ou com a orientação mais desejável (estou confiante de que os descontentes do “Brexit” concordarão com isto). É uma ideia nova a reter, que significará um importante passo em frente (para onde, ninguém sabe, mas só os mesquinhos e os reaccionários se preocupam com isso).

É indiscutível, no caso actual, que o candidato mais indesejável venceu, e venceu segundo as regras vigentes. Ninguém percebe como ele se atreveu a tanto. Concordo que não devia ser permitido. Este insurrecto despenteado começou como um outsider, nem sequer era um político encartado, ou nem era um político de todo, e afinal, contra tudo e contra todos, pulverizou os seus rivais republicanos e ganhou, sem ser por uma unha negra, à candidata democrata indiscutivelmente favorita. Até os pais fundadores da nação americana se devem ter revolvido na tumba. Isto não se faz. Ou como agora soa dizer-se, “não é aceitável”.

Houve quem alvitrasse que este resultado só foi possível porque a espionagem russa se intrometeu no assunto e pôs a nu alguns podres da candidata democrata. Os meandros do que realmente aconteceu ainda estão envoltos em mistério. Mas se os russos fizeram isso, não vejo em tal atitude um sinal de parcialidade, mas de pragmatismo. É que acerca do candidato republicano não era necessário pôr nada a nu. Toda a imprensa nacional e internacional (incluindo editorialistas, comentadores, analistas, pivôs, opinion makers e os moços de recados das redacções) se empenhou nisso com entusiasmo e foi sempre unânime em não encontrar em Trump um único ponto positivo. Segundo o consenso generalizado e expresso em uníssono, não havia nele nada que se aproveitasse. Toda a gente com peso e opinião se entreteve durante quase dois anos a enxovalhar o espécime e a ridicularizá-lo. Por que haveriam os russos de perder tempo com ele? Não era preciso.

Que os russos tenham cometido intencionalmente umas inconfidências, fornecendo mais provas para o que já se sabia e mais fundamentos para o que já se suspeitava, foi visto como uma grave ingerência externa no processo eleitoral americano. Estou tentado a concordar. Mas, estranhamente, ninguém considerou uma ingerência externa o facto lastimável de quase toda a imprensa mundial, e sobretudo europeia, ter andado quase concertadamente a fazer uma campanha mediática feroz contra este candidato republicano e a favor da favorita democrata. E à imprensa juntaram-se as declarações bombásticas e os comentários intrusivos de tudo quanto era governante, diplomata, deputado, dirigente partidário, porta-voz ou militante de serviço por esse mundo adentro, sem sequer deixar de fora presidentes e chefes de governo. Se as eleições americanas bastassem, Trump teria involuntariamente promovido a concórdia universal, porque toda a gente que era alguém ou ninguém em algum lado estava de acordo contra ele. Nunca antes se tinha visto tantos responsáveis e irresponsáveis políticos tomarem abertamente partido numa eleição estrangeira. Mas se toda a gente acha que não se tratou de ingerência externa, excepto no pífio caso dos russos, quem sou eu para dizer o contrário? Pelo menos, temos a agradecer a estes últimos que tenham sido comedidos e que só tenham desnudado alguns podres da candidata democrata; se eles tivessem ido mais além e tivessem desnudado mais qualquer coisa, poderia ter sido algo feio de se ver.

Resta concluir que, se Trump partiu quase do grau zero da política e conseguiu vencer contra tamanha oposição, ainda por cima gastando muito menos dinheiro na campanha do que a sua principal opositora, o homem só pode ser um génio político, mesmo que não venha a ser um estadista genial. Nem mesmo o mais talentoso dos seus críticos conceituados poderia ter aspirado a conseguir uma ínfima porção do que ele fez. Durante dois anos, quatro quintos do mundo (ou seria mais que isso?) tratou este inefável candidato como um pária, chamou-lhe quase tudo, de imbecil para cima, fez chacota das suas frases e dos seus gestos, tratou-o como proscrito, atribuiu-lhe todas as aleivosias imagináveis, preteriu-o em favor de todos os outros concorrentes possíveis ou confirmados, preferiu o diabo à companhia dele, viu nele a peste ideológica ou o perigo do apocalipse, instigou todas as consciências decentes e bem pensantes a rejeitá-lo liminarmente, e mesmo assim, ele ganhou. Agora, no rescaldo, especula-se ainda se o novo presidente é mesmo doido, como diziam, ou se foi a América que endoideceu. Por mim, vislumbro uma terceira hipótese: pelos vistos e acontecidos, pode ser que tenha sido o resto do mundo a perder a sanidade. Porque toda esta histeria anti-Trump não é normal.


O que é acima de tudo estranho é que, por muitos disparates que tenha eventualmente dito, o candidato Trump também disse algumas verdades incómodas, que a generalidade da opinião pública apelidada de “culta” não quer admitir nem aceitar, e que se recusa mesmo a analisar com seriedade. Não é bom sinal. Alguém já ouviu falar daqueles remotos dignitários eclesiásticos que, no seu tempo, se recusaram a espreitar pelo telescópio de Galileu, para não serem tentados pelas ilusões do Diabo? Noutros moldes mais modernos, é o que se está a passar agora. É melhor benzermo-nos também.

sábado, 11 de fevereiro de 2017

Uma adenda necessária...

Tentar perceber os factos não é o mesmo que enquadrá-los nos nossos preconceitos.

A irresistível tentação do erro


Seja no confronto ideológico, nas análises económicas ou nas visões de sociedade, a nossa vida política está profundamente impregnada de clichês, frases feitas e ideias ultrapassadas.

Não é de espantar. As ideias e as crenças tendem a perdurar no tempo e a resistir à erosão, mesmo quando mudaram os factos ou as circunstâncias que lhes deram suporte e justificação. Entranham-se subrepticiamente nas convicções dos especialistas, dos leigos, dos comentadores e dos escribas da comunicação social. Formatam as mentes e as opiniões até de pessoas dignas de crédito, que exibem preparação e conhecimentos para fazerem as interpretações que fazem (ou para comentarem as que os outros fazem) do mundo actual e seus eventos, da sociedade e seus conflitos, das doutrinas e suas contradições.

A consequência disto é que se formam gradualmente padrões de pensamento e de opinião que, com o andar dos tempos, se convertem em dogmas sem que se dê por isso. Ou que, nos casos mais benignos, se arvoram em meros pressupostos implícitos que condicionam as análises e as conclusões. Podem não ser considerados intocáveis, mas são eles que habitualmente definem as linhas do horizonte intelectual que vislumbramos. Para além desse horizonte, parece nada existir ou ser só miragem.

É bastante imprudente subestimar essa formatação cultural que o ambiente envolvente nos proporciona. Em bom rigor, não é apenas ele; desempenhamos nisso algum papel, porque em regra escolhemos, consciente ou inconscientemente, os nichos culturais a que preferimos pertencer e com os quais mais nos queremos identificar. Quando nem isso acontece, assimilamos sucessivamente referências através de uma mistura de mimetismos. Mas o resultado final é quase sempre pouco maleável, no que toca a adaptarmo-nos a novos ambientes e novos factos. E isso gera propensões e incompatibilidades dificilmente contornáveis, além de previsíveis.

Esta tendencial rigidez da nossa formatação cultural conduz a resultados indesejáveis e bastante nocivos: na moral e nos costumes, a intolerâncias diversas; na cena intelectual, a conflitos espúrios; na economia, a estratégias inadequadas; no debate ideológico, a concepções obsoletas; na imigração, à falência do multiculturalismo; no palco e nos bastidores da democracia, ao “politicamente correcto” em várias versões.

Eis o pior de tudo: quando um qualquer disparate vem de encontro aos nossos dogmas ou pressupostos, acolhemo-lo sem hesitar. Por vezes, fazemos até mais do que isso: precipitamo‑nos sobre ele e abraçamo-lo.

Ao invés disso, eis o que precisamos fazer: tentar perceber os factos. Algo que, apesar de incontáveis análises e comentários a tudo quanto sucede, está bastante em desuso.